quarta-feira, novembro 29, 2006

Rewind #2 - O Desconhecido do Norte Expresso

O que há de tão genial em Hitchcock que o leve a ser genericamente aclamado? Não é o génio inovador de filmes como Vertigo, Os Pássaros ou Janela Indiscreta. Ou antes, não o é apenas. É acima de tudo a forma como consegue pegar numa história simples, numa realidade banal, e polvilhá-la de interesse e suspense. É isso que faz, magistralmente, em O Homem Que Sabia Demais. É isso também que faz, de forma mais subtil, em O Desconhecido do Norte Expresso.

A influência de Hitchcock faz-se sentir também nos pequenos pormenores que nos rodeiam hoje. A música que associamos a uma cena de suspense; o terror de pássaros; a sombra por detrás de um cortinado na banheira. Estas são imagens que o legado da genialidade de Hitchcock deixou ao imaginário cinéfilo e popular. Strangers on a Train, na versão original, traz-nos mais destes deliciosos pormenores. Tenham cuidado quando forem abordados por estranhos. Especialmente num comboio.

Guy Haines é um tenista famoso que está apaixonado por Anne Morton, filha de um senador. Contudo, é casado. É no comboio para a sua terra natal, quando se prepara para pedir o divórcio à sua esposa infiel, que conhece, ou é forçado a conhecer, Bruno Anthony. Bruno representa o vilão da história. Numa interpretação memorável de Robert Walker, pressente-se desde o primeiro instante a influência nefasta que Bruno terá sobre o protagonista da história. É no primeiro aperto de mão, representado com mestria, que se estabelece o contraste entre um homem reticente e um homem calculista.

Durante essa viagem, Bruno vai divagando e acaba por propor a Guy um negócio simples. Uma troca de assassínios. Guy mata o pai de Bruno e este mata a sua mulher, libertando-o para Anne Morton. Este é o ponto de partida para um história de conflito entre o Bem e o Mal onde estes estão bem patentes, não só nas acções das personagens, mas acima de tudo na sua caracterização, na profundidade que os actores lhe empregam. Esta é aliás uma característica de Hitchcock. A profundidade que as suas personagens sugam dos actores.

Guy vê-se arrastado para uma espiral de confusões, acusado da morte da mulher e contando apenas com a ajuda de Anne (Ruth Roman) e da sua irmã Barbara (Patrícia Hitchcock, filha do realizador). Tudo se desenrola num tom explicativo, mas vivo, à volta de Guy, representado por Farley Granger. Tudo até a um culminar vertiginoso que tem início num jogo de ténis contra o tempo e culmina numa memorável viagem de carrossel. O cinema de Hitchcock é feito de pormenores.

Pormenores que devemos saborear são o que rega esta película com duas versões (uma para Hollywood e outra com ligeiras diferenças, dita inglesa). Começando pela morte de Miriam Haines, a mulher de Guy. Estrangulada, num simbolismo que se repercutirá no desenrolar do filme, a sua morte é vista pelo reflexo dos seus óculos, um objecto que servirá de ponto partida para o desenrolar favorável da acção. Servem também para questionar a moralidade de Bruno. Aparentemente frio e implacável, Bruno revelará perante os óculos uma fragilidade moral expressa também nalgumas das suas falas.

Tudo o mais, são isso mesmo, pormenores, tipicamente Hitchcockianos que devemos saborear lentamente. A música, o ritmo do filme, as reviravoltas do enredo, a importância da mente da personagem e o suspense, sempre o suspense. Notável como, mais de 50 anos depois, percebemos a enorme influência do realizador nos filmes do género. Este nem é do melhor Hitchcock. Mas Hitchcock é mesmo do melhor que temos.

Título: O Desconhecido do Norte Expresso
Realizador: Alfred Hitchcock
Elenco: Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker, Leo Carroll, Patricia Hitchcock e Kasey Rogers.
E.U.A., 1951.

Nota: 8/10

segunda-feira, novembro 27, 2006

Victory for the Comic Muse - The Divine Comedy

Dois anos separam este álbum do último trabalho dos The Divine Comedy de Neil Hannon, Absent Friends. Este grupo britânico, que nos presenteou com a música The Booklovers, surge agora com Victory for the Comic Muse. O título advém de uma célebre passagem de A Room With a View de E.M. Forster, funcionando como uma excelente analogia para o conteúdo musical do disco: como já nos têm habituado, The Divine Comedy apresentam um CD cheio de humor, qualidade e momentos musicais muito bem conseguidos. Para além de beberem de muitas fontes da música contemporânea britânica (Nyman, Doyle, Glass, entre outros), progridem na construção de letras cada vez mais cruelmente divertidas.

Ainda no ambiente eduardiano da época do Maurice, Room With a View e A Passage to India de Forster, a primeira faixa revela-se uma verdadeira surpresa. Inicia-se com um excerto da velha série inglesa The Camomile Lawn, cenário idílico de lenços e gravatas conservadoras, em que há um brilhante e inocente diálogo entre um gentleman e uma lady. "If there's a war, I'll sleep with you before you get killed. That's what maidens do. And I'm a maiden." diz a rapariga. O cavalheiro retalia: "Are you carry on about your virginity? Virginity's nothing? You can loose it riding a bycicle!" Então, escuta-se a rapariga de novo: "I never knew that! I must be careful: I'm gonna get a bycicle in London..." A música, já iniciada, desenvolve-se na percussão sobre cordas cheias de humor. Chama-se To Die a Virgin. A letra é uma pequena história de um adolescente, sonhando com a sua primeira consumação da carne, contada pela voz irónica, de barítono, de Hannon. Ouvem-se frases como: "The other day I discovered / A magazine of my brother / I read it under the covers / It got me all hot and bothered. / Now every time that I see you / Your uniform becomes see-through / You don't know how much I need you / The "Handy Andys" I've been through." Esta é a grande abertura deste álbum, a grande iniciação à comédia.

Mother Dear é a segunda faixa, alienada por um banjo, com uma letra intimista e edipiana, sempre sóbria sobre a aura muito dramática das cordas. Dentro do mesmo estilo instrumental, apresenta-se Arthur C. Clarke's Mysterious World, uma sátira ao ilógico cantada com uma música quase maníaca, antiquada e sempre arquitectada como uma gargalhada silenciosa. Resta ainda referir The Light of Day, uma faixa com uma letra menos sarcástica, mais real, mais presa a imagens: um verdadeiro hino à nostalgia. Neste momento, Hannon faz uso de uma potência que consegue sempre derreter ao longo do refrão: uma beleza extrema, profundamente triste e melancólica.

Há também A Lady of a Certain Age, a mais brilhante composição de Hannon, com a letra mais mordaz do CD. Narra a história, perfumada de Channel, de uma socialite, da sua vida e do seu envelhecimento, com um refrão belíssimo, ondulado com um acordeão e enclausurado no dedilhado da guitarra. Isto, com imenso sentimento e vivacidade. A Lady of a Certain Age encontra o esplendor máximo do talento de The Divine Comedy ao conjugar humor, narração e uma profundidade musical muito intensa.

O single é Diva Lady, uma enorme piada sexual amortizada pelo piano estilizado, pelas frase melódicas longas e, sobretudo e uma vez mais, pelo sentido de humor que não aspira ser inocente. Count Grassi's Passage Across Piedmont usa duas vozes: uma recitativa e uma melódica, cruzadas sobre um piano e um ritmo de alucinações. Aqui, encontra-se uma faceta diferente, mais perto de trabalhos antigos de The Divine Comedy: o recitar, o expôr, o refrão melódico numa tonalidade menor.

Party Fears Two retoma os ritmos humorísticos, quase circenses, para se encontrar numa letra plena de sorrisos que depressa se distorcem, com a ajuda do piano, em algo de mais tenso. Quando se desfoca a tonalidade maior para uma intensidade mais entristecida, as cordas puxam de novo o tema e o ritmo original, cada vez com mais ornamentos (coro e metais, por exemplo). Ainda que seja o único cover do disco, The Divine Comedy mostram aos The Associates o que de bom conseguiram.

The Plough pega num ritmo dançável em 3/4 para se contorcer numa agradável mistura de cordas, piano e alguns ruídos. Os crescendos são notáveis e empurram-nos para uma dimensão de suspense e espera, até ao silêncio... que retoma o tema abruptamente. Como seria de esperar, pega-se também numa letra muito interessante, intercalada com gravações e ruídos, sempre ao estilo da Musa da Comédia. Há ainda Threesome, uma peça instrumental, com um nome algo sugestivo, que é tocada por três pessoas, isto é, três pares de mãos sobre um piano. Mais uma vez, Hannon consegue, sem palavras, provocar e ter sentido de humor.

A última faixa é o projecto experimental Snowball in Negative, com um arranjo perfeito na parte dos graves, uma letra extremamente inteligente e interrupções deslumbrantes. Todos os instrumentos utilizados são uma verdadeira armadilha musical, prendendo a melodia sobre o acordeão, a flauta, o contrabaixo e as cordas. Há uma pausa: um piano delineia um serpentear lírico... Volta-se ao tema: pizzicato, cravo, vozes de fundo. O que mais surpreende é tudo o que está por detrás de um tema triste e lento, o que se funde de novo no refrão. Há uma pausa e volta-se ao serpentear do piano, mas desta vez adicionando gradualmente cordas e, mais tarde, percussão. Explora-se, a partir daí, até que uma flauta extinga o som e soe uma nota aguda no piano. Em suma: uma obra-prima.

Este CD apresenta o que de melhor Neil Hannon e os The Divine Comedy sabem fazer, mostra a sua maneira de ver a Música, a sua perspectiva face ao cómico e ao surreal. E é, garantidamente, algo de extraórdinário. Sem dúvida, uma vitória!


Título: Victory for the Comic Muse

Artista/Compositor: The Divine Comedy

Ano: 2006

domingo, novembro 26, 2006

Lights and Sounds - Yellowcard

"I could tell you the wildest of tales

My friend the giant and travelling sales

Tell you all the times that I failed

Years all behind me and stories exhaled"

Uma das bandas mais vendidas nos E.U.A., os californianos Yellowcard invadem agora as lojas com o seu mais recente trabalho: Lights and Sounds. Apesar de terem mostrado uma imagem mais punk, mesmo emo, mais feroz e musicalmente mais fraca, este álbum é uma verdadeira surpresa. Ainda remonta um pouco ao período de punk-pop corriqueiro em algumas faixas, apesar de noutras convencer quem atirou fora Ocean Avenue. Cheio de contrastes, o essencial está cá: os Yellowcard que vendem à geração punk, com melodias fáceis, mornas e insonsas; e também estão presentes uns Yellowcard novos, assegurando este álbum como um disco a registar no âmbito do rock americano normativo.

E é, ainda assim, sobre esta faceta dos Yellowcard que este álbum se centra maioritariamente. A faixa de abertura é instrumental, com cordas e um piano, muito ténue, delicada e longe da imagem que transparece noutros trabalhos. Depois, colada aos últimos acordes deste prólogo surge a faixa Lights and Sounds, repleta de uma indefinição estética, mas com uma melodia interessante. O mesmo se pode dizer da música seguinte, Down on My Head, que conta com algumas ideias interessantes, apesar de ter uma letra idiota que não faz sentido quando conjugada com a intensidade harmónica do refrão.

O trunfo deste CD só ocorre em City of Devils, faixa comparada à afirmação não-punk dos Goo Goo Dolls, a conhecida Iris. Em City of Devils, escutamos vozes corais bem conseguidas, uma orquestra de cordas, alguma guitarra acústica (muito segura e com acordes bem definidos) que se conjugam num refrão líquido e muito intenso. Dentro do mesmo estilo, os Yellowcard tocam Two Weeks from Twenty, uma faixa com imenso potencial, com uma letra curiosa e irónica. Distinguimos outro estilo mais perto do jazz (por incrível que pareça, o baixo roça Ben Fold Five), mais perto de vozes mais agudas e de sons mais leves.

Ainda dentro do estilo que esta banda nos tem habituado, destaca-se Martin Sheen or JFK, Hollywood Died (com um epílogo também ele instrumental que retoma o prólogo Three Flights Up) e Waiting Game, apesar de se notarem, porém, algumas diferenças na complexidão da estrutura harmónica e rítmica: fogem aos três acordes modulados do punk e ao ritmo veloz, seco e oco. Portanto, muita bateria, algum piano, o violino de Sean Mackin e a voz não-distorcida e não-gritante de Ryan Key. Talvez não seja sinónimo de uma evolução musical profunda. No entanto, serve para que os Yellowcard se demarquem de uma geração intelectual e musicalmente estéril.

Como última referência, fica a faixa 13. How I Go, um dueto do vocalista com Natalie Maines (das Dixie Chicks). É incrível como a voz de ambos se cruza de um modo tão idiossincrático, tão assustadoramente irreal. Esta faixa descura apenas em alguns pontos da letra, porque, de resto, é de uma rara qualidade.

Em suma, temos nas mãos um CD que é um grito de "desafirmação" e simultaneamente um compasso de espera para um projecto futuro, longe do punk auto-destrutivo e dos conceitos já usados pela enésima vez. Queremos algo de novo. Talvez para o próximo álbum, quem sabe. Para já, thumbs up para os Yellowcard pela mudança.


"You keep the air in my lungs

Floating along as the melody comes

And my heart beats like timpani drums

Keeping the time while a symphony strums"



Título: Lights and Sounds

Artista/Compositor: Yellowcard

Ano: 2oo6

Das Parfum - Die Geschichte eines Mörders


O Perfume - A História de um Assassino

Baseado no romance imortal de Patrick Süskind, chega agora às salas de cinema um filme que foi uma batalha cinematográfica de alguns anos. Muitos foram os realizadores que ambicionaram pôr em película as páginas repletas de odores que Süskind descrevera, de um modo tão real, em cinco anos (entre eles contam-se Martin Scorsese, Ridley Scott, Tim Burton, Milos Forman e Stanley Kubrick). Para a maior parte dos amantes deste livro, seria uma crueldade a ideia de adaptá-lo para o cinema, porém, a regra é quase inquebrável: o livro que vende geralmente transforma-se num filme que vende. Ainda assim, esta tentativa de passar a filme uma obra tão cheia de profundidade implicou um esforço muito grande por parte dos argumentistas e do realizador.

Tom Tyker, realizador e compositor alemão, assina a partitura da banda sonora e dirige os actores sobre um enredo tecido e aromatizado por Andrew Birkin e Bernd Eichinger. Para além disso, consta que também teve algo a dizer na adaptação da obra para um guião. O ponto de partida deste filme é precisamente o que resultou tão bem no livro de Süskind: a abertura de um mundo tão negligenciado pelo Homem que, fiel à visão e à audição, deixa passar por si o espantoso e denso universo das essências, fragrâncias e odores. Este local tão efémero é muito bem idealizado no livro... o que trouxe ao filme um problema acrescido: como narrar uma história que acontece em função do olfacto?

Mas Tom Tyker aborda a questão sem sombreados nem pinceladas comerciais. Conta, com a ajuda de um narrador, a história de Jean-Baptiste Grenouille, desde o seu nascimento no local mais fétido de Paris, até à sua vibrante viagem por lugares com cheiros novos e desconhecidos. Jean-Baptiste descobre desde cedo que é dotado de um incrível olfacto, conseguindo identificar, discriminar e separar todos os odores do mundo. Aliada a esta descoberta, surge outra terrível: Grenouille é o único ser humano que não possui odor natural.

Assombrado pelo facto de o seu corpo ser inodor, o jovem assume um percurso de obsessão pela beleza, de procura pelo perfume mais belo e maravilhoso do mundo. Parte, então, para a tentativa de preservar um aroma. E cedo compreende a complexidade do que pretende, sobretudo porque pretende capturar cheiros muito mais fugazes do que a vida.

É de um modo quase bárbaro que assistimos à decadência da personagem, sempre sobre a boa e estável interpretação do inglês Ben Wishaw, frio nos seus olhos azuis cheios de um silêncio só traduzível em odores. Ao lado desta nova e fresca interpretação, temos outras duas de destaque: Dustin Hoffman, irónico e cheio de humor no papel do perfumista Baldini, e Alan Rickman, de volta ao cinema num papel à sua altura. Somos ainda deslumbrados com a beleza e a nudez da britânica Rachel Hurd-Wood no papel de Laura.

O que há, então, de singular neste filme? Ainda que fique muito longe de conseguir o que Patrick Süskind conseguiu, O Perfume - A História de um Assassino é um bom exercício de cinema, explorando dimensões pouco usadas, pormenores pouco utilizados, realces pouco vistos. Traz muito de bom, muito de novo. Respiram-se, por vezes, a imagética tentada na obra: os frascos imensos de óleos e aromas, as técnicas cheias de arte, a busca incessante pelo que de mais puro na humanidade: o Amor. Desta vez, lido em doze teclas (mais uma extra) que compõe os acordes da alma do perfume.

Nomeado para o Grande Prémio do Festival de Flandres, na categoria de melhor filme, O Perfume foi o filme alemão mais dispendioso de sempre. Destacam-se o guarda-roupa, uma fotografia exemplar, uma caracterização perfeita. A banda sonora é soberba, usando muitos sons e instrumentos etéreos para definir o inregistável. E haverá algo melhor do que sons para definir odores? A câmara de Tom Tyker, quem sabe, faz deste filme isso mesmo. Isto, sem dispensar a leitura atenta do romance homónimo de Süskind.


Título/Ano: Das Parfum - Die Geschichte eines Mörders (2006)

Realizado por: Tom Tyker

Escrito por: Tom Tyker, Andrew Birkin & Bernd Eichinger

Elenco: Ben Wishaw, Dustin Hoffman, Alan Rickman, Rachel Hurd-Wood.

sexta-feira, novembro 24, 2006

A Festa

Spiro Scimone, natural de Messina, é nos dado a conhecer na biografia que antecede as peças incluídas neste livro. Livro que faz parte de uma maravilhosa colecção de peças de Teatro, editadas por parte dos Artistas Unidos, trazidas para o grande público num formato economicamente muito acessível e com grande sentido pragmático, de nome “Livrinhos de Teatro”. De Spiro Scimone encontramos compilados neste livro, Nunzio, Café e A Festa.

Nunzio e Café terão à partida um factor aliciante que as torna, coloquemos a coisa assim, diferentes. Escritas num dialecto próprio e característico de Messina, colocavam as personagens num universo muito intimista e reservado, fruto da linguagem usada. Não havendo paralelo entre a realidade italiana e a portuguesa, Jorge Silva Melo (que assina a tradução das duas peças com colaboradores diferentes) opta pela criação de um dialecto próprio que se torna num exigente desafio à tradução, mas que é realizado de forma original e consistente, conferindo-lhe um toque único.

Contudo, não é de Nunzio, nem de Café que falamos aqui. É de A Festa, terceira peça de Spiro Scimone, traduzida também, e aqui em exclusivo, por Jorge Silva Melo. Posta em cena pela primeira vez no Teatro Esther de Carvalho, em Montemor-o-velho, é à volta de 3 personagens que gira a trama. 3 personagens que são verídicas demais para não serem confragedoramente próximas do nosso quotidiano. No fundo, Scimone consegue, como em Nunzio e Café, construir o mesmo tipo de ambiente, sem recorrer aos artifícios do dialecto de Messina para isolar as personagens num mundo fechado e claustrofóbico.

É em jeito de Tchéckov que é criada esta família. Nada se passa, tudo é uma realidade viva (no texto) mas mortiça (no conteúdo). Um marasmo que as personagens alimentam e da qual nem parecem ter consciência. Talvez Gianni, o filho, seja o que mais se aproxime da concepção de heroí mais presente em Tchéckov, enquanto personagem que parece ter alguma percepção do que o rodeia. A Mãe e O Pai, apenas assim, personagens indistintas, são apenas o reflexo de uma sociedade adormecida, preocupada com o seu umbigo e necessidades próprias. Não por consciência, mas por desinteresse.

A Festa de que se fala são os anos de casados do Pai e da Mãe. Mas esta festa não é mais do que o pretexto para Scimone nos relatar a sua visão de uma realidade familiar e social sem futuro nem presente. Uma mãe e um pai demasiado ocupados nas suas quezílias constantes e sem sentido no tornado de confusões emocionais em que se tornou a sua relação desgastada e desgastante. Desgastada para eles, desgastante para Gianni, consciente e reprovador, mas cada vez mais uma imagem absorvida pela contexto que o envolve.

Uma peça sobre a realidade italiana mas que, notoriamente, não se esgota nela, sendo o seu conteúdo e interesse de carácter actual e premente enquanto critica às relações das sociedades modernas.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Remember the Night Parties

O que esperar de mais uma banda americana carregada de Pós-punk? Cada vez menos. Multiplicam-se os exemplos dos candidatos a novos Greenday na terra do Tio Sam, onde todos os adolescentes parecem agregar-se aos trios em formações do género. A tudo isto, os Oxford Collapse não são excepção. Sob a chancela da Sub Pop Records, aparece-nos rotulado de indie o mais recente cd da banda, Remember the Night Parties.

Vindos de Brooklyn, Nova Iorque, a isso não será estranho alguma influência de um som muito Strokes que aqui e ali pontua este mar Pós-punk com tiradas Rock. Tudo isto ainda soa a apenas outra banda do género, como tantas vistas e revistas. Quer ao nível do som, quer a nível do processo de crescimento junto ao público (MySpace da banda). Tudo isto é drasticamente verdade para os Oxford Collapse. Ainda assim, há algo de fresco neste trio.

“He’ll paint while we play” é um começo sem novidade, que à partida anuncia mais do mesmo. Tudo fica muito melhor em “Please visit your National Parks” , com um som mais moderno e arrojado, ao qual não se fica indiferente. “Loser City” faz positivamente lembrar os Greenday de Dookie, “For the Khakis and the Sweatshirts” relembra-nos que este não é um oásis no deserto, apenas mais um cd, tal como “Return of Burno”. “Lady Lawyers” vem em formato punk anos 90 e traz uma lufada de ar fresco, com uma refrescante presença de guitarras a suportar a esforçada voz de Michael Pace.

Refrescante também é “Let´s Vanish”, tributo ao Rock no contexto do álbum e uma das melhores músicas. A segunda metade do cd revela-se, aliás, bastante melhor do que a primeira. A comprová-lo está também “Kenny can’t afford it”ou a muito novaiorquina “Molasses”. “Forgot to write” mantém qualidade em ritmo baladeiro a abrir caminho para um final, relativamente, em beleza com “In your Volcano” em formato R.E.M.

Cd em formato quase regional, em contraponto com o que se esperaria de algo vindo da universal Nova Iorque. Um formato crescendo, que se torna mais agradável com as releituras de ouvir o cd mais de uma vez, mas que ainda assim não são suficientes para grande obra.

Título: Remember the Night Parties
Autor: Oxford Collapse

Nota: 6/10

terça-feira, novembro 21, 2006

Corrigindo Beethoven

E Música nunca mais será a mesma…

Quando Milos Forman realizou, em 1984, Amadeus, sobre a vida de Mozart, conseguiu arrancar à Academia oito Óscares, trinta e dois prémios (incluindo um BAFTA para melhor Filme e um Globo de Ouro) e treze nomeações. Inevitável será, portanto, comparar estes dois filmes, que, embora bastante diferentes, trouxeram de uma forma paralela algo de novo ao cinema. Em primeiro lugar, nenhum deles pretende convencer a plateia de que Mozart ou Beethoven eram génios, antes pelo contrário. Sendo isso perfeitamente palpável nas figuras magistrais e nas obras dos dois compositores, estas películas humanizam-os, mostram o seu lado sensível, igual ao de todos os restantes mortais.

Agnieszka Holland realiza o filme Copying Beethoven, assente num formato já antes visto: a utilização de uma personagem fictícia para ler com outros olhos uma personagem histórica. E Holland pega nos últimos anos da vida do grande compositor alemão e narra-os de uma forma íntima e crua. Para interpretar Ludwig van Beethoven, escolheu Ed Harris, que encarna este titã da Música numa prestação incrivelmente brilhante, mostrando ao espectador um Beethoven irascível, solitário, intempestivo, cativante, apaixonado pela composição. E a semelhança física é notável... É certo que a magnífica interpretação de Ed Harris poderia ofuscar outras presenças, porém, e uma vez que a inserção de uma personagem fictícia serve de mote para outra leitura/audição do génio, há um lugar de destaque para a actriz alemã Diane Kruger no papel de Anna Holtz.

É Anna Holtz que é recomendada ao editor do compositor como a aluna mais brilhante do Conservatório da metrópole cultural europeia: Viena. Após várias tentativas para convencê-lo de que uma mulher pode ser copista, Anna consegue que o editor aceda e que a reencaminhe para a casa de Beethoven. Anna depara-se com um quarto caótico, sujo, e com um Beethoven furioso, praticamente surdo, indisponível senão pelo meio da sua Música. A tarefa da jovem compositora é simples: copiar a partitura da Nona Sinfonia para que possa ser publicada. Isto, a quatro dias da Estreia perante a comunidade intelectual austro-húngara.

Ao longo do filme, apercebemo-nos da figura genial que foi Ludwig van Beethoven. Num curto espaço de tempo, mostra-se a revolução que a sua Música representou para a época, explora-se o seu processo de criação artística, mexe-se na sua solidão, toca-se no seu sentimento religioso. Nesse curto espaço de tempo percebe-se que, tal como numa Sinfonia, o todo é muito mais do que a soma das partes.

A realização é praticamente perfeita, com espaço para que se espelhe a ferocidade da acção, a alma do compositor, o material de que se compõe o génio, quer recorrendo a close-ups sobre lábios, sequências alucinantes delineadas pelas quatro vozes das fugas, ou momentos de silêncio que se abatem para abafar sons tão necessários. E em primeiro plano não está o sofrimento de Beethoven, tão-pouco o lirismo de Anna Holtz para compreender a sua vida. Em primeiro plano estão traços, estão sinais que se codificam em Música, que se traduzem numa linguagem que sempre se desenvolveu e cresceu na mente do compositor. E está também a necessidade de progresso face a algo conformado, algo coercivo, imposto por quem afasta a lisonja para se concentrar no “silêncio que existe entre duas notas”.

Como seria de esperar, a banda sonora recai sobre Beethoven, destacando-se, para além da Nona Sinfonia, a Grosse Fugue¸ alguns Concertos para Piano e Orquestra, entre outros. Apesar de, à primeira vista, existirem alguns contrastes entre a acção e a música, encontram-se momentos de rara beleza ao longo deste filme: reflectem-se estados de espírito como algo exprimível através de sons e não de imagens. Também nos confrontamos com situações que nos abanam verdadeiramente e decorrem sem palavras: por exemplo, a direcção de orquestra sobre a batuta segura nos dedos de um homem surdo é uma sequência abreviada da Nona Sinfonia.

Copying Beethoven não se compadece, não dá explicações, não se afasta do nu e não teme o íntimo. Sem hesitações. Com virtuosismo. Sem escapar à comparação, aqui reside o mérito deste filme sobre Amadeus. Não obstante, Copying Beethoven é um filme no qual se cruzam verdadeiros pontos fortes, verdadeiros traços de génio.

Título/Ano: Copying Beethoven (2006)

Realizado por: Agnieszka Holland

Escrito por: Stephen J. Rivele & Christopher Wilkinson

Elenco: Ed Harris, Diane Kruger, Ralph Riach, Matthew Goode, Joe Anderson.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Filoctetes de Sófocles


Luís Miguel Cintra é uma das principais referências do teatro nacional das últimas três décadas. É comum ouvir-se jovens actores portugueses louvarem o seu mestre. Veja-se o exemplo de Nuno Lopes quando recebeu o Globo de Ouro 2006 pela sua interpretação no filme Alice. Para quem nunca viu Luís Miguel Cintra em palco, pensa que este tipo de dedicatória resume-se a um jovem actor agradecido pelo acolhimento e ensinamentos do líder da Cornucópia. Para quem já assistiu a uma interpretação deste percebe facilmente que é muito mais do que isto. É a dimensão das suas capacidades que o elevam, a coerência das personagens, a preocupação com os sentimentos, a voz, a entoação. Em entrevista, o actor disse que com a velhice o corpo fica muito mais limitado, fica-se cansado, a voz também, a memória fica pior, pensa-se pior. Eu confesso que não vi Luís Miguel Cintra interpretar um papel há 10 anos atrás, mas não consigo imaginar que fosse qualitativamente melhor. É impossível!
A última personagem interpretada pelo actor natural de Espanha chama-se Filoctetes e é a personagem principal de uma tragédia grega com o mesmo nome, da autoria de Sófocles. É uma obra que foi escrita há mais de 2500 anos. Qual a relação duma obra tão antiga com a filosofia do Teatro da Cornucópia? Como conseguiria Luís Miguel Cintra transpor as palavras de Sófocles para actualidade? Qual o debate que o encenador (para quem não sabe, Luís Miguel Cintra acumula a excelência da interpretação com a intuição da encenação) pretende trazer para a rua? Quisemos um espectáculo cru, artificiosamente, eu sei, despojado de enfeites e acessórios. Perto das palavras. Perdoem-me a colagem mas esta citação de Luís Miguel Cintra é a resposta. O encenador foi ao âmago da escrita de Sófocles e descobriu, como é próprio dos grandes autores, a intemporalidade das suas palavras. Para tal, recebeu a preciosa ajuda de Frederico Lourenço, autor da recriação poética. Mais concretamente o que é Filoctetes? É uma personagem que foi traída e atirada para solidão acompanhada por dolorosas dores e um arco sagrado. Nove anos passados é confrontada com a pureza e jovialidade de Neoptólemo, que surpreendentemente o trai pela força do seu maior inimigo, Ulisses. Filoctetes é indispensável para a vitória em Tróia e tudo tinha que ser feito para o persuadir para o combate. O conflito de gerações, a traição, o orgulho, a ingenuidade são as pontes da Grécia Antiga para a actualidade.
Estas três personagens são auxiliadas por um coro de marinheiros, um vigia disfarçado de mercador (mais um pormenor genial de Luís Miguel Cintra que não vou desvendar), outro vigia e Héracles. O elenco responsável pela interpretação é formado por André Silva, António Fonseca, Duarte Guimarães, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luís Miguel Cintra, Martim Pedroso, Nuno Gil e Tiago Matias. Todos os actores respeitaram o desejo do mestre e procuraram nas suas personagens as suas fragilidades, medos, motivações, ambições…o lado humano de cada um. Para além de Luís Miguel Cintra e pelo peso das personagens, destaco as interpretações de Duarte Guimarães e António Fonseca, Neoptólemo e Ulisses, respectivamente.
A todo este jogo de conceitos e interpretações acrescenta-se uma encenação bastante subtil, sustentada por um cenário brilhante, conceptualmente minimalista, com o intuito de nos aproximar das palavras

domingo, novembro 19, 2006

Alter-Ego

Estranho objecto este que surge nas salas no Maria Matos. Cruzamento constante, e nem sempre claro, entre Teatro e Cinema, Alter-Ego é uma quase história, um conjunto de acontecimentos ente dois casais, mistura de ficção e realidade, tudo para explorar o tema do amor. Sempre o tema do amor. Ainda que o não pareça.

Pedro é o centro da acção. Ele realiza um filme que mostra a Inês, a mulher que ama. Neste filme, surgem Amadeu e Elísio, que se conhecem num barbeiro e desenvolvem uma história de amor pouco convencional, mas ao mesmo tempo repleta de déjà-vu’s do amor moderno. Amadeu e Elísio são as personagens que se mexem no cenário da mente de Pedro. Tudo começa, e acaba, quando a realidade da sua relação se mistura com a ficção do seu filme.

Com texto de Artur Serra Araújo, esta é uma história cuja grande vantagem é a boa administração feita entre a parte cinematográfica e a teatral. Entre a tela e o palco, as mesmas personagens vão se enrolando numa espiral de confusão, onde fica a ganhar a parte cinéfila. A actuação em palco surge quase como pretexto, uma mímica (por vezes bem feita) de sentimentos e repetições.

Realizado por José Wallenstein, o filme traz-nos sequências pouco lineares, temporal e espacialmente, com uma presença sexualmente marcante aqui, com uma melancolia demasiado soturna ali. A peça, encenada por Ana Luena, traz pormenores curiosos de encenação, um bom jogo de luzes, mas não deixa margem de manobra para a parte da representação, com excepção de Luciano Amarelo.

Não se pense contudo poder dissociar os dois objectos. Teatro e Cinema aqui são um só. Talvez até, infelizmente, menos que um. Com carências de fluência gritantes e uma história que o não é (não que isso seja a priori algo negativo, simplesmente o é quando não prende o público), Alter-Ego vale sobretudo pelas passagens entre realidade e ficção e pelo cruzamento artístico. Um projecto alternativo, de relativa originalidade, mas cuja frequência não abunda nos teatros portugueses.
Título: Alter-Ego
Realização: José Wallenstein
Encenação: Ana Luena
Elenco: Pedro Mendonça, Marta Gorgulho, Luciano Amarelo e Mário Santos.

Marie Antoinette


Seria difícil prever o que Sofia Coppola congeminaria depois de Lost in Translation - O Amor é um Lugar Estranho. Sendo uma das vozes mais proeminentes entre as realizadoras/cineastas do sexo feminino, o público esteve especialmente atento à chegada de um filme também ele sobre uma mulher num mundo de homens.

Aparentemente, Cannes gostou da película, escrita e realizada pela principal herdeira cinematográfica do grande Francis Ford Coppola (o produtor executivo deste filme). Nomeado para a Palme d'Or, Marie Antoinette não aspira ser um biopic (também não o aspirava o livro de Antonia Frasier de onde o guião bebeu inspiração) e tão-pouco um drama sempre direccionado para as guilhotinas da Place de la Bastille.

Porém, e apesar de todas as dissertações mediáticas geradas em torno do filme, Marie Antoinette não vive à volta de Coppola, mas sim de Kirsten Dunst. A câmara de Sofia já tem um estilo próprio, um tempo marcado, cheia de ironia e de vivacidade. Ironia e vivacidade que já vêm de As Virgens Suicidas... Mas Coppola fica-se por aí e, para compensar o que só conseguiu nos contrastes (exemplo gratia, os ténis allstar por entre os sapatos da rainha), temos uma Kirsten Dunst numa interpretação fantástica, que dispensava qualquer tipo de acessório.

Marie Antoinette conta a história dramática da rainha mais incompreendida de França, pegando numa Marie pura e virginal que vai ser corrompida pela corte do seu novo esposo: o rei Louis XVI. Pressionada para que o casamento se consuma, a rainha, ainda com dezanove anos, é forçada a ceder ao luxo e à mediocridade espiritual de Versailles. Tudo isto é narrado num ritmo frenético, sem quaisquer tentativas de sotaques afrancesados, "érres" acentuados ou finais de frase que parecem interrogações. Marie Antoinette fala com sotaque de New Jersey, tal como a banda sonora se reflecte com ritmos completamente fora de época. E ainda bem. Ouve-se Bow Wow Wow, ouve-se New Order, muitos anos oitenta sobre uma tela delirante de barroco, sem descurar os cravos e as cordas de dois minuetes de Rameau.

Então o que fica depois da parafernália de um filme que até impressiona, mas que parece tão imperfeito? Ficam momentos de bom cinema, momentos em que a realização é uma técnica simultaneamente milimétrica e alargada. O cinema cirúrgico de Sofia Coppola começa a desenhar-se em algo de mais aberto, de mais intenso, de menos preso. Tem o seu quê de tentativa de algo de muito bom, contudo, ainda se movimenta muito no status quo daquilo de que o americano está à espera. E, quando já pensávamos que Sofia Coppola tinha ultrapassado esse seu complexo de bilheteira, somos empurrados para a sala de espera... do seu próximo filme. Esperemos que a actriz e a realizadora trabalhem juntas novamente, mas, desta vez, sem que se vejam as lentes de contacto de Kirsten Dunst.

Título/Ano: Marie Antoinette (2006)

Escrito e Realizado por: Sofia Coppola

Elenco: Kirsten Dunst, Jason Schwartzman, Rip Torn, Asia Argento, Jamie Dornan.

sábado, novembro 18, 2006

PLANS - death cab for cutie


"Squeaky swing and tall grass

The longest shadows ever cast

The water's warm and children swim

And we frolicked about in our summer skin"

Este é o mais recente trabalho dos Death Cab for Cutie e, apesar de ser quase impossível comparar os seus diferentes álbuns, Plans é, sem dúvida, um colosso na carreira da banda de Seattle. Apresentam-se aqui ainda mais maduros do que em Transatlanticism (2003) e com letras mais confessionais e abertas do que em The Photo Album (2001).

Assim, temos um CD repleto de diferenças, cheio de contrastes para não cair no aborrecimento, tão odiado pelos Death Cab, de se ter nas mãos um CD em que todas as faixas se assemelham. E este CD tem a particularidade de ter como primeira faixa Marching Bands of Manhattan, que começa de uma forma onírica, com os dedos de Chris Walla sobre teclas, numa sucessão de acordes lenta e inspiradora, para se iniciar de logo de seguida um ritmo mais acelerado, já com piano e já com a voz de Benjamin Gibbard.

Sem desmistificar a qualidade soberba da música, há qualquer coisa nas letras escritas por Gibbard, qualquer coisa que torna tudo muito mais visível, qualquer coisa que ele condensa de uma forma tão perfeita que se torna arrepiante escutá-las. Ouve-se, ainda nesta faixa, Sorrow drips into your heart through a pinhole, just like a faucet that leaks and there is comfort in the sound.

Apesar de a primeira faixa ser uma óptima música de abertura, destacam-se neste álbum músicas lentas, com linhas melódicas simples, com letras poderosas, quase todas orientadas pelo piano de Walla, pela guitarra de Gibbard e por uma percussão fora do convencional. Não terão, de todo, deixado de ser uma banda indie¸ felizmente, mas apresentam um estilo musical mais convincente, mais puro e muito mais humano. Como exemplos, temos a melancólica Summer Skin e a nostálgica Brothers on a Hotel Bed, estas norteadas por um piano fantástico, e Stable Song e I will follow You into the Dark, com lugar para a guitarra acústica tocada quase num estilo folk, pleno de sentimento, num contraste fantasmagórico com as letras.

Como já nos vêm habituando, existem ainda algumas músicas semelhantes ao single de TransatlanticismSound of Settling; e à música Company Calls de The Photo Album. Estão presentes em Plans Soul meets Body e Crooked Teeth, duas músicas com um andamento ligeiramente superior ao estilo já enraizado na imagem que temos dos Death Cab, contando também com uma guitarra eléctrica moderada, segura e bem definida na partitura. Não obstante, conseguimos ainda surpreendermo-nos com o conjugar de melodias simples com ritmos complexos, assim como também nos deixamos envolver nas poderosíssimas letras.

O mesmo acontece quando a banda conjuga sons mais electrónicos - algo que se pode ouvir em vários álbuns desta banda - com instrumentos à partida menos abertos. Como exemplo, temos Different Names for the Same Thing, uma música variada sobre o seu tema, com apenas duas quadras como letra, que se inventa e se re-inventa a partir de sinopses harmónicas e misturas de piano/percussão com, a já referida, parte mais elctrónica.

Lugar de destaque para What Sarah Said, provavelmente a melhor música dos Death Cab e, inegavelmente, a melhor faixa deste CD, uma vez que preenche todos os requisitos que enchem os ouvidos de quem a escuta. Lugar para o piano que envolve palavras fortes cantadas numa melodia quase em perpetuum mobile, sem nunca ser redundante, sem nunca deixar de contar uma história, sem nunca deixar de sensibilizar. Lugar para uma alternância de ritmos, de percussão, de fraseado melódico, de sucessões de acordes perfeitamente enquadrados com o sentido das palavras cantadas.

Death Cab for Cutie reúnem neste álbum o que de melhor têm: a qualidade suprema das suas letras e uma música que ainda consegue ser diferente. Sem dúvida, este é um álbum que não deixa ninguém indiferente e é um álbum imprescindível. Assim, pode dizer-se porque é que os Death Cab for Cutie são uma banda incontornável, verdadeiros artistas e uma verdadeira esperança para quem, como eu, já comprava o fato preto para levar ao funeral da Música.

«But I'm thinking of what Sarah said:

That "love is watching someone die."

So who's gonna wacth you die?»


Título: PLANS

Artista/Compositor: death cab for cutie

Ano: 2oo5

The Departed

“I don’t want to be a product of my environment. I want my environment to be a product of me.”

Este é o melhor Scorsese. O da realidade. O que nos oferece histórias disfuncionais, dramaticamente reais, com o seu ritmo próprio (normalmente alucinante e frenético), cheio de gangsters, suspense e emoção. Filme de homens? Talvez. Scorsese assina com o seu The Departed, o retorno à aclamação critica e ao reconhecimento público em grande escala. Esta é uma entrada directa para a galeria de obrigatórios de Martin Scorsese.

Remake do filme de Hong Kong Internal Affairs, The Departed tem a sua sinopse mais que esgotada em todos os artigos e comentários. Ainda assim, resumamos. Jack Nicholson (alguém que explique a este homem que não é de bom tom fazer uma candidatura tão frontal ao Óscar) é Frank Costello, figura de proa da máfia de Bóston que um dia iniciou um rapaz nesse meio e fez dele um gangster, tratando-o como um filho. O “filho” é Matt Damon, no papel de Colin Sullivan, o infiltrado de Costello na Policia. Di Caprio é Billy Costigan, o aspirante a policia que se vê forçado, fruto do seu passado, a inflitrar-se no bando de Costello.

O grande mérito de Scorsese não passa tanto pela história, que aliás não é um original seu, mas sim pela forma como controla tudo. As coisas não vão acontecendo, ele faz as coisas acontecerem. Tudo parece premeditado. Nada na realização foi deixado ao acaso. Há uma vida neste filme para além do argumento. Há um ritmo. Há realidade. Há profundidade emocional na frivolidade de um gangster. É este aprofundar das realidades pessoais das personagens, bem demonstrada na personagem de uma psiquiatra, que revaloriza The Departed.

A psiquiatra (Vera Farmiga) é ainda um papel, acima de tudo, metafórico. A mulher que consegue chegar aos dois, nunca chegando realmente a nenhum, como a metáfora dos pontos de contacto entre um e o outro e, ao mesmo tempo, das suas distâncias. The Departed é, obviamente, um filme que se rege pela violência (nunca gratuita), pela agressividade e pela frenética perseguição de um infiltrado ao outro. Ainda bem. Só assim as cenas de maior aproximação psicológica (nomeadamente à dor e angustia da não identificação própria expressas em Di Caprio) não se tornam maçadoras, mas sim espaços para respirar.

Como se tudo isto não fosse bastante, The Departed é das melhores reuniões de actores dos últimos anos. Como se isto sim não o fosse, todos eles se encontram numa forma simplesmente deliciosa. Leonardo Di Caprio é, finalmente, um actor. Seguro, intenso e expressivo. Já não é a criança de Titanic, não perdeu o talento de Apanha-me se puderes e está mais maduro do que em Aviador. Este é um nome para seguir de perto na próxima década. Matt Damon é e será sempre Matt Damon. Nunca muito inovador, sempre competente, sempre capaz, naquele jeito de falso tímido. Eficaz como se deseja.

Para além destes, há Martin Sheen, Mark Wahlberg e Alec Baldwin, todos suportes de grande qualidade e manifesta experiência que mais do que servir de suporte aos outros actores, enriquecem positivamente o filme. E há Jack Nicholson. Começa a tornar-se complicado adjectivá-lo. Torna-se cada vez mais difícil fazer uma selecção dos filmes em que está magistral. Revelando-se cada vez mais como genial actor secundário, este é provavelmente o único actor que consegue impor irreverência e uma qualidade para além do descritível em praticamente todos os filmes que protagoniza. Das comédias românticas (Melhor é impossível) ao drama (Voando sobre um ninho de cucos), da melancolia (About Schmidt) ao universo Kubrick (Shining).

Sem o tédio em que por vezes caíam Gangs de Nova Iorque e O Aviador, The Departed é o melhor filme de Scorsese desde Tudo Bons Rapazes. Directamente para a galeria de clássicos do género. Provavelmente, directo também para os candidatos aos Oscars. Como merece Scorsese. Na retina, o plano final, a ironia mordaz, a provar que este filme é mesmo seu.

Título: The Departed (Entre inimigos)
Realização: Martin Scorsese
Elenco: Leonardo Di Caprio, Matt Damon, Jack Nicholson, Vera Farmiga, Martin Sheen, Alec Baldwin e Mark Wahlberg.
E.U.A., 2006.

Nota: 8/10

sexta-feira, novembro 17, 2006

The Rules of Attraction (As Regras da Atracção)


Depois de Less Than Zero, Bret Easton Ellis apresenta a sua segunda obra, As Regras da Atracção. Apesar de o seu livro mais conhecido ser, provavelmente, American Psycho, Easton Ellis traz algo de muito peculiar à literatura americana do século XX com The Rules of Attraction, conseguindo quebrar o mito, quase profundamente enraizado, de que os grandes vultos desta Arte nos E.U.A. se consumiram apenas no seu tempo.
A acção decorre num campus universitário em Nova Inglaterra, nos E.U.A., e tem como personagens narradoras jovens da alta sociedade americana dos anos oitenta. Nesta década tão sui generis, o autor recorre ao alucinante trocar de personagens narradoras, usando como analogia a panóplia musical e química correspondente ao período, para envolver o leitor numa teia complexa centrada numa aranha tão pequena e simultaneamente tão nociva: a juventude.
Não se pense, porém, que a banalidade do enredo ofusca a intensidade ao nível das personagens, uma vez que mergulhamos numa realidade tão surreal, repleta de seres profundos, cheia de tanta coisa e simultaneamente de nada. Quase parece inventada para perturbar o leitor, à boa maneira do polémico Easton Ellis, isto sem se tratar de um livro wakeup call.
Centra-se, então, num doentio triângulo amoroso e sexual. Lauren, Sean e Paul são os vértices desse triângulo, três jovens habituados ao consumo, ao prazer imediato e a tudo o mais que o dinheiro possa comprar. Contudo, o principal mérito de Ellis reside no facto de este autor não se centrar nos vértices, mas sim nos lados que os unem, sendo cada uma destas personagens e as suas correspondentes problemáticas apenas inerentes, mas nunca obrigatórias. Assim, lemos frases que são pensamentos transitórios, de cigarro em cigarro, de Valium em Valium, de cerveja em cerveja, numa vertente quase psicanalítica... os sintomas são o que permite chegar ao que é realmente importante: as causas que precedem todo o role de buscas por realidades inconsequentes e amorais.
Sendo assim, a prosa de Easton Ellis varia drasticamente enquanto Paul explora a sua bissexualidade e se envolve obsessivamente com Sean, enquanto este último arranca alguém de uma festa para dormir consigo (e de preferência para levar uma droga de qualquer tipo), e enquanto Lauren descobre o significado de amar por exclusão de partes. Os relacionamentos fúteis, desprovidos de sentimentos, lugares-comuns, tão friamente descritos, não são orientados pelas regras da atracção, porque as não há. Usamos o que há de mais primitivo nesta busca pelo prazer: o instinto, que também move uma história praticamente estática e perturbadora.
Ainda que os impulsos da cocaína, do álcool e do sexo alimentem um ciclo tão pantanoso cuja fuga dele se torne praticamente impossível, há espaço neste livro para encontrar algo de muito novo, algo de esperançoso, algo de transcendente até. Algo de superior ao vício, algo como a procura de uma realidade melhor, de uma realidade onde as coisas acontecem como sempre quiséssemos que tivessem acontecido. E isso torna As Regras da Atracção um livro fantástico, com uma prosa multifacetada no sentido quase literal do termo, e com um olhar distante e, ainda assim, tão próximo da ferida aberta. Sem deixar de ser um soco no estômago.
Sem dúvida, uma obra-prima da literatura americana e a obra-prima do polémico escritor homossexual Bret Easton Ellis, destacado aqui pelo formato de narrativa inovador que concebeu, mas também pela forma com que escolheu abordar temas tão intransigentes.
Título: The Rules of Attraction
Autor: Bret Easton Ellis

quarta-feira, novembro 15, 2006

Vivo #1 – Daft Punk no Festival do Sudoeste (III)


A primeira sequência de sons é retirada de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, de Spielberg, e recontextualizada para introduzir os espectadores num mundo onírico de comunicação musical e visual com uma forma de vida (a deles) diferente da humana. O aperitivo depressa se esgota e a primeira concatenação de elementos vocoderizados surge: um “Human Robot” eléctrico a galopar até atingir velocidade suficiente para a introdução de uma batida vigorosa. É a afirmação prévia da sua natureza artística (numa rara entrevista no Japão afirmam-se, de certo modo, como seres cibernéticos com um coração que bombeia sangue) mas também uma declaração de intenções relativa à encenação e à música. O Human After All, para alguns uma verdadeira sátira aos mecanismos de criação musical, ocupa os primeiros minutos, visto que suporta melhor que nunca o conflito entre a emoção, a tecnologia e a criação musical. Há um constante degladiar entre “Technologic” e a teia de acções que dita, a pretensão de reinterpretar o rock em “Robot Rock” e a emancipação última pretendida pelas máquinas em “Human After All”. E que melhor maneira de condimentar tudo isto do que com “Oh Yeah”, a acrescentar alguma sujidade e prazer?

Seguiu-se a inclusão do rectângulo mágico nesta profecia tecnológica com a aparência de hino de estádio (“Television Rules The Nation”) e a intercalação com a inesperada “Crescendolls” (curiosamente, esta música coincide com a ascensão da banda alienígena ao prime time televisivo em Interstella 5555), mas o melhor estava para vir: uma reinterpretação de “Too Long” imediatamente seguida de uma notável progressão a instituir, finalmente, o carácter épico e cósmico no espectáculo. Os sintetizadores a trabalhar em consonância e em aceleração (trazendo à memória Equinoxe de Jean-Michel Jarre), acompanhados por uma imagem suavemente heterogénea a inundar o LCD da rectaguarda lançaram as bases para esse momento contemplativo e inimigo da dança desenfreada. Eventualmente surgiria um baixo robusto para sossego das almas mais impacientes com a ausência de movimento, bem como o aquecer dos motores (“Steam Machine”) para a primeira revisitação nostálgica da noite – “Around The World”. Os Daft Punk sabem que este êxito não carece de companhia e suporte, pelo que naturalmente se limitaram a deixá-la fluir solitariamente, por um par de minutos, para deleite de todos os amantes de linhas de baixo. A provocação viria no embate de “Around The World” com “Harder Better Faster Stronger”, dois tratados de música electrónica. Conjugar dois elementos tão clarividentes como a soberba linha de baixo da primeira e o quase lema olímpico vocoderizado da segunda é tarefa que chegue.

Mais tarde, já decorrida a expansão tecnológica no mundo inteiro (“Technologic e “Around The World”) chega a vez de Romanthony nesse quase kitch refrão de “Too Long”, repetido em loop até o ritmo se aproximar do zero. Então logo se fez silêncio e o cenário escureceu. À primeira pausa o público manifestou-se efusivamente. E os gauleses decidiram-se pela experimentação: “Face to Face” e “Harder Better Faster Stronger” em sobreposição e em aumento de velocidade, com a segunda transformada em linha melódica a sustentar os vocais da primeira. Passou-se da desorientação geral (as pessoas têm um problema com sons vagamente descompassados) à dança num curto espaço de tempo, numa brilhante manipulação dos originais. A estabilização pop viria com “One More Time” e “Aerodynamic”, criando-se uma nuvem de pó sobre a multidão tumultuosa, especialmente aquela que subitamente desperta com o reconhecimento de um single.

O último terço do espectáculo centrar-se-ia em Homework e Human After All, provando que no fim de contas há uma certa afinidade entre ambos, em contraste com a ornamentação barroca de Discovery. Inseriram a remistura que fizeram para a Gabrielle (“Forget About the World”) e, daqui para a frente, não haveria como proteger os ouvidos dos decibéis. “Rollin’ and Scratchin’”, “The Brainwasher”, “Alive” e essa glorificação tecnológica à infância chamada “The Prime Time Of Your Life” electrizaram os mais cansados, obrigando-os a um último fôlego – “Steam Machine” e “Da Funk”. Esta última é de uma simplicidade que arrelia, visto que é imediatamente reconhecível recorrendo a uma sequência de bateria inicial escandalosamente simples. “Da Funk” seria, no entanto, a derradeira passagem meramente musical, porque para o final estava reservada a verdadeira sinopse de todo o espectáculo: a mitificação da dupla a cargo de “Superheroes”, a confirmação da predominância da raiz humana através de “Human After All” ao som da epopeia maximal “Rock’n Roll” e o desfile de rostos e lugares nos ecrãs frontais da pirâmide, na celebração da diversidade humana.

Em grande parte do concerto é difícil afirmar que haja uma clara demonstração de virtuosismo técnico. Em comparação com o álbum Alive 1997, o actual espectáculo peca ao não exibir semelhante passeio de habilidades e intuição musical (instantânea, pois claro). Parece haver uma menor preocupação em relação às passagens e à suavidade das mesmas mas, considerando que eles não regrediram na matéria, tal dever-se-á à mudança de objectivos. Ao longo do set foram-nos oferecidas passagens equilibradas e também cortes bruscos. O virtuosismo técnico é portanto apenas mediano, sacrificado em prol de um trabalho extraordinariamente mais ambicioso do que o Alive 1997. O alcance é o cerne da obra e a razão da sua aparente simplicidade.

A meta a atingir é das mais multifacetadas que se pode imaginar. Satirizar a criação musical, parabolizar a vida de dois robôs humanos e integrar as pessoas nesse fábula, rivalizar com outros monstros da ficção científica, incluir pequenas subtilezas e referências e tentar agradar todos os tipos de público são tarefas normalmente impossíveis de conjugar. A maioria dos músicos limita-se a tentar seduzir o público, fazendo-o cantar, dançar ou aplaudir, e não raras vezes nisso falham. O espectáculo montado pelos Daft Punk constitui então manifesto estético praticamente sem paralelo nos dias de hoje e um desafio para toda a comunidade musical.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Voz Própria #1 - Nuno Prata

Na sequência da análise que fizemos ao seu álbum, Nuno Prata aceitou responder-nos a algumas questões sobre a sua música e, em particular, sobre o seu mais recente trabalho, Todos os dias fossem estes outros.

Não é o primeiro com um passado numa banda conceituada e reconhecida a partir para um projecto a solo (Margarida Pinto, Manuel Cruz, Tim ou David Fonseca) mas é dos poucos que se consegue afastar muito notoriamente da música que a banda fazia, mantendo a qualidade. Qual é o peso e a influência da música dos Ornatos Violeta e dessa experiência neste álbum?
Os Ornatos pesaram sobretudo como experiência de vida. Como agora estou num outro papel, e os meios com que desenvolvi este trabalho foram consideravelmente diferentes daqueles de que usufruia na banda, profissionalmente sinto que comecei do zero.

Quais as grandes influências que sente ao ouvir-se?
O que facilmente reconheço quando me ouço são as questões que me levaram a fazer as canções e as circunstâncias que influenciaram decisivamente o modo de as trabalhar e gravar.
Qual o papel de Nicolas Tricot na sua música?
O Nico fez comigo os arranjos das canções. No disco, para além de músico foi técnico de som e produtor musical, papéis que com o método de trabalho que seguimos eram indissociáveis. É um dos músicos mais criativos que conheço. Toca vários instrumentos e tem uma forte personalidade musical que não se importa de por à mercê das canções.
Não é muito comum um álbum de estreia ter 19 canções. Apesar de ter resultado, à partida não seria um risco tantas canções?
É engraçado essa ser uma questão repisada. Para mim, o facto de o disco ter dezanove canções é um não-assunto. Mais tivesse tido oportunidade de gravar, mais incluiria no disco.Há seis anos que levo a sério as canções que faço e ainda só consegui gravar um único disco. Acho até que são poucas…
Como classifica a Indústria Discográfica em Portugal, em relação à abertura a novos projectos?
Não me parece que se possa dizer que existe uma indústria discográfica em Portugal. A ideia que tenho é que a "indústria" esmifra o mais que pode as galinhas dos ovos de ouro, e os projectos novos não têm muito que esmifrar, pelo contrário, têm de ser alimentados.
Depois deste CD e da boa aceitação que tem tido, que planos para o futuro?
Essa aceitação, apesar de gratificante, tem sido diminuta, não me permitindo até à data rentabilizar pessoal e profissionalmente o meu trabalho. Pode não parecer muito ambicioso, mas o meu grande objectivo é conseguir pagar o disco. Que planos posso fazer para o futuro que não passem por tocar estas e outras canções, e fazer mais?
(O Espaço de Crítica Artística agradece ao Nuno Prata toda a disponibilidade demonstrada.)

domingo, novembro 12, 2006

A Chave Perdida


“Há muitas maravilhas neste mundo, mas a maior de todas é o homem.”

Sófocles, em Antigona

Saberemos cada vez menos como olhar para o mundo que nos rodeia, como perceber as pessoas, as relações, os motivos. Para contrariar isto, vão surgindo cada vez mais temáticas artísticas, cujo leitmotif será não tanto dar-nos a comer uma filosofia de vida pré-comprada, mas tão somente obrigar-nos a pensar, a ter a certeza de que não estamos sós, que há outros, como nós ou não, mas há outros. Não será necessariamente uma corrente artística, talvez seja apenas um modus operandi, esta vontade de fazer pensar, de mostrar outras vidas, apenas que a realidade está lá fora. Acontece-o em Gus van Sant, acontece em Crash – Colisão, acontece em Há dias felizes, de Beckett, acontece em Saramago, acontece em Pulp Fiction. Acontece em A Chave Perdida.

Saberemos cada vez menos como apreciar a Arte, num mundo onde a informação é cada vez mais, mas cada vez menos precisa e onde o preconceito reina. Para contrariar isso, há apenas uma saída. A opinião própria. É assim, que nos cabe o papel de procurar a Arte como única saída possível para a condição actual. É ela que nos salva, e somos nós que salvamos ao procurá-la. Este é o sentido salutar e conveniente da existência artística. É por isso que vão surgindo bandas pequenas com qualidade, é por isso que actores novos se afirmam, é por isso que os concursos literário têm tanta afluência e crescem em número e é por isso que vale cada vez mais a pena assistir a Teatro Amador. De qualidade.

Saberemos cada vez menos quem é Álvaro Cordeiro, o autor de A Chave Perdida. Não será o mais puro e denso Álvaro Cordeiro que aqui se apresenta. Pela parte que me toca, ainda bem, tão somente porque aqui nos traz é uma peça de Teatro em jeito de contador de histórias. É o melhor de Álvaro Cordeiro que fica desta peça. As realidades que se cruzam, as personas que se criam, a verdade de não haver verdade senão a do quotidiano. Uma história de amor disfuncional, simplesmente existências amorosas com problemáticas concretas. Uma história simples, como gostaria David Lynch. A concentração do texto sobre o Homem, mais do que sobre a palavra, como gostaria Sófocles.

Saberemos cada vez menos o que fazer do tempo. Não será uma peça que traga público novo ao Teatro, porque lhe faltam nomes sonantes, porque não tem um texto pipoqueiro e de fácil acesso. Com as falhas que qualquer grupo amador terá de ter devido às poucas condições, com um texto não demasiadamente pesado, e uma encenação cada vez mais cinematográfica, ainda que presa ao Teatro do gesto, ao Simbolismo. Por vezes em demasia, por vezes não. Ficam as boas interpretações de Paulo Vaz e Andreia Alexandre e a certeza de haver teatro amador em Portugal. De qualidade.

A Chave Perdida esteve em cena até hoje no Auditório de Alfornelos, pelo Grupo de Teatro ExCena, com possível reposição no mesmo espaço.

Título: A Chave Perdida
Elenco: Paulo Martins, Andreia Alexandre, Ana Cabral, Sónia Ferreira e Paulo Vaz.
Encenação: Paulo Vaz

sexta-feira, novembro 10, 2006

3 Peças Breves

3 Peças Breves são, sem surpresa, 3 peças breves de três vultos do Teatro português. Pegando em histórias já existentes, reformulam-nas e reciclam-nas para lhes conferir uma adaptação ao fim teatral que desejam. Jorge Silva Melo, José Maria Vieira Mendes e Manuel Wiborg sãos os nomes que assinam estas 3 peças breves.

Jorge Silva Melo oferece-nos Num país onde não querem defender os meus direitos, eu não quero viver, a partir de Michael Kohlhaas de Heinrich von Kleist, uma peça que foi pela primeira vez posta em cena em Julho de 1997, no Festival X. Jorge Silva Melo é um nome que dispensa apresentações. Co-fundador do Teatro da Cornucópia, com peças publicadas (por exemplo, António, um rapaz de Lisboa), longas-metragens, documentários, larga ligação ao Teatro (nomeadamente, nos Artistas Unidos) e podemos ainda ler a sua crónica “Os Meus Locais” na revista Magazine Artes.

A peça breve de Jorge Silva Melo é, sem paninhos quentes, a melhor das três que o livro apresenta. Em jeito de contador de histórias, de bardo, como num serão antigo, junto a uma lareira, onde a tradição oral era a única forma de preservar as histórias, Jorge Silva Melo conta-nos a história de Michael Kohlhaas, um homem que não teve medo de ir em busca do que achava ser justo e acabou condenado por isso

José Maria Vieira Mendes traz-nos Dois Homens, a partir de Franz Kafka, posta em cena em 1998 no ciclo Sem Deus Nem Chefe1. Kafkiana é, de facto, a adaptação, mas em exagero e nem sempre pelas melhores razões. Com pouca fluidez e ritmo, a peça não se consegue desprender de Kafka, demasiado presente na adaptação. Quanto a Manuel Wiborg, nome do Teatro, Cinema e Televisão, assina O Amante de ninguém, a partir de textos de Dostoievsky, uma peça posta em cena no mesmo festival da peça anterior. Uma peça sobre o amor, a impossibilidade deste, em modos e contextos pouco ortodoxos, com histórias cruzadas e dois monólogos finais bastante interessantes.

Uma palavra para a Editora Cotovia que, felizmente, nos vai permitindo a nós, leitores, ter acesso a vários textos de Teatro, perfilhando-se como uma das principais editoras neste ramo.

Título: 3 Peças Breves
Autores: Jorge Silva Melo, José Maria Vieira Mendes e Manuel Wiborg

Nota: 5/10

quarta-feira, novembro 08, 2006

Erva Vermelha

Infelizmente o meu testemunho de hoje é sobre uma peça de teatro que já não está em cena. Erva Vermelha esteve em cena até ao domingo passado na Sala Estúdio do Teatro da Trindade. Para os que não assistiram a esta encenação perderam a oportunidade de serem inseridos num interessante debate sobre a criação teatral.
O texto original de Boris Vian não é dramático. O cenário era formado por três paredes brancas. Os actores não são dos nomes mais falados pelo grande público. No que é que isto resultou? Num espectáculo de enorme qualidade! Difícil de digerir, terá sido mesmo considerado um insulto por muitos teóricos classicistas. Mas a consequência que me parece mais lógica é a rendição à verdade de um conceito. Não está em causa a queda dos grandes clássicos, pelo contrário pretendo mostrar a diversidade que a arte teatral pode assumir.
Tudo começa no delirante livro de Boris Vian. Conceptualmente genial, Boris Vian expõe num pequeno texto a procura praticamente onírica, das causas para uma vida entediante. A personagem principal, um engenheiro, cria uma máquina do tempo para o auxiliar na sua busca. Todo o universo intrínseco à criação do autor é brilhante. O cão falante, as personagens, o cruzamento de histórias, as referências passadas resultam numa cadência ritmada e propícia à representação.
Cristina Carvalhal, encenadora do projecto, aproveita-se desse ritmo para desenhar uma hora de espectáculo. A palavra desenhar não está aqui posta por acaso. As três paredes brancas eram no fundo três enormes telas onde um desenhador presente em palco projectava a sua arte em tempo real. Fascinante como três paredes brancas se tornam no cenário mais completo das peças de teatro que tenho assistido. Os desenhos eram pormenorizadamente perfeitos e não se limitavam a ser cenário, eram mais uma personagem. Exímia encenação de Cristina Carvalhal.
Ana Lúcia Palminha, Flávia Gusmão, Pedro Carmo, Pedro Lacerda, Sara Cipriano e Tiago Mateus foram o elenco. Um elenco muito consistente e que transmitia uma segurança inabalável. Era visível que todos eles têm “muita escola” e estiveram os seis brilhantes. É injusto estar a destacar um nome, mas tenho que referir um momento: a viagem na máquina do tempo da personagem principal interpretada por Pedro Lacerda. Só alcance dos predestinados. Relembro que Pedro Lacerda não tinha qualquer elemento cénico de apoio e, no entanto, conseguiu persuadir-nos a embarcar na mesma viagem.
Erva Vermelha foi a segunda peça da trilogia do cão do Teatro da Trindade. Em cena está a última peça desta trilogia, Timbuktu.

Todos os dias fossem estes outros


“As canções surgem como tentativa de resposta a questões que me vou pondo. Influencia-me tudo aquilo que possa dar origem a essas questões. Na fase seguinte, dos arranjos, a minha grande influência é a musicalidade do Nicolas Tricot.”
Nuno Prata (Ler aqui)

Parece nascer assim uma das melhores duplas dos últimos templos. Nuno Prata e Nicolas Tricot. Pelo menos a julgar pelo trabalho do primeiro que agora surge, Todos Os Dias Fossem Estes Outros. Apelando ao trocadilho fácil, quem dera que todos os dias fossem esse outro em que Nuno Prata, por cima das dificuldades inerentes à industria discográfica portuguesa, decidiu gravar este belo álbum.

Para muitos, o nome de Nuno Prata não será estranho. Baixista de uma das melhores bandas da história recente da musica Pop-Rock, Nuno Prata é fiel (não sendo plagiador) às suas origens. Quem ouvir o cd, facilmente percebe que se fala dos Ornatos Violeta, uma banda que impôs um estilo próprio e inequívoco à custa tão somente da inovação. Manuel Cruz foi o primeiro a dar o salto (ou os saltos, tendo em conta o número de projectos em que se envolveu) e Nuno Prata vem agora provar que o talento da banda portuense não era fruto do acaso nem um one-man-show.

É um álbum de canções. Mentira. É um grande álbum de canções, um dos melhores dos últimos anos. Demonstrando-se um verdadeiro Song-writer, Prata vai trilhando este conjunto de 19 canções como um rally por entre o Bairro Alto. Uma noite, com as dores, angustias, boémias e bebedeiras mentais de Nuno Prata. Tudo no seu universo de escrita bastante assonante e intrincado.

Do melhor da canção portuguesa bebe Nuno Prata. De Sérgio Godinho à parte mais jazz de Jorge Palma. Do melhor Pop-Rock português bebe também Nuno Prata. Dos seus Ornatos aos Entre Aspas. Ritmo constante, em fundo Pop-Rock dançante, com o pano de fundo de um bar de Jazz. Sempre, sempre, dentro da mente de Nuno Prata. Ainda que ele diga: “Ainda que o sinta, dentro não é lado nenhum.”

A noite começa rítmica com sabor ao melhor dos Entre-Aspas “Não, eu não sou um fantasma”, seguida da agradável “Figuras Tristes”. Agradável como um vinho que corre na garganta. Mais à frente, “Nada é tão mau” é o single que passa nas rádios, a lembrar o jazz de Jorge Cruz aqui e ali. “Alegremente cantando e rindo vamos” conta com a participação dos amigos (onde se inclui Manuel Cruz). Segue a noite e encontramos “Esse não”, a prova de que afinal os Ornatos não acabaram. Ainda bem e siga a parada. A parada segue noite fora, sempre a escorrer, até que próximo do final da noite, vemo-la à porta de um bar. Alice. Música à Caetano Veloso, cheia de incessantes assonâncias e repetições. E porquê tudo isto? A resposta vem a seguir. Porque o homem invisível ainda acha possível.

Feliz da música portuguesa se todos os dias fossem estes outros.

Título: Todos os dias fossem estes outros
Autor: Nuno Prata

Nota: 7/10

sábado, novembro 04, 2006

Roots and Crowns

“Califone have always been stupidly underappreciated, and the further we stumble into the 21st century, the more this music starts to feel both familiar and necessary: Roots and Crowns is bluesy and soulful without reverting to revivalist schtick, and experimental without relying on blind cut-and-pasting. It is old and new, dirty and clean, alienating and accessible, sweet and ugly, organic and industrial, doting and vicious. It is one of the most quintessentially American records imaginable.”
em Pitchfork (Ler aqui)

Chega-nos da editora Thrill Jockey, este Roots and Crowns dos americanos Califone. Normalmente ligada aos campos tortuosos do experimentalismo e do folk, consegue a banda de Chicago trazer um álbum repleto de surpresas, novidades e misturas. Roots and Crowns traz Blues, Folk, Country, Rock, Electrónica. Serve-se como banda sonora, como musica ambiente, como conjunto de canções. Pode ouvir-se, pode cantar-se, pode pensar-se. O melhor de Califone.

Não será um cd muito coeso, certamente não se ouve do principio ao fim com a mesma força nem com a mesma toada, mas é sem duvida um dos melhores cds do género de 2006. Paradoxalmente, os Califone não esquecem as suas origens. Está cá o Folk como tentativa de padronizar tudo num som último. Ainda que isso seja difícil num cd que contém “Alice Crawley” (37 segundos de influência celta a servir apenas como sugestão para outra musica que se segue) e “Black Metal Valentine” (6 minutos e 16 segundos em melodias Rock que teimam em prolongar-se).

“Pink & Sour” abre o mote, com batida nativa por trás da voz de Tim Rutili, enquanto um ou outro riff se intromete. “Spider’s House”, em tom de Rock Alternativo é dos melhores singles do cd. Sequência lógica, ainda que mais puxada para o Folk parece “Sunday Noises”, da qual se afasta “The eye you lost in the cruzade”, mistura muito experimental de sons Rock. Tudo parece seguir a mesma onda, com mais ou menos melodia, até “The Orchids” (a tal, depois de “Alice Crawley”), outra boa musica, completamente dominada pelo Folk, ao fim e ao cabo, aquilo que os Califone dominam. Tudo segue encarrileiradamente nesta confusão de géneros até ao final pintado de Blues, “If you would”.

Califone a conseguirem temperar a sua história recente com inovação e um bocado de pragmatismo. O resultado é um conjunto desconjunto de musicas que prima pela qualidade, por isso mesmo. É possível fazer da Folk algo moderno.

Título: Roots and Crowns
Autor: Califone

Nota: 7/10

sexta-feira, novembro 03, 2006

A Gaivota

“TREPLEV
Isto começou na noite em que a minha peça foi posta de rastos.”


Irónico e premonitório o que Anton Tchékhov põe na boca de Treplev, personagem de A Gaivota, uma das maiores peças do dramaturgo russo. De facto, a peça viria a ser representada por uma companhia de Teatro clássico e seria, efectivamente, posta de rastos. A história de Treplev começava a assemelhar-se à de Tchékhov. Tal não será de estranhar, já que, quer um quer outro são escritores inovadores colocados numa sociedade inerte culturalmente que não admite o novo e idolatra o estabelecido.

Apreciar A Gaivota é, também, perceber a sua influência no teatro russo e mundial. Tchékhov não era o único a sentir a necessidade de uma revolução no Teatro russo. É desta necessidade que nasce, pela mão de dois dos maiores teóricos mundiais do Teatro, o Teatro Artístico de Moscovo. São eles Vladimir Nemiróvitch-Dântchenko e Constantin Stanislávki. Esta seria uma fundação histórica no Teatro russo e, não por acaso, o símbolo que escolheriam para o grupo viria a ser uma gaivota.

A Gaivota é uma peça de revolução. De revolução contra a concepção de Teatro em vigor na Rússia do final do século XIX; de revolução contra a apatia generalizada; de revolução contra os narodniks. Estes faziam o apanágio de uma vida pacata e tradicional na Rússia rural em oposição ao vício da cidade. É uma reacção a tudo isto, misturada com a necessidade de se opor ao classicismo ultrapassado do Teatro russo, que explicam a obra de Tchékhov.

A Gaivota é a metáfora disto mesmo por oposição de Treplev, o escritor novo, incompreendido e original, a Trigorine, o escritor tradicional, que se movimenta nas correntes artísticas conhecidas e é reconhecido. A desgraça e o desfecho previsivelmente trágico do primeiro face à opulência aparentemente plena de qualidade literária do segundo são o mote para uma comédia de costumes, que é no fundo um drama.

Um drama porque, como no resto da sua obra, Tchékov é mestre a criar uma atmosfera de vazio. Nada se passa, nada se pensa e nada se pode, nesta vida de província, pequenina, retrógrada, alimentadora do estabelecido que lhe chega da cidade. Não será um ambiente tão silenciante como em O Tio Vânia, mas trata-se do mesmo ambiente onde se cheira a inércia, talvez mais barulhenta pelo ruído das muitas pessoas que vagueiam pela casa.

Para além da concepção teatral, há também a oposição entre a representação clássica e um novo método que viria a ser estabelecido pelo Teatro Artístico de Moscovo (que representaria, com sucesso e aclamação, A Gaivota). Arkadina, mãe de Treplev, representa um Teatro ultrapassado, mas que ainda assim subsiste com sucesso, enquanto Nina representa a vontade de representar mal compreendida pelos valores vigentes. Tanto ela como Treplev são ainda sugados pelo ambiente rural que os impede de dar o salto convenientemente.

Tudo o resto, é puro Tchekhov a ser apreciado. Os silêncios, a inversão da lógica base da estrutura do texto teatral, a metáfora das personagens, a ironia mordaz do ambiente que cria, a critica social, a modernidade. Indispensável para qualquer amante do Teatro, pela sua importância histórica e pela modernidade textual. A Gaivota foi este ano posta em cena pelo Teatro da Cornucópia, com encenação de Luís Miguel Cintra.
Título: A Gaivota
Autor: Anton Tchékhov
Nota: 8/10