sexta-feira, dezembro 23, 2005

A confissão de Mário de Sá-Carneiro


"Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverosímil.
A minha confissão é um mero documento."

Mário de Sá-Carneiro em A Confissão de Lúcio.

Pouco restará, após a entrada (vulgo post, nos neologismos que nos assobram) que precede este texto, a dizer sobre a vida de Mário de Sá-Carneiro nestas poucas linhas que antecedem esta curta e esforçada perspectiva desta obra maior desse escritor maior. Não haverá, disso estou certo, nada que possa dizer que faça melhor conhecer o intelecto desse génio, senão a própria análise ao livro.
Livro estranho este, que nos dá por vezes a sensação de ser algo autobiográfico, não sem antes nos precaver que se trata, muito provavelmente, da obra maior do movimento surrealista entre nós. E afirma-se como tal, precisamente por buscar a essência desse movimento sem nunca o suplantar com o desmedido despropositado.

Em A Confissão de Lúcio, este escritor de vida breve (como convém aos génios de obras imortais) brinda-nos com a história de Lúcio, contada na primeira pessoa. Aquilo a que Mário, perdão, Lúcio, perdão, Mário, nos propõe desde o prólogo é contar a verdade. Não a verdade em absoluto, mas a sua verdade. Mas o que vem a ser a verdade? Nada mais simples de complicar. E é assim, por entre os meandros de uma mente literária, demasiado literária para ser sã, que Lúcio (ou Mário?) nos vai guiando pela sua vida e pela vida de Ricardo Loureiro, seu companheiro desde Paris (Paris, sempre Paris). Pelo meio, uma personagem feminina muito misteriosa e uma obra meio poética, meio dramatuga, meio autobiográfica. (Sim, eu sei, perfaz mais que a unidade. Mas este livro em si é mais que um só.)

De facto, neste livro, Sá-Carneiro mistura muito do que era a sua história com muito do que seria o seu futuro. Sem o saber? Não o saberemos, mas a verdade é que por meio desta obra vão-se desfilhando temas como o suícidio, a modernidade, a ânsia de grandes cidades, o culto de Paris e da sua tradição face ao burgo português, ou, uma vez mais, a loucura (vide Loucura, de Mário de Sá-Carneiro). Não sem antes, no meio da receita, temperar tudo isto com uma descrição mordaz e deliciosa da falsidade poética, do exagero na criação de movimentos artisticos e do snobismo intelectual.

Para além do mais, esta obra ganha um sabor especial por constituir uma espécie de versão portuguesa de O Retrato de Dorian Gray. Mas, ao contrário do livro do também brilhante Oscar Wilde, Sá-Carneiro troca as personagens, retira-lhes previsibilidade e aspira tudo o que está a mais no texto, deixando apenas génio, sem lacunas ou artefactos. Em comum com este tem a procura de uma nova estética e um surrealismo muito característico. Ganha Oscar Wilde em descrição da sociedade, ganha Sá-Carneiro em descrição da mente. Curioso nesta aproximação Wildesca, é o facto de, pioneiramente, Sá-Carneiro quase introduzir o tema da homossexualidade, tão presente na vida de Wilde.

Título: A Confissão de Lúcio
Autor: Mário de Sá-Carneiro

Nota: 8/10