domingo, março 04, 2007

Jornada de África

Nos cais de Lisboa as mulheres gritam, arrepelam os cabelos, algumas enrolam os filhos nos seus xailes, se pudessem escondiam-nos ao colo, outra vez pequeninos e só delas. Os pais passam em silêncio os dedos pelas fardas, não conseguem quebrar o pudor masculino do gesto e da palavra, mesmo que lhes apeteça agarrar nos filhos e protegê-los com seus braços. Tempo de lenços a acenar, xailes negros, lágrimas, rugas, ó mar salgado, quanto do teu sal.”

Romance editado em 1989, Jornada de África seria o primeiro grande romance de um Manuel Alegre até então maioritariamente conhecido literariamente como poeta. Talvez por isso a marca da poesia fosse, como ainda é, um cunho essencial na prosa do autor. Como noutros romances (vide, Rafael), o livro desenrola-se em pequenos trechos, como se vários poemas em forma de prosa fossem avançando a acção. A própria escrita de Alegre é uma escrita carburada e harmónica, onde belas frases se conjugam num todo.

Jornada de África traz-nos a história de Sebastião, militar português destacado para Angola, mas opositor do regime. Sebastião trilhará o percurso da generalidade dos combatentes da década de 60, entre o caos do conflito e a angústia das descobertas da vivência de guerra, e acrescentará a isso os seus fortes ideais revolucionários. Alegre opta por nos trazer uma visão do inicio do conflito, onde a resistência se forma, por oposição a uma visão mais tardia e com consequência directas na revolução de 1974. É nos primeiros anos de 1960 que este retrato de caserna e de mato se estilhaça.

Sebastião será os olhos através dos quais veremos uma realidade corrompida como qualquer guerra. Sanguinolenta e desprovida de sentido. Mas é também por ser a sua visão, que acedemos à procura amorosa que culmina no amor com uma nativa; que partilhamos amizades e inimizades; que sugamos todas, e serão várias, as referências literárias que, entre uma granada e um concílio, despontam. Camus, Rilke, Pessoa caminham lado a lado com a poesia africana.

Como um poeta ainda, Manuel Alegre estabelece no seu romance um paralelismo a puxar pela metáfora com a obra de 1607 de Jerónimo de Mendonça, também ela de nome Jornada de África. São constantes as referências à batalha de Alcácer-Quibir. Desde o destino premonitório do protagonista à conjuntura que se desenha similar entres os dois países, o de agora e o de então. É o retrato de um país perdido na sua cega cobiça que aqui se descreve, muito à custa do sangue dos seus filhos. Ponto de partida, o livro, para o futuro da prosa de Manuel Alegre. Ponto de partida, a história, para uma revolução que se anuciava.

Título: Jornada de África
Autor: Manuel Alegre