quinta-feira, dezembro 22, 2005

Ensaio sobre o Racismo

O título Colisão é, de facto, um nome exemplar face ao que assistiremos neste filme de Paul Haggis, conhecido essencialmente pelo argumento de Million Dollar Baby. O que nos é apresentado é duplamente ilustrado no título. Se, por um lado, o filme trata de uma complicada teia de relacionamentos e conhecimentos entre personagens aparentemente desligadas (Onde é que eu já vi algo assim, Magnolia?) numa colisão de interesses e feitios; por outro, todo o filme é uma grande espiral em rota de colisão sobre o racismo.

Mas, ao contrário do filme de Paul Thomas Anderson, Colisão não trata de um enredo onde à custa das personagens se constroí uma história. Aqui são as personagens que desconstroiem uma história dada e é nelas que reside a força deste filme.

Construído (ou desconstruído) à volta do racismo, em Colisão não existem moralismos, preconceitos, terapias de choque ou exageros. Apenas realidade. É esta base bastante empírica e com uma visão à Gus Van Sant, onde nada é dado julgado, mas tudo por julgar (lembram-se de Elephant?) que vai levando o filme para uma inevitável implosão social sobre os seus próprios valores (como o exemplifica a subversão do papel policial).

Peca, contudo, Paul Haggis por uma exponencialização exagerada dos sentimentos das personagens e por um fim, cíclico (como começa a ser de bom tom...) e de reduzido impacto, chegando mesmo a ser paradoxal. Se por um lado afirma a existência da esperança nas próprias pessoas é nestas que exprime a ciclização repetitiva da vida. Colisão, ao fim e ao cabo, não é, como muito se tem dito, um filme sobre o Bem e o Mal, mas, isso sim, sobre a inexistência de fronteiras definidas entre os dois.

Título: Colisão
Realização: Paul Haggis
Elenco: Matt Dillon, Don Cheadle, Sandra Bullock, Brendan Fraser, Thandie Newton, Ryan Phillippe, Larenz Tate, Jennifer Esposito, William Fichtner, Nona Gaye, Terrence Howard, Michael Pena, Shaun Toub, Bahar Soomekh
EUA, 2004

Nota: 7/10

1 Comments:

Blogger F. Penim Redondo said...

COLISÃO, “Crash”, é um grande filme sobre a complexidade (improbabilidade ?) da comunicação entre os humanos.

Quase todos as vítimas deste flagelo insistem, no filme, em dizer “eu também sou americano” mas os seus “mundos pessoais” mostram-se irremediávelmente distantes. COLISÃO não trata específicamente das questões sociais e raciais da América mas sim da incomunicabilidade humana; nós podemos dizer “eu também sou humano” mas as dificuldades de comunicação persistem.

Em Portugal notou-se muito a passagem de apenas um posto de televisão para os actuais quatro (agora aumentados pelo cabo). De repente deixou de ser garantido que o colega do emprego tinha visto, na véspera, o mesmo debate ou novela como acontecia antes o que sem dúvida facilitava o diálogo por, ao menos, se partir de objectos idênticos.

Na vida, através dos sentidos, cada um de nós vê constantemente “um programa” diferente. Como se isso não bastasse o nosso mecanismo interpretador do “programa” não funciona da mesma forma que o do nosso vizinho do lado, ou do prédio da frente.

Do “mundo pessoal” do outro o que nos chega são apenas objectos materiais; um papel com signos, umas vibrações do ar, a rugosidade da sua pele, uma expressão do rosto...
Ou seja muito pouco, vestígios que penosamente tentamos decifrar.

Em COLISÃO o que colide não são essencialmente os automóveis mas sim os “mundos” que vogam no vazio de Los Angeles (nas cenas iniciais há uma referência muito interessante ao facto de os habitantes da cidade não terem oportunidade de se cruzar como numa cidade normal).

A sociedade humana, perante a incomunicabilidade, respondeu com as classificações, as categorias, os estereótipos (o preto, o operário, o chinês, o sem abrigo, o árabe, o “pato bravo”, etc, etc.). Em sociedade é quase impossível sobreviver sem estas formas de simplificação/deturpação. Não podemos, óbviamente, falar durante umas horas com todos aqueles com que nos cruzamos para tentar perceber melhor a sua individualidade.

O autor de COLISÃO brinca com o expectador quando, por exemplo, os dois pobres negros vítimas de discriminação se convertem de um momento para o outro em ladrões de automóveis e as pobres vítimas do roubo do automóvel são afinal também desiquilibrados racistas eivados de preconceitos. Ou seja, as taras justificam os preconceitos e os preconceitos justificam as taras, num jogo rotativo que não tem fim.

O drama social reside na transposição para as relações interpessoais das categorias sociológicas, ou dos estereótipos, que são imprescindíveis para a “compreensão” da realidade social: as classes, os grupos étnicos, os escalões etários, as orientações sexuais, e outros.

A cena em que o polícia mata o negro a quem tinha dado boleia por pensar que ele vai puxar uma arma quando se tratava de tirar do bolso uma imagem de um santo, ilustra bem o facto de as circunstâncias nos criarem muitas vezes armadilhas fatais. Neste caso uma decisão baseada no estereótipo mas da qual dependia a vida ou a morte.
Brecht trata este tema do “expectável” em termos sociais e de classe quando, em “A Excepção e a Regra”, durante a travessia do deserto o carregador entra de noite na tenda do patrão para partilhar com ele um restinho de água e é abatido com um tiro.

O patrão é absolvido em tribunal pois o juiz reconhece que nas circunstâncias verificadas, tendo nos dias anteriores o patrão tratado brutalmente o carregador, o patrão nunca poderia esperar deste um acto de generosidade.

12:07 da manhã  

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