sábado, março 31, 2007

Solo Piano Music (Complete Published Piano Music)

Integrando a colecção de discos da Naxos chamada American Classics, a obra completa para piano solo do compositor Samuel Barber (1910-1981) é um daqueles CDs que se encontra nos confins da prateleira das séries económicas. No entanto, e apesar de ter uma capa nada atractiva e um grafismo que roça o assustador, este disco contém uma excelente gravação de 1995 sob a mestria de Daniel Pollack. Reúne a totalidade do trabalho publicado do compositor americano, que sempre se manteve à sombra do seu conhecido Adagio de um Quarteto de Cordas (posteriormente adaptado para Orquestra de Cordas).

À descoberta da partitura de Barber está Daniel Pollack, o pianista californiano que actualmente lecciona em Yale, apesar de ser protagonista de uma carreira cheia de sucessos e de interpretações maravilhosas. Ganhou inclusivamente, com a Sonata de Barber, a Competição de Piano Tchailovsky em Moscovo no ano de 1958. Assim, este disco oferece uma proposta irresistível: (re)descobrir a música de Barber – que vai muito além do já conhecido Adagio – e auscultar a consagração de Pollack sobre as teclas.

Samuel Barber conseguiu o que a maior parte dos compositores não conseguiu, embora tenha sofrido consequências que a maior parte dos seus colegas, quer tenham sido eles seus contemporâneos ou não, não sofreram. No que toca ao facto de provocar, de inovar, de ser diferente, Barber sempre conseguiu fazer frente ao estabelecido (o melhor exemplo será relativo à sua vida particular, onde a sua homossexualidade, assumida aos dezoito anos com a relação que estabeleceu com Gian Carlo Menotti, sempre foi aceite em qualquer meio). Assim, Barber conseguiu usar a dissonância, os ritmos complexos, a visão mais pungente da harmonia a favor de uma busca pelo neo-Romantismo, pelo lirismo dos seus antepassados, pela perfeição mais ao nível dos conteúdos nas suas peças para um instrumento a solo. Ainda que poucos conheçam a sua obra.

Um excelente exemplo da genialidade de Barber, e um magnífico marco na música americana, é a monumental Sonata para Piano, Opus 26. A Sonata, intempestiva e tecnicamente feroz, foi durante alguns anos evitada, embora nunca ignorada, tornando-se na obra americana mais tocada em recitais de piano solo, assim como uma peça obrigatória na maior parte das competições.

Composta em dois anos, a obra tem quatro andamentos. O primeiro, Allegro Energico, inicia-se com um cromatismo frio e duro, no qual se desenrola um tema mais lírico, depressa esbatido pelos intervalos dissonantes expressos na brusquidão da resolução dos fragmentos musicais vários. Na conclusão do andamento, temos presente um emaranhado mais indistinto, embora se dissolva em pequenas e leves carícias para o finalizar. O segundo andamento, Allegro Vivace e Leggiero, é uma espécie de super-scherzo que, embora se possa dizer divertido, não é de todo histérico; consegue, no entanto, inverter o final do primeiro andamento sob a forma de um alegre jogo de notas agudas. O terceiro andamento é um Adagio Mesto que se caracteriza com a expressividade das notas mais graves e do ímpeto com que a melodia, nunca forçada, se esbate sobre o lirismo da reminiscência do tema principal. O quarto e último andamento é uma Fuga: Allegro Con Spirito, sendo de longe o andamento mais rico harmonicamente, mais confuso em termos de forma, mas também facilmente descodificado à medida que caminha para o esmagador e genial final.

O segundo módulo deste disco diz respeito ao trabalho Excursions, Opus 20, uma obra de Barber que reflecte as influências de outros estilos musicais – que variam desde o boogie-woogie à música mais tradicional. Constituem, assim, quatro peças bastante interessantes, sendo a primeira um andamento Un Poco Allegro, revelando-se sobre a forma do boogie-woogie, com um ritmo moderno e vivaz. O segundo, In Slow Blues Tempo traduz a harmonia, a melodia e o ritmo dos blues. Já o Allegretto da terceira peça traz muito do Romantismo alemão misturado com secções menos líricas e mais atípicas, embora o bucolismo e a expressão que se sentem nesta Excursion sejam muito lidas nas Kinderszenen de Schumman, por exemplo. A quarta e última peça, um Allegro Molto, tem uma componente mais étnica, sem nunca se soltar de um ritmo que já Debussy induzia em variadíssimas formas na sua obra.

O Nocturne – Moderato é a peça que Daniel Pollack converte de um modo particularmente irrepreensível. Neste Nocturno, Opus 23, Barber invoca, no subtítulo e na estética, John Field, o pianista irlandês que inventou a forma do Nocturno. Nesta peça, Barber relê a poesia que compositor polaco Fryderyk Chopin eternizou nos seus Nocturnos, transformando o seu Nocturne – Moderato na sua obra mais idílica e mais etérea que, embora se mantenha fiel à profundidade da busca pelo Romantismo, não esquece a orientação moderna em todos os maneirismos que exemplifica.

Em oposição a uma linha mais de exteriorização, Os Three Sketches são três curtas peças que Barber escreveu e distribuiu pela família. O primeiro, Love Song: Tempo Di Valse, Allegretto, é uma peça com apenas vinte e quatro compassos, que Samuel Barber traduziu numa valsa doce e nostálgica, e que dedicou à sua mãe. O segundo, To My Steinway (To #220601): Adagio, é igualmente uma valsa curta, com quinze compassos, dedicada ao piano da sua infância. O terceiro e último, Minuet: Tempo Di Minuetto, foi escrito com base no Minuet número 2 WoO 10 de Ludwig van Beethoven, tendo sido dedicado à irmã de Barber. É de particular interesse e de especial beleza a forma simples com que o compositor consegue exprimir afectos e ternura com apenas alguns compassos para colocar notas. É fantástica a forma com que esboça as melodias mais inovadoras e intimistas, ténues por detrás de formas convencionais.

Em seguida, Pollack oferece o Interlude 1, "For Jeanne" – Adagio ma non troppo, uma obra mais ou menos ao estilo de uma rapsódia, que traz muito do Romantismo de Brahms ou mesmo Reger, sem nunca se afastar da linguagem musical e das tonalidades do século XX. Aqui, Barber exige ao executante uma exploração imensa do teclado, assim como alguns intervalos que requerem um especial esforço de dedos. É um trabalho dedicado a Jeanne Behrend, uma conhecida pianista americana. A Ballade – Restless é o trabalho seguinte no alinhamento do disco. Escrita num período particularmente difícil, a Ballade reflecte o estado mental do compositor, sendo sombreada pelo cansaço da abertura e pelo antagónico virtuosismo da secção do meio. A obra termina recapitulando o início num pianissimo misterioso, fechando uma partitura bastante simples e compacta, que é simultaneamente um exercício de uma comovente expressão musical.

Como forma de terminar o disco, Daniel Pollack interpreta os Souvenirs, Opus 28, seis peças originalmente compostas para quatro mãos sobre as teclas. Samuel Barber adaptou as peças para piano solo e mais tarde para orquestra. Esta obra diz respeito a seis pequenos trechos variadíssimos. Uns trechos são mais humorísticos, outros mais dramáticos, oscilando entre ritmos (Scottische: Tempo Di Schottische, Allegro ma non troppo é um exemplo), formas (Pas De Deux: Adagio, uma forma típica do ballet), sempre com um discernimento moderno bem caracterizado e com uma elegância e precisão sublimes na harmonia e na melodia.

Eis um disco que explora a musicalidade imensa de Pollack e a obra inconfundível, cheia de recursos inesgotáveis, de um compositor fantástico e tão facilmente olvidável e substituível por uma obra que alcançou o sucesso. A leitura do pianista é absolutamente digna de destaque, não só no modo como cruza a expressão artística com a nota escrita, mas também pelo modo como visualiza o afecto na obra de Barber. Uma excelente interpretação da obra do mais genial dos compositores americanos (que, para quem não sabe, escreveu mais do que o trecho que se ouve em Platoon).



Título: BARBER: Solo Piano Music

Artista/Compositor: Daniel Pollack toca Samuel Barber

Ano: 1998 (à venda agora)