sexta-feira, dezembro 23, 2005

Céu em Fogo - Oito Novelas


"Sá-Carneiro não teve biografia: teve só génio. O que disse foi o que viveu."
Fernando Pessoa

Na sua trágica existência de 26 anos (vida tão curta, levou-a apenas em juventude), Mário de Sá-Carneiro soçobrou perante a existência moderna que não cumpriu o que lhe prometeu. Se o Modernismo o adoptou, e dele Mário se tornaria, se não corifeu, inegável figura de proa, tal dever-se-á exclusivamente à insatisfação (quiçá neurose) que lhe tomava o corpo, na sujeição a um mundo em nítida preparação para a dita era moderna. Porque se o Modernismo aí vinha, estrepitoso, munido de um novo sentir do tempo, na viragem do século, que lhe providenciava uma substância única (um segundo renascimento do homem), algo se abandonava, deixando para trás um legado profundo, inebriante para uma geração de escritores. É esse desprender das estéticas derrotadas que custa a Mário de Sá-Carneiro, e que simultaneamente o singulariza no seu tempo e entre os seus contemporâneos.

A época resplandecia de esforços estéticos numa reacção ao Decadentismo e ao Simbolismo, já falhos de chama; novas formas e conteúdos procuravam a maturação que qualquer movimento precisa para vingar e durar, num sentido pragmático; a Europa Ocidental modificava-se, no dealbar do século XX, com as maravilhas da técnica e o então primitivo desencanto com esse mesmo progresso; era, pois, absolutamente necessário expôr todos os modelos estéticos preexistentes e julgá-los no tribunal da modernidade (Mário de Sá-Carneiro, e outros seus pares, mais que sabê-lo, sentiam-no); em excessos, não há transição que se lhe compare.

Um ano antes de por termo à vida, num quarto em Paris, Mário revela o seu último projecto, em prosa, com o qual entraria merecidamente na viagem do risco, do culto do onírico. No livro Céu em Fogo – Oito Novelas, Mário de Sá-Carneiro culmina o seu império estético de uma maneira fulgurosa, admitindo que a busca da beleza não é um processo racional, mas sim uma força do temperamento. De que trata, então, o Céu em Fogo? Imagine-se um tal céu, verdadeiramente ardendo. Quem se encontrasse sobre a iluminação que uma cúpula de labaredas forneceria, ver-se-ia rodeado de uma paisagem também avermelhada, fervente, vaga e distorcida. Um ambiente assim, se existisse positivamente, transformaria a percepção racional (e razoável) num misto difuso e contrário a qualquer acto peremptório, plenamente sinestésico. Serve a imagem bizarra para a construção das novelas, embora elas se passem, evidentemente, em sítios normais. Importa, no entanto, ter em conta que as relações usuais do quotidiano são inválidas em vários momentos do livro, como se o leitor fosse inadvertidamente ludibriado. Desengane-se quem pense que Mário de Sá-Carneiro nada denuncia da experiência mundana: há o encanto pelas grandes capitais europeias, excepto Lisboa; há o fascínio pela mentalidade russa, com o que tem de austero e inspirado (quase todas as novelas têm uma personagem de origem russa); há o culto da beleza feminina, mormente a física (magistralmente conseguida na novela O Fixador de Instantes).

São oito novelas de mistério, do indefinido e do intermédio da natureza humana - e que se interpreta disto? -, onde as personagens vagueiam na recusa do tédio e na angústia que é sentir o tempo, mas apenas aquele que escorre; onde as personagens fantasiam estratagemas e urdem artimanhas para vencer esse conflito; onde as personagens são forçadas a admitir, frequentemente, da inevitabilidade da morte; onde as personagens roçam a loucura e cultivam, directa ou indirectamente, o suicídio; onde as personagens encaram o fim da vida como o último território por mapear; onde o suicídio não é o fim da vida mas, acima de tudo, um acto heróico - a derradeira coragem estética.


Céu em Fogo - Oito Novelas. Um livro de Mário de Sá-Carneiro.
Relógio de Água Editores, Dezembro de 1998.