terça-feira, outubro 31, 2006

Vivo #1 - Daft Punk no Festival do Sudoeste (I)


Perdoem-me a demora e a consequente falta de actualidade, mas por motivos absolutamente ponderados não me foi possível atender ao meu próprio desejo de aqui destrinçar a exibição da banda francesa. Motivos esses que se prenderam com a falta de tempo útil para convenientemente analisar a actuação em virtude da excelência da mesma. Era necessário visionar novamente o concerto para capturar completamente o sentido global do set, o seu virtuosismo técnico e os seus tiques e detalhes fundamentais. Perante um cenário tão eloquente e assombroso, uma verdadeira ópera de luzes e formas, um relato no sentido estrito saberia a pouco. Seria intelectualmente desonesto e uma profunda desconsideração somente descrever os picos de excitação do público, as melhores passagens musicais, o ambiente instalado durante esse final de noite e a aparência geral da parafernália de néons e écrãs. Convinha aguardar por uma mais que apropriada edição em DVD para fazer o proposto. A internet, no entanto, encarregou-se de nos facilitar a tarefa, e a comunidade cibernáutica pode agora rapidamente deitar mão a vários vídeos do concerto (ilicitamente filmados e frequentemente de fraca qualidade) e a uma gravação áudio de boa qualidade, completa, levada a cabo ou pela dupla ou por outros com o consentimento de alguém da produção do espectáculo. Sabendo-se que os Daft Punk construíram o set previamente, introduzindo apenas ligeiras alterações de actuação para actuação, a versão agora difundida é uma boa aproximação ao que se passou na Herdade da Casa Branca.

O interregno prolongou-se por cerca e sete anos. Sete anos sem uma única actuação ao vivo serviram para criar a incógnita (porque será que não dão concertos?); muitas suspeitas e um rumor (a falta de paciência, a preguiça, a solidificação estética do lado não humano do duo e até o suposto dano auditivo irreversível de Thomas Bangalter); e um juízo presunçoso (seriam, afinal, estrelas desconhecidas cuja suprema arrogância arrancava do contacto com a gente comum, mesmo que na forma de robôs. Dos álbuns editados apenas o primeiro, Homework, merecera tradução directa. Discovery, essa viagem fantástico-emocional anda incompreendida e ostensivo fenómeno de vendas, carecia de transposição para o palco ou cabine. Human After All, por seu turno, prenunciava a continuação do silêncio, potenciada pela recepção mista do público e da crítica. Após a edição deste último, em Março de 2005, seguiu-se um período de relativa acalmia, cimentando-se na comunidade musical um sentimento de indiferença face à morte progressiva do duo francês.

Augurava-se o fim de um ciclo e a decadência criativa da banda, aparentemente incapaz de se libertar da ligação com o lirismo tecnológico num mundo onde o fascínio pelo artificialismo musical já fora mais evidente. Com efeito, a mensagem, a forma e a própria música como que denunciavam um certo esgotamento e avisavam para um possível ocaso. A frescura dançável de Homework e o delírio ornamental de Discovery embatiam na muralha sonora de Human After All. Ironias e significados excluídos, o último álbum é uma intrigante manifestação de frieza, repetição e aspereza, num registo claustrofóbico quanto baste no panorama da música electrónica. O disco assenta num combinado de influências que vão da frieza maquinal dos Kraftwerk à rudeza dos Black Sabbath, do funk dos Breakwater à sobreposição de camadas de Juan Atkins (vide Model 500), mas resulta numa sonoridade fechada sobre si própria e repetida até à exaustão, excepto na faixa “Make Love”, onde um terno e encantador loop aumenta progressivamente de volume, marcando uma pausa na audição do disco (à imagem de “Nightvision” em Discovery) . Compreende-se o defraudar das expectativas de muitos dos admiradores de Homework e Discovery, talvez não tão sedentos de manifestos conceptuais quanto de sofisticação meramente musical. No entanto, o humor e os significados são realmente indisfarçáveis em Human After All. Desde o contraste entre o seu disco mais despudoradamente tecnológico e o título do mesmo, passando pela melodia murmurada através do vocoder na pista que lhe dá o nome e pela substituição da ordem “Harder Better Faster Stronger” pelo novo comando “Technologic”, Human After All é mesmo um condensado de pequenas provocações e mensagens subliminares, mais nitidamente que Homework ou mesmo que Discovery.

Digerido tudo isto, pairava sobre os Daft Punk aquele distinto perigo da desilusão por parte do público leal, do esquecimento pela crítica e da relativa indiferença pelo resto. Entretanto chega 2006, e três novidades foram sendo anunciadas, aos soluços: a edição de uma compilação (Musique Vol. 1 1993-2005), a apresentação em Cannes de um road-movie musical acerca de um casal de robôs (Electroma) e, finalmente, uma tournée mundial marcando presença apenas em grandes festivais, num total de 16 concertos, a finalizar este mês em Santiago do Chile, Buenos Aires e Miami.