sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Prateleira #10 - 1996

Ryuichi Sakamoto tem aproximadamente oitenta álbuns disponíveis no mercado, sendo a grande maioria bandas sonoras. A destreza deste compositor japonês é imensa… movimenta-se nas bandas sonoras com uma agilidade estética e uma pertinência absolutamente maravilhosas. O seu antepenúltimo disco diz respeito à banda sonora do filme Babel de Alejandro González Iñárritu.

No seu álbum 1996, Sakamoto reúne David Nadien, Everton Nelson e Jacques Morelenbaum num trio de piano, violino e violoncelo. Sakamoto senta-se ao piano, Nadien é responsável pelo violino em Rain e The Sheltering Sky, Nelson faz uso do violino nas restantes faixas, e o violoncelo fica a cargo de Morelenbaum. Depois de um percurso repleto de bandas sonoras de grande qualidade e de grande adaptação na tela, seria de esperar qualquer coisa de muito bom se o compositor algum dia compilasse os seus melhores momentos num disco só. Sakamoto fá-lo, longe da música electrónica e do pop (onde se movimentou com grande facilidade e qualidade, também), num disco onde adapta as suas mais belas partituras tocadas por um trio.

O trio de cordas, muito usado por grandes compositores como Schubert, Prokofiev, Bartók, entre outros, consegue atingir níveis de grade fluidez musical, o que, aliado a uma simplicidade instrumental, permite momentos de grande beleza. Os três instrumentos em destaque permitem uma conjugação muito própria – que Sakamoto desafia, muito bem, diversas vezes – levando à exploração de combinações de ritmos, vozes melódicas e harmonizações muito interessantes. No entanto, ainda que com alguns bons sobressaltos, Ryuichi Sakamoto constrói uma linha melódica que é expressa por um dos três instrumentos, desenvolvendo-a, depois, a partir do conjugar dos restantes. Um exemplo claro deste tipo de fórmula, que, como já referi, não é perfeitamente linear, é bastante visível aquando do desenrolar de uma melodia no piano, atacada posteriormente pela entrada das cordas.

A primeira faixa deste disco é A Day A Gorilla Gives A Banana, uma faixa que se inicia com uma melodia no piano, acompanhada de seguida pelas cordas, desenvolvendo-se assim uma conjugação harmónica muito agradável, acompanhada por um ritmo diferente e bastante saliente.

Segue-se Rain, uma faixa onde a música começa abruptamente, com o violino a demarcar a melodia, acompanhado pelos acordes em staccato no piano. A música continua, explorando o tema, desenvolvendo a melodia, acabando até para se passar a ter a linha melódica no piano e um acompanhamento por parte do violino, subvertendo assim algo de muito convencional neste tipo de conjugação instrumental. Destaque para uma secção intermédia muitíssimo bem conseguida e para a cadência que leva de novo ao tema original, já com a voz grave do violoncelo a realçar o que se diz no piano.

Bibo No Aozora traz-nos um ritmo mais lento, mais comedido, sem hesitações, o que, apesar de não ser necessariamente mau, fica aquém do toque não convencional que se espera. Ainda assim, a melodia é de extrema perfeição e as suas variações são perfeitamente deliciosas.

The Last Emperor constrói-se sempre com base no bonito fraseado das cordas, trazendo algumas reminiscências da música oriental. Prima, assim, por uma diferença ao nível do que ouve, não tanto ao nível do conteúdo. Alguns trechos do piano na música trazem, também, um pouco de algumas partituras mais excêntricas de Debussy.

1919 é, de longe, a faixa mais perturbadora deste disco, no entanto, é também uma das mais interessantes. Para além dos três instrumentos que estão na ordem do disco, acrescenta-se uma voz sobre os acordes rasgados no piano e a insanidade musical do violoncelo. Relembra os quartetos de cordas de Nyman pela adição de uma voz demente sobre a música, e algumas obras de Glass pela natureza intempestiva da partitura.

Seguidamente, escuta-se Merry Christmas, Mr. Lawrence, uma das faixas mais bonitas deste disco. O piano começa, ténue e melancólico, até à entrada de um tremolo das cordas que se silencia no segundo em que o piano retoma a melodia, primeiro mais grave para depois retomar as notas mais agudas. O violino fica, posteriormente, a cargo da melodia, sempre suave e na mesma disposição dos intervalos no piano. Há, então, um retomar do tema no piano, para depois se converter, com uma passagem absolutamente brilhante, numa sequência impressionantemente perfeita de acordes no piano e de uma marcação de um ritmo brilhante no violoncelo. Aqui, o tema melódico regressa, belíssimo, no piano até que muda para o violino no seu tom original, sempre acompanhado pelo ritmo no piano e no violoncelo. Desenvolve-se o tema crescendo a intensidade… o final surge com um novo tremolo e uma repetição rápida de notas no piano que cedo se convertem ao silêncio.

M.A.Y. In The Backyard oferece-se enquanto um fantasma das Gnossiennes de Satie, embora cedo tenha algumas alucinações pelo meio, bem mais ao estilo de Bártok. Ainda assim, consegue resgatar passagens muito bem explícitas, excelentes encontros de estilos e de maneiras de fazer música. Um excelente medley de inspirações plenas de espontaneidade.

O piano calmo e doce é retomado em The Sheltering Sky, uma faixa lenta e dolorosa, com uma melodia muito bem conseguida num violino agudo, ao passo que o piano acompanha noutra voz. A melancolia defende-se até se arrastar para um momento intermédio, mais negro e profundo, que cedo se expande para movimentos e fraseados subtis sobre o piano e o violino.

A Tribute To N.J.P. é uma faixa misteriosa e desprovida de convenções. Cada instrumento parece independente de si, embora acabe por completar os outros. Prova de que o conjunto é mais do que a soma das partes que o constituem. High Heels (Main Theme) retoma uma melodia lenta, num ritmo muito dançante, muito elegante e melancólico. O piano marca claramente toda a melodia, embora o violino se mova com especial vivacidade, sem excessos, sem sombrear em demasia o piano e o maravilhoso pizzicato no violoncelo.

Sakamoto relembra de novo Satie, desta vez em Aoneko No Torso, faixa onde o piano recorda as três Gymnopédies do compositor francês. Na verdade, a inspiração pode muito bem ser a impressionista, porém, Sakamoto consegue ser original na composição de texturas bem diferentes das de Satie. Assim, temos uma música dócil, lenta e bem distribuída, sem nada a mais.

The Wuthering Heights é uma das mais belas músicas de Ryuichi Sakamoto, balanceada no confronto quase audível entre a calma do violino e a sonoridade do piano, que crescem numa ondulação até novos compassos cheios de uma apaixonante energia. A faixa desenvolve-se, repleta de contrastes mesmo dentro de cada instrumento, até se chegar a um final arrepiante.

A penúltima música do álbum, Parolibre, começa por ser uma pequena peça para piano, bem ao estilo das Kinderszenen de Schumman. Então, o piano mexe-se em harpejos para a dar voz ao violino que retoma a melodia. Esta é a faixa mais clássica de Sakamoto, mas bastante bem definida nas “regras” que, muitas vezes, o compositor contorna. Por último, ouve-se a música dos créditos do filme Little Buddha, Acceptance (End Credit) - Little Buddha, uma faixa bastante lenta, que vive sobretudo da harmonia no piano e da conjugação dos instrumentos.

Assim sendo, 1996 é um disco de grandes momentos da carreira de Sakamoto, compilando adaptações e novas versões de temas seus. Ocupa um lugar de destaque por se afastar do estabelecido, por se moldar por regras próprias, por criar uma estética nova sem estar longe da sua cultura e do panorama musical ocidental. Um disco necessário para quem quer uma nova perspectiva, para quem procura um novo olhar sobre as bandas sonoras, para quem quer conhecer a partitura e a interpretação de Ryuichi Sakamoto.


Título: 1996

Artista/Compositor: Ryuichi Sakamoto, David Nadien, Everton Nelson & Jacques Morelenbaum / Ryuichi Sakamoto

Ano: 1996