terça-feira, maio 08, 2007

Rewind #4 - Vale Abraão

Poucas vezes assentou tão bem em alguém o que de tantos se disse. Com Manoel de Oliveira, dificilmente haverá meio-termo. Ou se ama, ou se odeia. Onde uns verão planos repletos de uma poesia muito própria, outros julgarão o porquê de tamanha afeição pela ausência de movimento. Onde uns encaixarão a sensibilidade, outros tentarão, não poucas vezes, descobrir bons motivos para permanecer consciente. Onde uns deslindarão uma estética representativa original e identificativa, outros porão em causa a opção assumida de filmar uma peça de teatro. Já se percebeu de que lado da barricada se instaurou a crítica europeia. E o público português também.

Apresentado no Festival de Cannes de 1993, onde, pela Quinzena dos Realizadores, foi alvo de uma Menção Especial, Vale Abrãao é mais um filme da prolifera dupla Manoel de Oliveira – Agustina Bessa Luís. Baseado no romance da segunda, o multi aclamado realizador português filma a história da Bovary portuguesa e contemporânea, Ema Paiva. De realçar que a expressão bastante em voga “multi aclamado” não surge por falta de melhor caracterização. Não só Manoel de Oliveira o é de facto, como o próprio filme em questão marcou presença em inúmeros festivais, de onde se destaca a Mostra de São Paulo, o Festival de Cinema de Nova Iorque ou o Festival de Berlim.

De realçar ainda, já que a isto nos propusemos, a expressão “Bovary portuguesa e contemporânea”. Não tenhamos dúvidas de que tal se trata. Mas, mais do que sugeri-lo, Manoel de Oliveira (e Agustina, essencialmente) demonstram-no, quer através de sugestões várias, como a presença física do próprio livro, quer mesmo através do epíteto que a heroína arrecada da sociedade que a abraça. A Bovarinha. Vale Abraão conta-nos (e tenha em atenção o verbo contar, porque a história é-lhe literalmente recitada) o percurso de Ema, primeiro Cardeano, depois Cardeano Paiva.

Somos apresentados a uma Ema ainda juvenil, com traços da Lolita de Nabokov e Kubrick (mais a de Kubrick, confessemos), que vive, mimada e enclausuradamente, na casa de seu pai, Paulino Cardeano (Ruy de Carvalho). É nesta quinta, o Romesal, que Ema (Leonor Silveira) cresce, e é dela que nunca conseguirá sair, mesmo quando o faz. É nela que passa a infância que nunca terminou, que se sente senhora e segura, onde as criadas, de tanto respeito e admiração, são amigas íntimas. Daqui sai Ema, por casamento, com Carlos Paiva (Luís Miguel Cintra), um médico com tanto de absorto como de inerte, que de romantismo conhece pouco ou nada, e que da mulher conhece menos.

A história de Ema propriamente dita, tirando os seus romances e o final trágico, pouco mais terá de relevo. Como qualquer boa Madame Bovary que se preze. Fruto da sociedade claustrofóbica e tacanha que a rodeia, Ema vê-se refugiada na única arma que tem, a sua beleza. Incapaz de amar verdadeiramente, ainda que busque o amor, não se permite, no fundo, mais do que o mero prazer carnal ou a satisfação da presença de alguém. Até os seus romances são prova do seu desnorte. O dandy rico e charmoso, o camponês robusto e forte ou o jovem génio musical são os amantes, meio cardápio-cliché, que vai desfilando, aos olhos do marido apático e da sociedade alerta.

Para melhor compreensão, imagine tudo isto regado com a Sonata ao Luar, grandes planos de um Douro aldeão e uma slow motion sempre característica mas que, se nalguns casos enriquece, noutros nada mesmo. Incompreensível é a escolha de direcção de actores, já que teatral é o mínimo dos adjectivos que se poderão utilizar sobre algumas representações. A inexpressividade mistura-se com um programa de dicção para crianças num cocktail que a ninguém favorece, nem ao espectador, nem ao filme, e muito menos ao actor. O que realmente se tira desta versão documental do livro de Agustina é a excelente caracterização de uma vivência de aldeia, de um Portugal fechado sobre si mesmo e sobre uma cultura religiosa e mesquinha. Uma caracterização de um lugar (que por vezes parece um “não-lugar” sociológico) a meias com um modo de vida, que em nada deve aos melhores exemplos do género, como O Vale era Verde.

Título: Vale Abraão
Realizador: Manoel de Oliveira
Elenco: Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Diogo Dória, Ruy de Carvalho, Luís Lima Barreto, José Pinto, Filipe Cochofel, Dalila Carmo, Sofia Alves, Glória de Matos, Isabel Ruth e João Perry.
Portugal, 1993.

Nota: 6/10

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Para um espaço intitulado de "crítica artística", dar um 6/10 a um filme como o Vale Abraão é um autêntico atestado de incompetência.

1:12 da manhã  
Blogger Gustavo Jesus said...

Exactamente, nós deviamos era não ter opinião própria, bajular os nomes conceituados e apenas ousar criticar os que, não podendo ter a crítica do seu lado, não se poderiam ver defendidos por "competentes" como o Francisco. Optámos, incompetentemente, por julgar por nós próprios, por pensar uma opinião, ao invés de decorá-la, e expressá-la. Patetices da modernidade.
Aparte, louvo bastante comentários cheios de abertura a novas opiniões.

8:26 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Nunca escrevi que não deveriam ter opinião própria, fazem muito bem em ter um espaço de crítica. Mas da mesma maneira que têm o direito de resumir o Vale Abraão a um 6/10, também eu tenho o direito de achar isso incompetente. De resto, ao contrário do que parece no comentário acima, quem é a crítica competente neste espaço são vocês. Eu sou um espectador e leitor, não "defendo" ninguém. Talvez uma patetice da modernidade (mas a modernidade sempre foi pateta, não foi?).

10:11 da manhã  
Blogger Gustavo Jesus said...

Sempre foi um pouco sim, mas teve a sua piada. A modernidade, entenda-se. Quanto, ao seu comentário, e chegado a este ponto em que todos estamos cientes dos direitos de cada um neste vasto espaço a que decidiram chamar blogosfera, nada resta, em verdade, a acrescentar.
Gostava, isso sim, de saber, sem qualquer ironia, porque é que o Francisco discorda da apreciação. Julgo, se me soube expressar, que o texto justifica a minha opinião.
O que me ofende não é chamarem-me de incompetente. Isso faço eu a toda hora (o que aliás suscita interessantes debates internos). O que me ofende é não me dizerem porquê.

8:46 da tarde  

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