quarta-feira, setembro 27, 2006

"Capital", de David Mourão-Ferreira


“Casas, carros, casas, casos.
Capital
encarcerada.

Colos, calos, cuspo, caspa.
Cautos, castas. Calvos, cabras.
Casos, casos... Carros, casas...
Capital
acumulado.

E capuzes. E capotas.
E que pêsames! Que passos!
Em que pensas? Como passas?
Capitães. E capatazes.
E cartazes. Que patadas!
E que chaves! Cofres, caixas...
Capital
acautelado.

Cascos, coxas, queixos, cornos.
Os capazes. Os capados.
Corpos. Corvos. Copos, copos.
Capital,
oh! capital,
capital
decapitada!”

In Obra Poética

Chega-nos pela escrita de David Mourão-Ferreira esta singular e explicita ao mundo burguês da capital e do capital. Escritor e professor universitário, participante de várias associações e instituições, formado em Filologia Românica, Mourão-Ferreira distinguiu-se pela sua obra enquanto poeta, romancista, crítico e ensaísta.

Diz-nos Mário Cesariny que “Burgueses somos nós todos, ou ainda menos.” É assim esta capital, repleta de capital que Mourão Ferreira condena por vários motivos. De carácter demonstrativo, o poeta vai-nos explicando quais os vícios deste ciclo a que a capital, pelo capital, se sujeita. A capital encarcerada dos carros e das casas, da ausência de vida, da ausência de espaço, da ditadura do sufoco. A capital do capital acumulado, do desprezo pelo outro, “dos calvos e das cabras”, dos casos e mais casos que se repetem, da necessidade estúpida do mais pelo mais, a capital da ganância pelo capital. A capital dos cofres, da insegurança, da desconfiança, do roubo, do capital acautelado, do capital prioritário. Uma espiral de desumanização económica, neste macrocosmos impessoal que leva, sem forma de retorno, à capital decapitada, a capital do capital, a capital que o não é.

Da ausência de poesia é o que nos fala este poema onde David Mourão Ferreira usa, sem abusar, da enumeração e de maravilhosas aliterações. Não será estranho este jogo de sons a quem conhecer a obra de David Mourão-Ferreira, onde ele recria com mestria ambientes fonéticos semelhantes que sirvam o propósito do poema que concebeu. Uma forma que muito o caracteriza e cuja estética é impressionante. Neste poema, o vocabulário da opulência aparece mesclado com o tom carregado que as sílabas que utiliza conferem. Tom carregado de verdade, conceda-se.

“Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos”

Mário Cesariny