sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Volver


Grandes realizadores marcam as suas obras com um carimbo cinéfilo, marca indistinta do seu olhar sobre a tela. Impossível ver um filme de Hitchcock e não reparar no seu toque, na sua visão do conjunto e, acima de tudo, na sua visão do particular, do pormenor. O mesmo se passa com Almodóvar, realizador espanhol e um dos ícones maiores do cinema europeu contemporâneo. A sua obra reflecte uma visão personalizada e descomprometida, um conjunto de filmes onde predomina a liberdade de pensamento. O último pilar desta construção é Volver.

Recentemente nomeado para Óscar de Melhor Actriz, Volver funciona quase como filme-paradigma da visão cinematográfica de Almodóvar. Onde todos vêem os fantasmas de aldeia de uma história antiga, os olhos de Almodóvar intersectam um compêndio de amor em forma de enredo cheio de inversões. Onde a maioria vê o medo da morte, Almodóvar mostra o fascínio da vida.

Volver é um novelo que se desenrola em torno de Raimunda (Penélope Cruz), rapariga latina afastada por opção da aldeia que a viu nascer. Volver conta a sua história através da desfuncionalidade da família que provem e a que, como o título sugere, volta. É à volta da sua irmã Soledad (Lola Dueñas), da sua mãe Irene (Cármen Maura) e da problemática Agustina (Blanca Portillo) que o seu passado se cruza com o presente, e ainda com o futuro no rosto da filha. Volver é um filme sobre relações, sobre o Amor. Não o amor no sentido mais carnal e corrente do termo, mas um amor familiar, claramente mais forte que o outro, como o filme também demonstra. Um amor feminino.

Feminino é o ambiente deste filme onde todas as personagens são femininas e onde os homens que circunstancialmente surgem mais não são que pontuais referências. A trama roda somente em torno das mulheres deste filme. A mãe que está morta e surge, fantasma do presente, apesar da sua realidade. Soledad que a protege e Raimunda, o protótipo de mulher latina, quente, irreflectida, espontânea e lutadora. É a espantosa força resistente das mulheres que Almodóvar retrata, não só relegando os homens para terceiro plano, como deixando deles uma imagem pouco gratificante.

A nomeação de Cruz surge assim completamente justificada. Mas, enquanto, por exemplo, Streep é um portento capaz de segurar um filme sozinha, a prestação de Cruz premeia não só uma actriz, mas a capacidade de um conjunto de actrizes funcionarem como uma só. Penélope Cruz é exemplarmente suportada por uma selecção, nada uniforme à partida, mas cujo resultado é magnífico, potenciando a actuação da estrela de cartaz.

Mas Volver consegue sobreviver para alem da categorização de filme de autor, filme sobre relações ou filme feminino, o que diz muito sobre a vastidão do mesmo. Volver é, quase à semelhança de O Vale era Verde, um filme retrato. O retrato de uma época, de uma vivência, de um modo de estar. Fotografia das aldeias interiores, que também reflecte a situação portuguesa, Volver oferece um cenário (humano) rico e característico.

Uma palavra ainda para os pormenores, os tais que pertencem à imortalização dos realizadores. Alguns deles homenagens claras às referências do próprio Almodóvar, momentos como o sangue que é limpo com a esfregona ou os vários planos sobre Raimunda, nomeadamente com a faca, enriquecem um filme que já nem precisava. Volver é um marco afirmativo, e qualitativo, na carreira de Almodóvar. Parece também um ponto de síntese dos últimos tempos, auspiciando algo de novo. Pedro Almodóvar não deixará de surpreender.
Título: Volver
Realizador: Pedro Almodóvar
Elenco: Penélope Cruz, Carmen Maura, Blanca Portillo, Lola Dueñas, Yohana Coba e Chus Lampreave.
Espanha, 2006.
Nota: 8/10

3 Comments:

Blogger B. said...

Tenho de admitir desde já que gosto sempre do que escrevem, mesmo quando não estou de acordo, é-vos fácil exprimir, não vos custa escrever, desde já, os meus parabéns.
Volver, acho que a Penelope é sem dúvida o pilar e o ponto alto do filme, daí estar de acordo com a nomeação para óscar, e com a ausência da nomeação de melhor filme estrangeiro. Isto porque, Volver não é, para mim, um grande filme, é bom, muitos momentos caricatos que Almodóvar sempre no habituou, divertido, potentíssimo na forma de apresentar o tal amor familiar, fantástica novamente a interpretação de Penelope, e a banda sonora. Seja como for, acho que a estrutura do filme fica fragilizada com a história da mãe estar teoricamente morta. Isto porque, momentos de grande tensão dramática, tornam-se negramente divertidos quando ainda se pensa que a mãe está realmente morta, não é facil, e aí Almodóvar pecou, libertarmo-nos do limiar de ridículo que algumas cenas têm, e quando se percebe que realmente a mãe está mesmo viva, já é tarde, muita intensidade dramática ficou para trás esquecida, e fulcral para o filme. Acho que é aqui que peca, podia ter sido um filme melhor, acho que não é do melhor dele, e daí estar de acordo com a ausência da nomeção maior. Seja como for, chamem-me suspeito, mas depois de ver o Alice, filme portugês concorrente a melhor filme estrangeiro (claro que não foi nomeado), vejo que não estamos muito longe, nem do gigante Almodóvar.
Parabéns à obra, repito, é um bom filme, mas não é genial, nem dos melhores que já nos deu a conhecer.

3:44 da tarde  
Blogger Gustavo Jesus said...

Primeiro, obrigado pelo elogio. Depois, tenho de concordar que Volver não é, de longe, a melhor obra de Almodóvar, nada do género de Fala com ela, mas é uma consolidação do Almodóvar enquanto mestre do cinema de autor. E, mesmo percebendo as fraquezas de que fala, os pormenores enriquecedores presentes são marca inegável da qualidade do filme.
Quanto a Alice, é de facto um extraordinário filme, mas a sua localização no cinema português surge como uma espécie de oásis. Não temos uma estrutura, nem uma cultura, que nos permitam competir abertamente com outros países. Por falta de apoios estatais, por negligência do público português; as razões são discutiveis. Mas, aparte algumas boas excepções, há ainda um longo caminho a percorrer.

2:46 da tarde  
Blogger B. said...

Um oasis que acredito ter espaço para cada vez mais nomes. Marco Martins apareceu agora, o ICAM tem de mudar a forma de subsidiar os filmes, desde que no júri já esteve um piloto da TAP e o Miguel Angelo dos Delfins, acho que algo não está a bater certo. A iniciativa privada não funciona, porque o cinema em Portugal não dá dinheiro. O modelo Frances sim, os canais privados de televisão, são obrigados a investir uma percentagem significativa em cinema Françês, e com esse dinheiro, mais o das bilheteiras, cria-se um ciclo económico que resulta. Seja como for, é uma luta difícil. Mas quero acreditar que talentos novos aparecem, que talentos novos terão mais força, em vez de darmos sucessivas oportunidades a realizadores medianos.

5:41 da tarde  

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