Cru

«Chamou “Cru” ao seu mais recente disco por causa da forma, dos arranjos, ou foi mais pelo conceito geral?
Pelo conceito geral, que era fazer uma música brasileira que o francês gostasse. Os franceses são um dos poucos povos do mundo que aprecia muito a cultura brasileira, sobretudo a música. Só que a música que chega à Europa é cheia de símbolos: a camisa do Ronaldinho, a bandeira do Brasil, a mulata, o pandeiro... Eu quis um registo que não fosse técnico, de estúdio, mas sim de emoção, gravar a minha maneira de cantar na hora, a minha pessoa. No estúdio, a música pode ser perfeita mas fica mais fria do que quente. Há a tendência de “congelar” a interpretação. Uma vez gravado, fica para sempre. É claro que todo o artista é de certa forma, técnico, mas quando se escolhe um registo de emoção a técnica não ajuda muito. “Cru” é mais emoção e menos técnica.»
Y, 1 de Julho 2005
Aquele sobre quem recai a estulta responsabilidade de ser o próximo mito do panorama musical brasileiro, faz de conta que não nota a excitação europeia e grava a confirmação da sua bipolaridade artística: é um actor-músico.
Pelo conceito geral, que era fazer uma música brasileira que o francês gostasse. Os franceses são um dos poucos povos do mundo que aprecia muito a cultura brasileira, sobretudo a música. Só que a música que chega à Europa é cheia de símbolos: a camisa do Ronaldinho, a bandeira do Brasil, a mulata, o pandeiro... Eu quis um registo que não fosse técnico, de estúdio, mas sim de emoção, gravar a minha maneira de cantar na hora, a minha pessoa. No estúdio, a música pode ser perfeita mas fica mais fria do que quente. Há a tendência de “congelar” a interpretação. Uma vez gravado, fica para sempre. É claro que todo o artista é de certa forma, técnico, mas quando se escolhe um registo de emoção a técnica não ajuda muito. “Cru” é mais emoção e menos técnica.»
Y, 1 de Julho 2005
Aquele sobre quem recai a estulta responsabilidade de ser o próximo mito do panorama musical brasileiro, faz de conta que não nota a excitação europeia e grava a confirmação da sua bipolaridade artística: é um actor-músico.
Converteu-se num fenómeno moderno a existência avulsa deste tipo de artistas, ainda que muitos tenham reconsiderado em face das violentas críticas às suas supostas novas valias. Aqui a memória desempenha função-chave: quando se desenvolve admiração pelo trabalho de um artista numa área, ao longo dos anos, torna-se difícil (para um fã não amblíope) não esmiuçar friamente a nova performance. Talvez sobreavisado, talvez sortudo, Seu Jorge é verdadeiramente um actor-cantor-músico. Importa explicar porquê:
Educado sob os rigores da insustentabilidade social brasileira e pela boa vontade dos seus pais, Seu Jorge atravessou atribulado crescimento. Ao longo da sua adolescência desempenhou vários ofícios e, após tragédia aparentemente comum por lá (morte de um irmão e consequente desmembramento familiar), vagabundeou, viveu sem tecto e roçou o vínculo definitivo e fatal a vícios destrutivos. É então que se opera o milagre – resgatado por Paulo Moura, clarinetista brasileiro – que nos permite ouvir música dele. A partir de 1996, o seu nome vai crescendo dentro do meio musical canarinho, sustentadamente, impulsionado por algumas colaborações. Quando dá por si, edita Samba Esporte Fino, em 2001, viagem à sujidão visceral do samba e do funk negros, embora já com certo grau de sofisticação aprazível ao gosto ocidental. No entanto, ainda antes de conquistar o Velho Continente (sempre sedento de novidades), revelou-se como Mané Galinha no filme “A Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles. Em 2004, dá admirável concerto na MTV, posteriormente colocado nos escaparates discográficos; participa na película “Um Peixe Fora de Água”, de Wes Anderson, para quem faz eclécticos covers de músicas de Bowie; e, como se não bastasse, faz a tal produção para «francês ouvir»: Cru.
Ora o que impressiona mais, em contraposição ao álbum Samba Esporte Fino, é a simplicidade roufenha que dirige a gravação. Há toda uma exibição propositada de ligeiríssimas rugosidades que, como decerto pretendia, acrescenta uma humanidade palpável, não verdadeiramente real, mas teatral. Isto porque, e não tem pejo em afirmar, ele não é músico. Digo segunda vez: é actor-músico. Aliás, e como o próprio afiança, nota-se a nova abordagem minimalista, no sentido que minimiza o excesso de produção do disco de 2001.
Quanto ao samba, rock e funk, reduzem-se. A bossa nova, as baladas e o forró ganham espaço. Nas 10 faixas de Cru tudo se enquadra mais harmoniosamente, havendo espaço para diversas susceptibilidades psicológicas. Sendo uma colecção de músicas maioritariamente não originais, impressiona a fluidez com que o álbum se dá a conhecer: há Elvis Presley (“Don’t”) a assistir à cuíca a fazer as vezes da guitarra eléctrica, há Serge Gainsbourg (“Chatterton”) em manifesto suicidário da neurastenia filosófica, há Robertinho Brant (“Fiore de La Citta” e “Una Mujer”) a permitir novas versões de bossa requintada, há Carlos Dafé (“Bem Querer”) em viagem ao Brasil dos 70’s, Ataulfo Alves (“Mania de Peitão”) a revirar-se com a recuperação do êxito de 1941 “Ai Que Saudades de Amélia” e Duani (“Bola de Meia”) numa canção quase falada por Seu Jorge, capaz de tocar qualquer casal na vertigem da separação. E, para o que resta, há sempre Seu Jorge, a abrir com desabafo descomplexado (“Tive Razão”), a prosseguir com lamento passional (“São Gonça”) e a fechar com retrato sincero e assumido da sua anterior condição de vida (“Eu Sou Favela”).
Com mais ou menos emoção, mais ou menos técnica, Cru impressiona enquanto caldeirão musical. Era esse o passo que lhe faltava dar cá no burgo: mostrar que sabe dançar, cantarolar, rir, enlouquecer, protestar e, se for necessário, se suicidar.
Nota: 8/10
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