sexta-feira, novembro 03, 2006

A Gaivota

“TREPLEV
Isto começou na noite em que a minha peça foi posta de rastos.”


Irónico e premonitório o que Anton Tchékhov põe na boca de Treplev, personagem de A Gaivota, uma das maiores peças do dramaturgo russo. De facto, a peça viria a ser representada por uma companhia de Teatro clássico e seria, efectivamente, posta de rastos. A história de Treplev começava a assemelhar-se à de Tchékhov. Tal não será de estranhar, já que, quer um quer outro são escritores inovadores colocados numa sociedade inerte culturalmente que não admite o novo e idolatra o estabelecido.

Apreciar A Gaivota é, também, perceber a sua influência no teatro russo e mundial. Tchékhov não era o único a sentir a necessidade de uma revolução no Teatro russo. É desta necessidade que nasce, pela mão de dois dos maiores teóricos mundiais do Teatro, o Teatro Artístico de Moscovo. São eles Vladimir Nemiróvitch-Dântchenko e Constantin Stanislávki. Esta seria uma fundação histórica no Teatro russo e, não por acaso, o símbolo que escolheriam para o grupo viria a ser uma gaivota.

A Gaivota é uma peça de revolução. De revolução contra a concepção de Teatro em vigor na Rússia do final do século XIX; de revolução contra a apatia generalizada; de revolução contra os narodniks. Estes faziam o apanágio de uma vida pacata e tradicional na Rússia rural em oposição ao vício da cidade. É uma reacção a tudo isto, misturada com a necessidade de se opor ao classicismo ultrapassado do Teatro russo, que explicam a obra de Tchékhov.

A Gaivota é a metáfora disto mesmo por oposição de Treplev, o escritor novo, incompreendido e original, a Trigorine, o escritor tradicional, que se movimenta nas correntes artísticas conhecidas e é reconhecido. A desgraça e o desfecho previsivelmente trágico do primeiro face à opulência aparentemente plena de qualidade literária do segundo são o mote para uma comédia de costumes, que é no fundo um drama.

Um drama porque, como no resto da sua obra, Tchékov é mestre a criar uma atmosfera de vazio. Nada se passa, nada se pensa e nada se pode, nesta vida de província, pequenina, retrógrada, alimentadora do estabelecido que lhe chega da cidade. Não será um ambiente tão silenciante como em O Tio Vânia, mas trata-se do mesmo ambiente onde se cheira a inércia, talvez mais barulhenta pelo ruído das muitas pessoas que vagueiam pela casa.

Para além da concepção teatral, há também a oposição entre a representação clássica e um novo método que viria a ser estabelecido pelo Teatro Artístico de Moscovo (que representaria, com sucesso e aclamação, A Gaivota). Arkadina, mãe de Treplev, representa um Teatro ultrapassado, mas que ainda assim subsiste com sucesso, enquanto Nina representa a vontade de representar mal compreendida pelos valores vigentes. Tanto ela como Treplev são ainda sugados pelo ambiente rural que os impede de dar o salto convenientemente.

Tudo o resto, é puro Tchekhov a ser apreciado. Os silêncios, a inversão da lógica base da estrutura do texto teatral, a metáfora das personagens, a ironia mordaz do ambiente que cria, a critica social, a modernidade. Indispensável para qualquer amante do Teatro, pela sua importância histórica e pela modernidade textual. A Gaivota foi este ano posta em cena pelo Teatro da Cornucópia, com encenação de Luís Miguel Cintra.
Título: A Gaivota
Autor: Anton Tchékhov
Nota: 8/10

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

8 em 10 à Gaivota do Tchékhov. Estás a guardar o 9 e o 10 para quem?
O blogue é engraçado mas o sistema de classificação é contra tudo o que se deve fazer na arte.

3:46 da tarde  
Blogger Gustavo Jesus said...

Percebo o desagrado. Não é um sistema de classificação porque não sou qualificado para tal nem, como bem se subentende do seu comentário, ninguém está. É um mero exercício pessoal e subjectivo que reflecte nada mais que a integração da obra em causa na minha aprendizagem cultural. Se não servir para mais nada, que sirva para isso mesmo, para que as pessoas discordem e criem o seus próprios parâmetros. Se ajudar à discussão sobre a Arte, se levar a que as pessoas argumentem o seu desagrado perante uma nota, ou se levá-las a expor o porquê de darem o 9 ou o 10, dou-me por concretizado. Sou, por inteiro, da sua opinião quanto ao facto da Arte não ser catalogável. Queria apenas deixar-lhe claro que não é disso que se trata nem pretende e também que cada nota é altamente ponderada e reflectica, na sua justiça e intenção. Obrigado pela visita.

8:24 da tarde  
Blogger SOL said...

Alguns comentários muito pertinentes. Gostei muito!
Há mais detalhes interessantes. Como por exemplo o fato de Nina ser inspirada em um antigo romance de Tchecov. Lika Miznova, não chegou a assumir e por isso ela relaciona com um amigo dele para fazer-lhe ciúmes. E outras coisinhas mais... ^^ Deitar sobre essa peça é tirar muitas e muitas anotações.

3:56 da manhã  

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