quarta-feira, março 21, 2007

A Tragédia de Júlio César


“Quantas vezes no futuro/ Esta cena sublime não voltará a ser representada,/ Em Estados ainda por nascer e em línguas ainda ignoradas!/ Quantas vezes não sangrará César no palco,/ Esse que agora jaz no pedestal de Pompeu,/ E mais não vale que o pó!/ E quantas vezes isso acontecer,/ Outras tantas será o nosso grupo chamado/ O dos homens que deram à sua pátria a liberdade.” Júlio César, homem, mito e conceito, é na peça de Shakespeare a figura sobre qual se abate verdadeiramente todo o corpo teórico da tragédia, enquanto crise existencial e pretensão íntima de divinização. César entroniza-se e incorpora as virtudes e os defeitos da liderança e do poder, numa sociedade sedenta de veneração e orientação. César (Luis Miguel Cintra), o tirano, recusa por três vezes a coroa que Marco António (Nuno Lopes) lhe oferece e, de seguida, desmaia; César, o colosso, aproxima-se de Marco António e pede-lhe que lhe fale para o ouvido direito, pois que é surdo do esquerdo; César, o homem público, a instituição, o líder liberto de inclinações egotistas, regressa ao seu “eu” para justificar a recusa do perdão ao irmão de Cimbro. Mas é sobre o César de carne e osso que, em última instância, se consuma o arco de ascensão e queda que conduz inevitavelmente à morte. A morte do futuro rei é o evento que não só entrega o mundo à desordem como o divide ao meio, e A Tragédia de Júlio César revela-se fundamentalmente como a tragédia da vida política, em duas partes: a da intriga e a da guerra.

Há todo um apodrecimento da Cidade que leva ao desenvolvimento da intriga e ao golpe vil. Em todos os conspiradores há um misto de servidão, escrúpulo e ódio que os anima a levar o plano a bom porto, sentindo-se imbuídos de um sentimento de dever para com uma glória maior (Roma) e, neste aspecto, Shakespeare constrói uma tragédia que se aproxima de um drama humano e terreno onde a personagem mais aparentada a uma divindade é César, quer pela sua presença em forma de mito, de ideia de ordem, quer pelo poder com que dilacera Bruto (Dinarte Branco), o traidor, e Cássio (Ricardo Aibéo), o corruptor. A decadência da sociedade expande-se, no entanto, para além do círculo dos conspiradores. Marco António expõe-se como o astuto instigador da rebelião através da oratória, repetindo, por quatro vezes, “Mas Bruto é um homem honrado” às massas ingenuamente maleáveis e permissivas, incapazes de, como hoje, adquirir consciência política. Octávio é o novo líder, o cínico, que à boa maneira de César se sente investido de autoridade sem, no entanto, possuir a aura imperial deste. Nos despojos da morte de César, dispõe maquinalmente das suas forças para próximo do fim ser já chamado de César, aqui já não um nome, mas um título, como mais tarde os derivados czar e kaiser.

A degradação da estrutura social de Roma alimenta tanto os conspiradores, arrastando-os para o assassínio, como o público, enternecendo-o para com os mesmos. Bruto, o imortalizado traidor, é uma espécie de sonhador, de homem escrupuloso e crente numa Roma salva de tiranos, na Roma dos cidadãos e não de César. Cássio, por sua vez, é o rosto de uma vontade de muitos, o infeliz que carrega o fardo de haver persuadido com uma retórica cirúrgica o amigo Bruto. Os conspiradores são, e este significado reside profundamente nas palavras do texto de Shakespeare, a espada que Roma, no seu sentimento prevalecente, empunhou.

“Pusemos em cena um momento da História. Mas encenar Júlio César é mais do que isso, é uma múltipla tarefa; contar mais uma vez a História, para que não se esqueça, sim, falar ao nosso tempo da luta pela liberdade, pôr em cena homens mais que figuras simbólicas e fazer teatro, recriar a História transformada em poesia, comunicar” – escreve Luis Miguel Cintra acerca do espectáculo. Aparte toda a complexidade da peça, da fina malha de subtilezas com que Shakespeare dotou o texto, a principal fonte de força desta tragédia é o resultado da comunicação, a possibilidade de incluir o público numa crónica histórica e num drama vivo, impedindo-o de cair no marasmo e não pensar. O encenador respeita os anacronismos que Shakespeare, certamente com a intenção de levar o público a sentir-se numa Roma “real”, incluiu, dando-lhe seguimento para os dias de hoje. No quarto e quinto actos, os romanos despem as togas e vestem as fardas militares do século XX, e aquela guerra perde a distância e torna-se actual; é então que a falência dos homens, desumanizados, perdidos no absurdo da guerra, do suicídio e do erro, se torna nossa também.

São três horas e meia de retórica política, de dilema moral e de reflexão sobre o poder, numa encenação sobre o texto integral sem os cortes que frequentemente amputam as grandes obras. “Ó Júlio César, ainda tens poder!”, diz Bruto em desespero.

Em cena de 21 de Março a 22 de Abril de 2007
São Luiz Teatro Municipal, Lisboa

Tradução: José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto e Luis Miguel Cintra
Encenação: Luis Miguel Cintra
Cenário e Figurinos: Cristina Reis
Desenho de luz: Daniel Worm d’Assumpção
Música original: Vasco Mendonça
Interpretação: André Silva, Dinarte Branco, Dinis Gomes, Edgar Morais, Filipe Costa, Hugo Tourita, Ivo Alexandre, Joaquim Horta, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Luís Lucas, Martim Pedroso, Pedro Lamas, Nuno Lopes, Nuno Gil, Pedro Lacerda, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Tiago Matias, Teresa Sobral, Tónan Quito e Vítor de Andrade.

4 Comments:

Blogger Gustavo Jesus said...

A tragédia de Júlio Cesar estará em cena dia 27 de Março, dia mundial do teatro, pelas 21.00, numa sessão especial, de entrada livre, sujeita à lotação da sala.

5:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Desespero foi o meu... para ouvir declamações de um texto, leio em casa em voz alta. :D

11:41 da tarde  
Blogger Gustavo Jesus said...

Não creio nada que se trate de uma mera declamação. Luis Miguel Cintra poderia de facto ter tornado o texto mais apetecivel para o público, mas será essa forma correcta de abordar um clássico? Mesmo que se discorde, a oportunidade de presenciar uma exposição integra e integral da obra aliadas à qualidade da mesma tornam esta experiencia imperdível.

12:01 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

amei este espectáculo. dos melhores a que tive oportunidade de assistir. o eleco, apesar de enorme, mostrou-se completamente homogeneizado na excelente qualidade....

12:21 da manhã  

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