sábado, dezembro 23, 2006

As Pequenas Memórias

“Deixa-te levar pela criança que foste.”

Nome maior da Literatura portuguesa contemporânea, José Saramago não deixa por isso de ser um caso de invulgar divisão do público português. Laureado com o Nobel da Literatura, o feito não parece suficiente para encantar a gregos nem a troianos. Reminiscências da sua actividade no Diário de Noticias, incompreensão das suas escolhas politicas ou desagrado com o seu peculiar processo de escrita, algo persiste que não permite a uma larga camada da sociedade saborear o que escreve.

As Pequenas Memórias são o seu mais recente livro. Planeado, na sua mente, há cerca de 20 anos, chega-nos agora esta visão autobiográfica dos seus primeiros anos de vida. Ao contrário do que seria de esperar numa biografia de um prémio Nobel, não são os grandes acontecimentos mundiais vistos pelos olhos que aqui se retratam. Não é a vida por trás da cortina do fenómeno Nobel, não é um repisar da história recente portuguesa pelos seus carregados óculos nem tão pouco se abordam algumas das suas posições que mais celeuma provocaram.

Aborda-se tão simplesmente a sua infância. Uma sucessão de pequenos trechos, um contínuo jorrar de lembranças, que parecem surgir com a preocupação lógica de quem conta uma história à lareira, nenhuma. Entre a Azinhaga, no Ribatejo até aos primeiros tempos de Lisboa. Dos pormenores mais humilhantes que a infância proporciona aos momentos mais pessoalmente enriquecedores. É um Saramago, mais que biográfico, extremamente pessoal que aqui nos é transmitido.

O que fica, mais que os eventos, sem qualquer fio condutor, que nos vão sendo descritos, é a enorme capacidade de comunicação de um escritor absolutamente ímpar. O interesse de As Pequenas Memórias enquanto obra poderá ser, e é-o, totalmente discutível. A qualidade da escrita de Saramago não. No seu estilo rendilhado e mordaz, onde as frases podem tornar-se estradas compridas mas que, invariavelmente, chegam a bom porto, torna-se um prazer sensorial e enriquecedor seguir as peripécias da criança que foi.

Algumas críticas têm sido dirigidas ao livro no sentido da escassez de conteúdo, indicando que o livro se resume a uma sucessão de trechos, na maioria de índole ligeiramente cómica, sem grande consequência. É de facto do que se trata. Mas esperar mais, em termos formais, do livro, seria ingénuo. O que recebemos é bem mais que isso. A possibilidade de mais uma obra para avaliar e contemplar uma escrita tão original quanto consistente. Ainda que o livro o não seja. Saramago é um nome sem nada a provar. Conseguir escrever tão bem sobre tão pouco é também uma arte.

Tìtulo: As Pequenas Memórias
Autor: José Saramago

1 Comments:

Blogger Aldemar Norek said...

A textura da escrita de Saramago é realmente, como você diz, ímpar.
Sempre tenho um prazer enorme ao ler.

2:13 da manhã  

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