sábado, junho 03, 2006

"Sida", de Al Berto

"aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar"

in Horto de Incêndio

Al Berto, pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, poeta português pioneiro na escrita desapiedada e sem subterfúgios sobre a Homossexualidade, traz-nos neste poema uma, também ela pioneira, visão pessoal e dolorosa da Sida. Um mês antes da sua morte, afirmava ao jornal Expresso: “Todos os meus livros tiveram um caráter de urgência”. Al Berto morria, a 13 de Junho de 1997, de Sida.
Poeta e editor, Al Berto conseguia não só ser um dos rostos mais proeminentes de uma geração urbana que não tinha pejo em assumir a sua sexualidade e fazia-o com uma naturalidade descritiva, um necessitar visceral não de chocar, mas de se afirmar. Em "Sida", retirado do seu último livro de Poesia Horto de Incêndio, oferece uma visão autobiográfica de um lado obscuro muitas vezes associado a todo o contexto homossexual de que provinha.
Esta inserção do poeta no mundo que descreve é bem patente pela união que as próprias formas verbais transmitem: "arquivámos", "acendemos", "pressentimos". É no passado, neste passado em conjunto, de memórias, de "nuvens breves" guardadas por entre as "imagens difusas" que se arrastam, é neste passado que o poeta relembra os que partiram. Os que partem.
Por um campo semântico de impotência e dor ("voraz", "negra", "confusos", "mágoa"), o sujeito poético vê-se rodeado por um sentimento de perda, perante a qual nada pode fazer. Entre a dor de ver os que lhe são queridos definharem e partirem e a masoquista memória de tudo, o poeta passa, terminando o poema como o começou, lembrando que, no final, o que importa é quem já não telefona.

1 Comments:

Blogger imo said...

al berto... cujas cinzas ardem nas mãos da eternidade, para sempre. o meu mentor.

3:45 da tarde  

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