sexta-feira, janeiro 06, 2006

Jerusalém


“Mas, de certo modo, Theodor receava aquilo que mais o excitava: como se veria a si próprio se chegasse ao ponto de perceber o raciocínio - e assim o considerar normal - que está na base de um campo de concentração, do extermínio de milhares de pessoas: crianças, velhos, homens, mulheres? Receava a sua invulgar capacidade - tantas vezes elogiada - de perceber os loucos. Essa capacidade para entrar nas cabeças estranhas, como alguns colegas diziam. Era dessa empatia com o não normal que poderia nascer algo de inaceitável. Se chegar a perceber a parte louca da História, se conseguir entrar na cabeça do Horror e com esta conseguir dialogar, o que farei a seguir?”

Nascido em 1970, estreou-se no mundo das publicações em Dezembro de 2001, através do Livro da Dança, editado pela Assírio e Alvim. De então para cá o panorama literário português têm assistido ao célere desdobramento da sua obra estética, espelhada em diversos géneros (quase todos a que os escritores modernos recorrem), chegando à impressionante marca de 16 publicações em 4 anos. Desde então, a crítica tratou de lhe conferir o estatuto de grande ficcionista do futuro literário por vir, enquanto antecipa uma suposta rivalidade entre ele e o também aclamado José Luis Peixoto.

Se porventura acompanha o meio literário português, já terá certamente apontado um de entre os demais suspeitos: Gonçalo M. Tavares. O seu nome já se tornou uma espécie de símbolo para aqueles que, de tempos a tempos, contrariam o vaticínio do fim da originalidade literária portuguesa. Espera-se pacientemente que os fatalistas o leiam.

Gonçalo M. Tavares cultiva o (bom) hábito do conceptualismo e do rendilhado erigir de uma obra (tão novo e tão consciente da exigência da História, que obstrui a entrada de novos membros), enquadrando os livros em lógicas superiores, como terras em reinos. E é na série de livros negros O Reino que o multi-premiado Jerusalém se encaixa, dando um novo entendimento a um dos lados obscuros da natureza humana: a loucura.

Mas se o retrato da loucura é, de certo modo, comum na literatura moderna, o tratamento que os desvios mentais merecem pela maioria, os homens normais, não é assim tanto. É nesta normalização da loucura que se apoia Jerusalém, apontando uma interpretação da sua essência (loucura como quebra persistente da moralidade imbuída num humano adulto) que, não sendo inédita, serve para introduzir as ideias ensaísticas que orientam Theodor Busbeck, médico e marido de Mylia (esquizofrénica): a loucura, isto é, a doença mental, afecta as pessoas na sua valência social, criando a doença civilizacional, que Theodor acredita ser responsável pelos horrores que a História efectivamente contém (Jerusalém é um romance que conhece a história do século XX, e o seu título não será casual, certamente). O autor desenvolve sagazmente esta ideia base, e outras subalternas, à medida que faz avançar a trama que, apetece dizer, não é trama – a verdadeira intriga parece residir no evoluir da teoria para os eventos macabros do mundo.

Sem me contradizer, afianço: a intriga, apesar de curta, é retalhada, surpreendente e veloz. Tem o seu próprio corpo e espaço, sobrevivendo sem o ensaio (mas trabalhando para ele). A loucura de algumas das personagens faz-nos criar uma empatia com elas, pela desresponsabilização dos seus actos: Hinnerk, o violento, conquista-nos pelo terror interno em que vive, pelo medo que exala em cada sudação e pela exibição do pânico de um soldado constantemente em guerra; Mylia, a esquizofrénica, tenta-nos com lampejos de ingénua eloquência e com um repentismo de infância; Kaas, o deficiente físico, enternece-nos através da sua aguda consciência do seu estado e do estado dos outros; Hanna, a prostituta, consegue conviver com Hinnerk e é de uma extrema amabilidade para com a loucura dele. Ironicamente, será Theodor, o médico, quem inspira menor confiança, pois nada tem que desculpe a sua insensibilidade no momento da morte do pai, e mesmo no tratamento a Mylia.

A loucura só estará realmente intacta nas páginas que nos reportam para o quotidiano comum do hospício, onde Gonçalo Tavares faz desfilar toda a demência passível de existir numa tal instituição, todas as extravagâncias insensatas que são o código de normalidade social entre os internados, em contacto nas zonas partilhadas onde se recreiam habitualmente. Mediante estas observações, o doutor Gomperz e Theodor renovam e substanciam a teoria que poderá prever, estatisticamente, os genocídios e massacres vindouros.

Em suma, tudo avança (intriga e ensaio) a um ritmo meticulosamente trabalhado, empolgante e cinemático. Nunca o autor se deixa seduzir pelas forças da inspiração e do desalinho, sabendo de antemão como gerir a escrita para o bem do leitor (se não impaciente). Lido e relido, Jerusalém suscita no leitor (neste caso, eu) a seguinte pergunta: Que devo eu pensar para não ser tido como louco?

Jerusalém. Um livro de Gonçalo M. Tavares.
Editorial Caminho, Abril de 2005.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ainda que não critiques negativamente a obra "Jerusalém", não me parece justa a crítica que lhe fazes. Mais parece que não leste o livro integralmente ou se o fizeste não entendeste na íntegra o seu conteúdo. É lógico que todas as obras de arte suscitam interpretações diferentes por parte de quem as observa, mas dizer que “Jerusalém” fala sobre loucura é uma análise extremamente superficial e a meu ver pouco inteligente, de quem não tem ainda a maturidade suficiente para fazer criticas a literatura ou a qualquer forma de arte.

11:23 da tarde  
Blogger Pedro Teixeira said...

Posso afirmar que li as vezes suficientes (no plural, nota bem) para dele extrair o melhor e o pior. É evidente que outras temáticas existirão em "Jerusalém", mas uma análise aprofundada da obra, talvez na forma de ensaio, é claramente desajustada à linha que este blog segue, como deverás registar também.

Imaturo parece-me, com toda a franqueza, fazer um comentário que não diz rigorosamente nada acerca do livro em questão. Gostava então de saber, e digo-o de boa vontade, que considerações o teu entendimento diz terem faltado ao meu curto artigo.

1:45 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Se isto fosse um ensaio e não um artigo, então aí, segundo uma análise mais aprofundada, como dizes e muito bem, surgiria a temática loucura, mas ocupando um lugar bastante secundário na trama da história.

Na minha opinião, “Jerusalém” fala da tentativa de compreensão da origem da maldade humana; o porquê da traição, as causas da violência e brutalidade humana, dos horrores perpetrados ao longo de uma história universal vasta.
E a grande “pista” para isso é exactamente o estudo que a personagem Dr. Theodor, tal como tu apontas e muito bem, está a realizar: um estudo sobre o horror e o sofrimento na humanidade, as causas da violência do Homem contra o próprio Homem. Procurando a resposta, o Dr. Theodor pretende ainda ser capaz de prever o próximo horror ou drama histórico (holocausto), na história universal.

Apontar a loucura como temática fulcral é não só uma análise superficial da obra como também revela a incompreensão total da verdadeira mensagem da mesma.

Estes são não só os assuntos que focalizo na minha interpretação, como são também de facto alegações do próprio autor acerca do seu livro, que se enquadra num conjunto de obras que ele intitula de “livros pretos”. Três livros que falam exactamente sobre estas temáticas;
“Gonçalo Tavares: Quero mais surpreender-me a mim. Há três coisas que me interessam: interessa-me perceber - e esta é a parte mais pesada e se calhar mais ligada aos livros pretos – as coisas mais brutas, a violência que anda por aí. Perceber porque é que as pessoas traem, porque é que as pessoas mentem, porque matam, torturam.

Rosária Fardilha: É a curiosidade do médico de "Jerusalém"?

GT: Sim, perceber. Mas nenhum livro diz o que percebi, é um caminho. Isto é uma parte.”
In http://www.noticiasdeaveiro.pt/default.asp?c=entrevista&p=1&i=15

Penso que a principal razão da minha indignação relativamente ao teu artigo, é não só a óbvia incompreenssão da verdadeira mensagem da obra, como também a ausência notória de uma pesquisa prévia e breve, (e repara que eu digo breve) acreca do autor em si e da forma como ele fala da sua própria obra. E isto não é realizar-se um ensaio nem uma tese de doutoramente; é simplesmente a vontade de conhecer um pouco mais sobre o que se leu, antes de construir artigos de crítica.

12:59 da manhã  
Blogger Pedro Teixeira said...

Cara Ana,

Em primeiro lugar, quando escrevi esta crítica havia já lido algumas entrevistas do Gonçalo M. Tavares. Sabia, portanto, o que ele dizia da sua própria obra. Mas é esse tipo de informações que eu, enquanto crítico, considero acessórias e por vezes dispensáveis para a análise a um objecto que se pretende fechado dentro de uma capa e uma contra-capa. No momento que eu me sentir porta-voz das aspirações que um autor guarda para com a sua obra, deixo de fazer qualquer esboço de crítica, pois aí a crítica deixará de reflectir a minha relação para com o objecto artístico, sem mais intermediários.

Consideras então, erradamente, que nada li acerca do autor - custa-me compreender esta acusação visto que me desconheces (penso eu) em absoluto - e que, tendo lido, deveria reflectir as posições do GMT nas minhas análises - constituindo, a meu ver, a viciação do meu papel.

No que toca à obra, aqui o mais importante, é evidente que subscrevo a análise que fazes sendo, aliás, a mais difundida nos meios de crítica artística acerca de "Jerusalém". Apraz-me que tenhas concluído isso do livro. Por tudo isto, dar-me-ia um prazer infinito que relesses o meu 5º parágrafo, ponderando todas as palavras constantes.

Porque dizeres que refiro a "loucura" como tema principal é amputar severamente o significado que conferi a essa palavra. Verás que não falo de loucura como distúrbio psíquico.

Resumindo, numa frase: a ligação que ao longo do livro o autor faz entre "maldade" e "loucura" não será, certamente, inocente.

2:22 da tarde  

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