terça-feira, dezembro 19, 2006

Air - Late Night Tales



Quando se pretende expressar uma série de eventos na forma de uma ideia ou de uma digressão sentimental, a construção de uma banda sonora pode ser a melhor aliada. Deste facto se socorre o cinema há décadas e a ligação entre ambos parece cada vez mais sólida, mas esses ambientes e as suas regras resvalaram da tela e conquistaram uma autonomia muito própria, consubstanciada após o clássico de Brian Eno Ambient 1: Music For Airports. Apesar de a música dita erudita desempenhar há muito mais que décadas uma função semelhante, só com o desenvolvimento da música popular e o progresso da aparelhagem electrónica (a introdução dos sequenciadores, sintetizadores e samplers, por exemplo) certos sons encontraram lugar e validade. Eventualmente se percebeu que existia um novo campo, fértil em experimentações, cujo relevo, desde os anos 70, vai e vem. O que já não oscila é a importância dos ambientes musicais para além desse estilo mais restrito que é a música ambiente.

E se essa importância se acentua nos tempos recentes, propagando-se por diversas correntes musicais e fazendo da definição de um ambiente um novo critério para o êxito, honra seja feita a uma banda que acolheu essa orientação desde o primeiro álbum: os franceses AIR. Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel, a cumprir uma década de carreira, são responsáveis pela contaminação do ar com um cheiro apenas caracterizável através dos três termos franceses cujas iniciais dão origem ao nome: A de Amour, I de Imagination e R de Rêve (sonho). De todos os álbuns o mais consistente na forma e conteúdo talvez seja Moon Safari, de 1998, embora nenhum seja a excepção a confirmar o ditame, a máxima orientadora. Escutar a discografia dos parisienses é como sentir os efeitos de um bálsamo que não se esgota num aroma ou no alívio da dor, mas que se expande pelo corpo alterando a nossa disposição. Mais do que pela concepção de preciosidades romântico-atmosféricas pop, primam por fazer música capaz de estabelecer novos humores.

Todo este enquadramento gerou uma certa expectativa em relação à contribuição dos AIR para a série Late Night Tales, do selo Azuli. Queria-se perceber o que estava na rectaguarda da sua criação musical, o que tinha levado à depuração da sua música e que género de influências e gostos paralelos teriam. Sucessivos adiamentos na edição do álbum começavam a frustrar quem acompanhava o processo, e até a primeira tracklist vinda a público viria a ser distinta da realmente escolhida. Custa compreender o porquê de tanto atraso, tendo em conta que se trata de uma playlist.

É, de facto, apenas uma playlist. Na verdade, não se pode dizer que tenham sequer dado particular atenção às passagens das músicas. As transições são feitas da maneira mais óbvia, como se o objectivo fosse demonstrar que, perante a qualidade das músicas propostas, nada mais havia a fazer senão pô-las todas em sequência. Hoje em dia, qualquer um pode fazer isto no seu computador pessoal. Tentar, buscando na sua colecção, um agregado de músicas suficientemente boas para se poderem aglutinar e formar um ambiente. Isto é fácil. Difícil é fazê-lo bem.

Quem se lembraria de forjar um álbum indicado para os amantes da penumbra e para todos os momentos simultaneamente melancólicos e belos? Muitos. Mas quem incluiria os Black Sabbath (“Planet Caravan”) nessa compilação, logo a seguir à introdutória “All Cats Are Grey”, dos The Cure? E quem conseguiria tão harmoniosa amostra de doces vozes (Cat Power, Jeff Alexander, Elliott Smith, Reg Presley dos The Troggs e Robert Wyatt), intercaladas por referenciais cinematográficos (Georges Delerue, Tan Dun e Nino Rota), como cenas de um filme ligadas pela banda sonora? Quem arriscaria a inclusão de Minnie Riperton (“Lovin’ You”), na sua face mais descaradamente romântica e colorida? E ainda a tudo isto juntar os estranhos teclado e voz de David Sylvian em “Ghosts”, uma atormentada canção do já lendário Scott Walker (“The Old Man’s Back Again”) e o tom grave na hora da despedida em “My Autumn’s Done Gone” de outro monstro da música contemporânea, Lee Hazlewood?

Poucos. Muito poucos. Provavelmente os mesmos que finalizaram com a interpretação da Orquestra de Cleveland de uma composição de Ravel. Ouvindo mesmo atentamente, fica-se com a sensação que qualquer compilação dos AIR sairía inexoravelmente assim: um álbum de música não original que realmente cria um ambiente. Um álbum para os aspirantes a músicos com poder de encaixe.

Nota: 9/10