domingo, outubro 08, 2006

Transe

“Como é que te chamas?
Não digo.
Como é que vieste aqui parar?
Não sei.”

“A Sónia é uma personagem que se vira do avesso: podem vender o seu corpo, trocá-la por armas e por cavalos, mas ela não se perde por dentro. Os russos já passaram por muito. Têm uma força própria, como se pudessem resistir a tudo.”

Ana Moreira, in Y

Dizer que Ana Moreira protagoniza em Transe uma das melhores interpretações da história do cinema português, chega a ser um insulto para a própria. Ana Moreira é, com Sónia, o momento mais alto da interpretação cinematográfica feminina portuguesa. Teresa Villaverde é como um treinador que cedo se apercebe que para a equipa funcionar, o esquema tem de ser desenhado para que tudo jogue para o seu melhor jogador. Ana Moreira é o seu trunfo. Com todos os erros que pode ter cometido, Teresa Villaverde soube explorá-lo.

Woody Allen abusou do corpo de Johanson, Mónica Bellucci vê não raras vezes o seu corpo ser o seu rosto, como em Malena, Ana Moreira não precisa de mostrar o dramatismo do seu corpo, embora o mostre, para ser expressiva. Faltam adjectivos que consigam caracterizar a emoção da falta de emoção que os seus traços sugerem. Como da primeira vez que é violada no filme. O calor do violador e o contraste do seu corpo, que é a sua cara, os seus olhos. Será assim ao longo de filme onde Sónia nunca sorri, nunca deixa antever um momento de felicidade, um pequeno pormenor. Tudo em Sónia é um transe de tristeza, uma desilusão com a vida que não sonhou nem quis.

Sónia também não chora. Pelo menos por fora. Amordaçada por si própria, fruto da mágoa de alguém que já não sonhou muito, mas conseguiu receber pior, Sónia vai sendo molestada, violada, humilhada, vendida. Transe é mais a história de uma mulher do que da prostituição. Menos uma metáfora doentiamente dolorosa sobre a prostituição do que a memória de que cada mulher é uma mulher e esta foi obrigada a deixar de o ser. Sónia é uma mulher que nunca teve possibilidades de ser feliz. Infeliz na sua Rússia, entra numa espiral da qual não há fuga possível a partir do momento em que decide emigrar. Quando todos à sua volta são apenas mais um rosto da podridão que a tenta arrastar para o seu lodo, Sónia não se refugia em ninguém, simplesmente porque esse alguém não existe.

Transe, apetece dizer, é um filme que só podia português. Apesar de filmado na Rússia, Alemanha e. em parte, Portugal, Transe traz o que de mais típico o cinema português oferece. A paixão desmesurada pela poesia do momento, da paisagem e da quietude. Como tal, Transe é um paradigma do género. Se em determinadas cenas os planos mais lentos são o mote para criar uma empatia de tristeza com o espectador (como o sejam o degelo inicial ou a cena da cadeira no bordel italiano), noutros é apenas um desgastante e penoso arrastar de uma cena que, por isso mesmo, perde a força que trazia (como as constantes paisagens ou a longa percepção de que alguém se aproxima do carro).

Teresa Villaverde consegue ainda recriar com mestria, e sem a desnecessária brutalidade física, o ambiente sufocante e provinciano do bordel, aqui em versão italiana (ainda que gravado em Portugal), passando ainda por uma versão mais privada da prostituição, num exercício do surreal, onde uma encarnação do ego e da possessão se torna seu dono. Para além disso, e tornando-se inevitável voltar a Ana Moreira, já que é dela o filme, incrível a capacidade de adaptação de uma Ana Moreira que um ano antes do filme começar iniciava estudos de Italiano e Russo que, a par do português, fala fluentemente no filme.

Um filme notoriamente português, que consegue fugir à sua faceta informativa e revoltada face a uma realidade obscura que quer expor. Talvez por saber que já todos têm conhecimento dela. Opta assim por se centrar na individualidade dos “objectos” que realmente sofrem com essa realidade. As mulheres, as Sónias. Com excessos de onirismo e poesia, de grandes planos (exceptuando tudo o que envolva o rosto de Ana Moreira), Transe aventura-se seriamente para os terrenos de melhor filme português do ano.

Título: Transe
Realizador: Teresa Villaverde
Elenco: Ana Moreira, Viktor Rakov, Iaia Forte, Tim, Pedro Giestas, Robinson Stévenin, Dinara Droukarova, Andrey Chadov e Tim Filippo Timi.
Portugal, Rússia, Alemanha, 2006.

Nota: 7/10

7 Comments:

Blogger Hugo said...

Português sim, mas com um desfecho trágico como o de Der letzte Mann de Murnau (mutatis mutandis, claro), bem como com a interiorização das principais características do cinema russo, maxime Tarkovsky e Sokurov, na capacidade de abstracção e na forma como o tempo se faz sentir.

O resultado está à vista. Um filme magnífico. Dos melhores do Cinema Português dos últimos anos. E ao nível de "os mutantes". Villaverde retomou a sua capacidade de agarrar numa dada matéria social e arremessá-la para o écran, sem filtros. Uma vez mais é notável como a malvadez e a crueldade estão sempre presentes, mas sempre sem cair no mau gosto ou no lugar comum.

2:20 da manhã  
Blogger Gustavo Jesus said...

Influências aparte (das quais, por demérito cinéfilo meu, apenas reconheço em Villaver, Tarkovsky), a verdade é que Transe abusa dos planos demorados e prolongados, como em geral todo o cinema português de autor.

E embora pessoalmente isso, na maioria dos casos, me agrade, é uma das principais causas para o público português andar de costas voltadas para o seu próprio cinema. Convém esquecer que esta obra estética é um filme, e não apenas um poema.

Quanto ao filme em si, de novo, concordo com a (boa) análise que fazes do mesmo, quer aqui quer no teu blog, mas permite-me apenas discordar quando dizes que Villaverde nos apresenta um filme "sem filtros". Se há coisa que Villaverde não faz é dar-nos algo puro, à Gus Van Sant, para que o digeremos nós. Apresenta-nos algo cujas impurezas poéticas foram retiradas, deixando-nos a sua realidade onírica e, perdoa-me o pleonasmo, poética, onde o que passou pela peneira foi, acima de tudo, a dor de Sónia.

10:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O que é "abusar dos planos demorados"?
Outra coisa: alguém (Claude Chabrol) dizia que há dois tipos de realizadores, os técnicos e os poetas, assim, não vejo porque não poderá um filme ser um poema...

1:40 da manhã  
Blogger Gustavo Jesus said...

Um filme pode ser poético. Pode ainda um filme ser poesia. E pode haver cruzamento entre as duas artes. Mas um filme não é um poema. Ainda que se diga o contrário, como também faço, em tom metafórico.
Obrigado pela citação do pai na nouvelle vague, ficamos todos mais ricos.

2:24 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Um reparo: Claude Chabrol não é o pai da nouvelle vague.
Cumprimentos

12:59 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

desculpem só que vos diga que vocês não passam de uma cambada de pseudo-intelectuais com pretensões demasiado masturbatórias. Os comentadores digo eu. Ainda bem que existe a net para vocês se poderem fazer ouvir um pouco para além de um circulo da mesa de café. Fico até comovido ao ler o que escrevem. Onde é que vocês aprendem a falar assim? Se estudarem bem vão reparar que nenhum dos nomes que vocês citam falam dessa maneira, são normalmente pessoas bastante simples e directas. Não estão sempre a fazer referências sistemáticas a outros nomes suficientemente obscuros, especiais e diferentes que não prtendem mais nada senão provar que estudaram bem a lição, para esconder que por trás dessa capa de conhecimento enciclopédico e dos livros não existe absolutamente mais nada. Vazio. Inexistente.
É muito triste. Cada vez mais me convenço que este país é uma anedota cheio de pessoas que podiam fazer tanto, mas que fazem tão pouco.

7:02 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vi o filme. Gostei. Mas gostei ainda mais deste texto.

12:06 da manhã  

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