segunda-feira, dezembro 19, 2005

Guerolito


Beck. Beck Hansen. Afirmo-o, introdutoriamente, como um dos mais luminosos faróis do mar tormentoso e revolto que foi a música da década de 90. Sobre este decénio se abateram 30 anos (60's, 70's e 80's) de evolução hedonista e cavalgante da inovação musical. No entanto, nesta era de indefinição, vários artistas souberam libertar-se de um certo sentimento de fim da originalidade, de ausência de novas perspectivas, e criar sonoridades para influenciar o futuro. O frágil Beck, o Guero do bairro, despontou em 1993 com o subestimado Golden Feelings, uma mistura timidamente psicadélica de rock, blues, sampling, vocoder e muito, muito experimentalismo. Em 1994 teria o seu próprio Annu Mirabilis, editando 4 álbuns e atingindo a difusão radiofónica mainstream, com o ultra-espremido Loser que, ouvido hoje, soa a grunge em conflito consigo próprio. Embora parte significativa dos ouvintes ocasionais, se hoje questionados, continue a colocá-lo no imaginário de Loser, a verdade é que Beck fez por superar a herança asfixiante do pós-grunge (um trauma que se arrasta desde meados da década de 90 até hoje, estando felizmente enfraquecendo, por força da vitalidade da cena brit-rock, de algum novo rock americano e do excitante meio canadiano), tendo lançado verdadeiras pérolas como Odelay e Midnite Vultures, movendo-se de um modo imprevísivel entre estilos, de tal maneira que apenas é enquadrável num super-género: a música indie (se notarem, é definir muito pouco).

Neste ano que se apressa em terminar, libertou o aguardado Guero, onde regressa aos tempos iluminados de Odelay, confeccionando uma saborosa miscelânea de guitarras encardidas, refrões orelhudos, sonoridades hispânicas (sempre perigosas) e alguma electrónica na sublimação do Beck-rock.

Estabelecido o planeta Beck, chegamos a Guerolito, o seu primeiro disco de remisturas. Tal como os Bloc Party e os DFA 1979, também Beck cedeu à tentação (e ao risco) de revelar um trabalho desta natureza, sempre sujeito a rigoroso controlo crítico. A única diferença para os exemplos supra-citados é a de que, em Guerolito, todas as faixas de Guero têm direito a remix e surgem na ordem do original. Isto faz com que Guerolito ganhe um novo alcance, impossível para uma mera colecção avulsa de novas versões, tornando-se uma visão alternativa do mundo de Guero.

Assim que se termina a audição ininterrupta de Guerolito, somos atingidos por esta constatação paradoxal: embora as 13 remisturas sejam da autoria de 13 músicos ou conjuntos distintos, há uma inegável harmonia e equilíbrio ao longo dos 54 minutos de escuta. Ora, como o acaso tem pouco que ver com a produção de álbuns, salta à evidência que aqui houve um aturado cuidado estético na selecção dos autores. Beck agremiou um punhado de músicos que partilham uma mesma tendência: a eletrónica e, muitos deles, o ambientalismo. No meio das variadas sensibilidades, destaque para mais uma colaboração com os franceses Air, que aqui assinam uma das mais conseguidas remisturas (Heaven Hammer), dotando o original Missing de uma batida sincopada e de ecos despidos, suficiente para a transportarem do tropicalismo para o espacialismo; Broken Drum, trabalhada pelos canadianos Boards Of Canada, eleva-se devido à sua extrema acalmia, digna de uma imersão controlada; Diplo, autor do consistente Florida (2004), submete Go It Alone a um suculento baixo eletrónico e faz todo um sóbrio enquadramento melódico que torna a recém-denominada Wish Coin um dos pontos altos do disco; sublinhem-se também as boas colaborações de Adrock (Beastie Boys), de El-P ( embora vagamente enquadrada no álbum), de Mario C, dos 8-Bit, dos Octet e de John King dos Dust Brothers (responsável pelo momento 80's sci-fi do álbum). As participações dos Homelife e dos Islands são apenas medianas e há mesmo espaço para alguns desacertos, como as composições dos Th' Corn Gangg e de Subtle, desprovidas de qualquer ideia plenamente cativante. Quanto à inevitável introdução de uma nova faixa (quiçá por imperativos comerciais), está longe de nos poder gerar um sentimento súbito de êxtase ou mesmo, quem sabe, de nos levar ao nirvana auditivo. É um fim dispensável para um projecto globalmente bom. Guero, take 2.
Nota: 6 / 10