segunda-feira, novembro 20, 2006

Filoctetes de Sófocles


Luís Miguel Cintra é uma das principais referências do teatro nacional das últimas três décadas. É comum ouvir-se jovens actores portugueses louvarem o seu mestre. Veja-se o exemplo de Nuno Lopes quando recebeu o Globo de Ouro 2006 pela sua interpretação no filme Alice. Para quem nunca viu Luís Miguel Cintra em palco, pensa que este tipo de dedicatória resume-se a um jovem actor agradecido pelo acolhimento e ensinamentos do líder da Cornucópia. Para quem já assistiu a uma interpretação deste percebe facilmente que é muito mais do que isto. É a dimensão das suas capacidades que o elevam, a coerência das personagens, a preocupação com os sentimentos, a voz, a entoação. Em entrevista, o actor disse que com a velhice o corpo fica muito mais limitado, fica-se cansado, a voz também, a memória fica pior, pensa-se pior. Eu confesso que não vi Luís Miguel Cintra interpretar um papel há 10 anos atrás, mas não consigo imaginar que fosse qualitativamente melhor. É impossível!
A última personagem interpretada pelo actor natural de Espanha chama-se Filoctetes e é a personagem principal de uma tragédia grega com o mesmo nome, da autoria de Sófocles. É uma obra que foi escrita há mais de 2500 anos. Qual a relação duma obra tão antiga com a filosofia do Teatro da Cornucópia? Como conseguiria Luís Miguel Cintra transpor as palavras de Sófocles para actualidade? Qual o debate que o encenador (para quem não sabe, Luís Miguel Cintra acumula a excelência da interpretação com a intuição da encenação) pretende trazer para a rua? Quisemos um espectáculo cru, artificiosamente, eu sei, despojado de enfeites e acessórios. Perto das palavras. Perdoem-me a colagem mas esta citação de Luís Miguel Cintra é a resposta. O encenador foi ao âmago da escrita de Sófocles e descobriu, como é próprio dos grandes autores, a intemporalidade das suas palavras. Para tal, recebeu a preciosa ajuda de Frederico Lourenço, autor da recriação poética. Mais concretamente o que é Filoctetes? É uma personagem que foi traída e atirada para solidão acompanhada por dolorosas dores e um arco sagrado. Nove anos passados é confrontada com a pureza e jovialidade de Neoptólemo, que surpreendentemente o trai pela força do seu maior inimigo, Ulisses. Filoctetes é indispensável para a vitória em Tróia e tudo tinha que ser feito para o persuadir para o combate. O conflito de gerações, a traição, o orgulho, a ingenuidade são as pontes da Grécia Antiga para a actualidade.
Estas três personagens são auxiliadas por um coro de marinheiros, um vigia disfarçado de mercador (mais um pormenor genial de Luís Miguel Cintra que não vou desvendar), outro vigia e Héracles. O elenco responsável pela interpretação é formado por André Silva, António Fonseca, Duarte Guimarães, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luís Miguel Cintra, Martim Pedroso, Nuno Gil e Tiago Matias. Todos os actores respeitaram o desejo do mestre e procuraram nas suas personagens as suas fragilidades, medos, motivações, ambições…o lado humano de cada um. Para além de Luís Miguel Cintra e pelo peso das personagens, destaco as interpretações de Duarte Guimarães e António Fonseca, Neoptólemo e Ulisses, respectivamente.
A todo este jogo de conceitos e interpretações acrescenta-se uma encenação bastante subtil, sustentada por um cenário brilhante, conceptualmente minimalista, com o intuito de nos aproximar das palavras

2 Comments:

Blogger Pedro Teixeira said...

Realce para o destaque dado ao tédio e ao isolamento, num tratamento literário que só seria levado às últimas consequências já depois do século XVIII. O texto original é, a todos os níveis, impressionante, mesmo que dispensável quando considerando outras grandes obras do período helenista.

11:22 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Há algum tempo fiz aqui um comentário quanto aos posts que pretendiam realçar certos actores dramáticos nacionais. Na altura critiquei o facto de apenas serem mencionados actores de comédia. É com agradável surpresa que, após bastante tempo, volto a este blog e me deparo com esta evoluçao.

12:57 da manhã  

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