sexta-feira, dezembro 08, 2006

Vivo #2 - Cat Power no Festival Radar (Aula Magna)


As expressões artísticas não têm consciência de si. Quer sejam construídas pelo homem ou compreendidas na sua total substância mas não dele emanadas, parecem depender do desempenho do criador ou intérprete caso surjam inesperadamente medíocres. Há no entanto certas especificidades que distinguem algumas expressões artísticas de outras. No cinema, após a estreia de uma fita ela comportar-se-á seguindo a mesma linearidade, evitando qualquer flutuação (excepto os casos em que se procedeu a uma reedição futura, por vezes com tratamento tecnológico); na generalidade das artes plásticas não é pedido ao artista que exiba a sua mestria em tempo real, pelo que a obra final resultará imutável, se correctamente protegida; as obras literárias congelam na forma assim que o autor ou editor as divulgam, sobrando apenas espaço para não mais que meros adornos ou aguçadores do apetite; as artes dramáticas, no entanto, sobrevivem da proclamação estética concluída somente no cair do pano e vivem no (e do) medo permanente do erro e do fracasso; a música, do modo que se nos apresenta hoje em dia, evolui em dois tabuleiros quase autónomos cujas regras fundamentais divergem. Torna-se claro que, tal como a apresentação ao vivo advém da gravação, também a representação teatral brota do texto dramático e a película do argumento. Não obstante, em nenhum destes casos (nem, diga-se, na maioria dos outros) há tamanha adequação entre o resultado final do objecto artístico enquanto obra estabilizada e a exibição do mesmo a uma audiência como na vertente musical. Porque o que releva quer do álbum, quer do concerto é, afinal, a música.

Adiante: as experiências artísticas não têm consciência de si nem dos outros. São antes estados prévios que dispensam qualquer tipo de pudor ou compaixão, mesmo quando os outros são quem lhes deu forma. São filhos a quem não devemos educar na esperança de uma consideração recíproca. Essa separação é um dos requisitos para a autonomia da expressão artística e, consequentemente, fonte de força da arte como um todo.

Pondo de parte o meu altruísmo artístico, mandando às urtigas tudo o que disse, permanece em mim o mesmo sabor agridoce que se instalou à saída da Aula Magna. A norte-americana, em estúdio, é uma pérola. Álbuns como Moon Pix, You Are Free e o recente The Greatest colocaram-na no trilho de outras grandes figuras femininas da canção. Esperava-se, na segunda visita a Portugal, que Chan Marshall se redimisse do desastroso concerto em Matosinhos, em 2004, mostrando estar finalmente num estado minimamente controlado (pessoas como ela não se desejam excessivamente domesticadas) que permitisse aos portugueses ouvir aquela belíssima voz marcada pelas vicissitudes da vida, a terna melancolia inscrita nas letras das músicas e nas composições a habitar os terrenos do rock, blues e folk.

Quem lá foi ansiava por essa grandeza para a qual o último álbum avisa, esperando deleitar-se com a sublimação das suas capacidadas, isto é, com o fim das mudanças súbitas de humor, os desvarios súbitos e as crises emocionais ou hormonais. Um concerto com canções tocadas do princípio ao fim, com Cat Power acompanhada pela banda e com Cat Power a solo, à guitarra ou ao piano. Assim ela planeou e fez, sendo acompanhada pela super-banda (e superlativizada) The Dirty Delta Blues Banda, ao longo de cerca de uma hora. Extremamente descontraída, pareceu flutuar durante as canções, dançou, cantou, acenou, apresentou timidamente as suas desculpas em relação ao sucedido no primeiro concerto, descalçou os seus sapatos portugueses e foi agraciada com uma longa ovação, ao que ela respondeu rompendo pelo meio do público distribuindo setlists pelos felizardos.

Tendo feito quase tudo bem, não deixa de ser intrigante sentir que, no fim de contas, quase nada resultou ao nível do que se gravou em estúdio. Apesar de alguns momentos bem conseguidos, como o belíssimo cover de “Satisfaction” e as mais intimistas “I Don’t Blame You” e “Where Is The Love”, apesar de se ter atravessado diversos álbuns (com maior ênfase para o último) para gáudio dos fãs mais indefectíveis, apesar de ressuscitar certa parte do legado musical norte-americano (Bill Callahan paira em muitas das músicas de Chan Marshall), o concerto desenrolou-se sob arreliantes condições técnicas – um zumbido estático corrompeu a qualidade do som ao longo de toda a actuação, o baixo e a bateria pareciam asfixiados, deram-se grandes oscilações do volume sonoro e até se aturou uma reverberação amadora aqui e ali.

Com tudo isto, ficou claro que público presente era de tal maneira admirador das virtudes de Cat Power que se esqueceu de ser exigente, oferecendo uma ovação bajulatória no término do concerto. E se a audiência que lotou a Aula Magna tinha como desejo único, como ânsia suprema, poder vê-la chegar ao fim das canções, então chegou certamente agradado a casa, pese embora o facto de que a mulher, aparentemente sóbria, tem por certo um temperamento peculiar, visível quando interrompeu uma das canções sob o infantil pretexto de haver percebido a sua própria falta de talento através de um ataque de tosse de uma senhora do público.

Foi, em suma, uma pálida amostra do que Cat Power é, – uma “cantautora” cujas canções reflectem uma estranha e frágil mistura de beleza, melancolia, depressão e distúrbios emocionais – numa noite em que a manifestação artística, sem dó nem piedade, não quis cristalizar a obra presa nos álbuns.