quinta-feira, março 30, 2006

Madita


Madita, natural de Viena, chamou a atenção quando participou no álbum aclamado pela crítica de dZihan&Kamien Gran Riserva. Desde aí que a vocalista/compositora Madita e o multi-instrumentalista/produtor Vlado Dzihan iniciaram uma relação afectiva. Com este álbum de estreia de Madita intitulado também com o próprio nome da vocalista, estabeleceu-se igualmente uma parceria musical. Este álbum foi lançado pela editora Couch Label, representando os últimos frutos das produções deste dois austríacos, já que Dzihan ficou encarregue de toda a produção e todos os instrumentos envolvidos.
Penetra nos mesmos terrenos downbeat/nujazz presentes em trabalhos anteriores de D&K, acrecentando-lhe uma voz feminina e uma presença lírica, muito ao estilo do registo tipicado por Lamb e Zero 7. (Calma...) O que acabei de referir não quer dizer que madita=Zero 7 ou madita=Lamb. Este álbum atinge igualmente um soul instrumental que se encontra presente nos dias de hoje em Alice Russell. "O disco não pode ser encaixado em nenhuma das usuais convenções musicais associadas à Electrónica ou ao Jazz, em vez disso cria uma nova simbiose musical. ", citando a Couch Label na divulgação deste disco.
Essas noções de não se encaixar em nenhum género musical, que cria todo um ambiente nunca antes visto, deve-vos parecer suspeito quando é a própria editora que o refere. Pessoalmente, concordo plenamente com essa definição vaga, dado que o alcance da sua música é deveras significativo, penetrando em campos musicais de grande ritmo como o samba, assim como o jazz vocal ou mesmo os sons manipulados e electrónicos.
A faixa de abertura, Ceylon , revela-nos um piano elegante num dos melhores momentos downbeat do álbum, acompanhado por um ritmo hip hop que vagueia debaixo dos ecos electrónicos e dos baixos sintéticos, enquanto a espectacular voz de Madita se solta.
Uma força particular que tem que ser mencionada que realmente acrescenta muito a este trabalho, é o facto de Madita ter a confiança de cantar na sua própria voz, que é indiscutivelmente familiar a vozes como Ella Fitzgerald, Billie Holliday mas principalmente com Bjork. Esta sua entrega a diferencia das legiões de vocalistas do mesmo registo nujazz. Monotony é a faixa mais alegre do álbum, muito por culpa dos jazzy pianos e dos ritmos vivos do samba. Mood descende de um s0ul downbeat, enquando a suavidade da voz de madita tenta ganhar espaço entre as texturas sintéticas e o mesmo jazzy piano. Has to be apresenta a letra mais surreal e ao mesmo tempo a mais emotiva ("sometimes my leg hurts me real / sometimes I change my wheels"), antes de To the Moon and Back trazer de volta para primeiro plano o trabalho electrónico de dZihan. June traz à mente do ouvinte o álbum Vespertine de Bjork, somado ás incríveis semelhanças vocais. A última faixa, Intime, procede uma visita ao jazz-samba, em que soa por detrás os xilofones e as percurssões brasileiras.
Esta característica musical de Madita de tentar fundir o latino/brasileiro com o europeu(chamemos assim), parece estar presente em todo o álbum.
Transforma-se, então, facilmente num dos mais capazes e consistentes lançamentos de uma voz feminina do registo soul/jazz, mantendo os padrões elevados já apresentados na backcatalogue da Couch Labor. Capta da melhor maneira a perícia produtiva de dZihan combinada com a abilidade vocal de Madita.

CD: Madita - "Madita" (Couch Records)

terça-feira, março 28, 2006

Avalanche


Por estes dias, o Teatro Villaret apresenta mais uma peça de teatro no registo cómico intitulada por Avalanche. A produção, como é habitual no espaço, fica a cargo da UAU. O texto é da Ana Bola. Os actores são: a própria Ana Bola, as suas colegas do HermanSic Maria Rueff e Maria Vieira, o Bruno Nogueira e o Miguel Guilherme.
O Teatro Villaret já nos habitou a grandes peças neste registo, é nesta sala que António Feio, José Pedro Gomes, Miguel Guilherme ou Virgílio Castelo costumam exibir todo o seu talento e experiência. Portanto, a expectativa inicial era que a Ana Bola conseguira escrever um bom texto que aliado a uma (improvável) demonstração de qualidade de todos os actores faria um grande espectáculo. Mas o texto é fraco. Primeiro, o enredo em si não é nada de genial. Os momentos cómicos (piadas) são previsíveis, ou por mim ou pelo colega do lado, havendo poucas cenas mesmo inesperadas e que nos apelem à gargalhada. As relações entre as piadas são muitas vezes forçadas. O texto é incoerente, com erros visíveis na história. Foi escrito para aqueles actores, o que possibilita potenciar as vertentes humorísticas, mas que também absorve os gestos estereotipados dos mesmos.
A UAU volta a apostar num efeito visual bastante forte. O cenário é muito bom e estende-se até ao pormenor. Os espaços cénicos estão muito bem conseguidos, os actores têm liberdade de movimentos e a diversidade de recursos que o mesmo apresenta é realmente surpreendente. Se é normal as produções UAU apostarem em cenários tão ricos, não é normal estes serem um destaque no espectáculo.
Os actores (apetece-me comentá-los individualmente, mas em alguns casos estaria a repetir posts anteriores). Divido-os em três grupos: Ana Bola e a Maria Vieira; a Maria Rueff; e o Bruno Nogueira e o Miguel Guilherme.
A Ana Bola e Maria Vieira são fracas. Incapazes de evoluírem na personagem, incapazes de se afastarem do registo do HermanSic, tornando-nos incapazes de sentir que nunca vimos tais gestos ou expressões.
No lado oposto estão Bruno Nogueira e Miguel Guilherme. O Miguel Guilherme é A Minha Referencia #1 e hoje repetiria o post que fiz sobre ele. O Bruno Nogueira, já o elogiei pela soberba capacidade de fazer rir no seu estilo próprio e com uma expressividade corporal única, mas nesta peça ele demonstra algo que ainda não era claro nele: a capacidade de criar uma personagem credível e afastada do seu natural tipo de humor.
A Maria Rueff é para mim um caso que propicia facilmente a discussão. É fácil gostar-se como detestar-se. É verdade que ela é muito boa na irradiação e em dar a réplica, mas eu fico sempre com a sensação que ela não protagonizou os momentos hilariantes das peças que eu assisti. Em conversa com Ultraviolet, chegámos à conclusão que o Herman José fora inteligente em nunca se aventurar muito como actor de teatro, já que é em televisão que ele é o melhor. Não deveria a Maria Rueff seguir o saber do seu mestre?
Em tempos de crise, temos a tendência de avaliar constantemente os investimentos que fazemos. E será que vale a pena gastar 18 ou 20 euros nesta peça de teatro. Para mim? Vale porque o Miguel Guilherme não costuma fazer mais do que uma peça por ano. Vale porque me satisfaz ver o Bruno Nogueira a crescer.

segunda-feira, março 27, 2006

3 minutos antes da maré encher

Que poderiam fazer os A Naifa após o sucesso de Canções Subterrâneas? Continuar, pois claro. O problema é que, da sucessão de um disco que veio revolucionar espera-se sempre algo novo. Não é, de facto, o caso. Ainda bem. Em Canções Subterrâneas, obtemos uma mistela muito agradável entre a Pop, o Trip-hop, a Electrónica e, chave-mestra de todo o conjunto, o Fado. Em 3 minutos antes da maré encher, idem aspas. A diferença é que estamos perante um género / sub-género / mistura de géneros (riscar o que lhe parecer menos apropriado) que, não sendo virgem, é orfã de projectos de qualidade.
No seu primeiro trabalho os A Naifa conseguiram espantar o mundo crítico português. É possível fazer Fado-Electrónico com qualidade, com uma identidade própria, sem samplar Amália com uma batida de duvidosa novidade. E fizeram-no com uma força e um ímpeto que a necessidade de serem ouvidos exigia. Neste segundo disco, estão mais calmos. Os mesmos problemas urbanos estão lá, a mesma fusão de estilos está lá, a não renegação do Fado como ponto de partida está lá, mas já não é preciso tanta efusividade. Eles já sabem ser ouvidos. Há que dar voz, então, à palavra.
Pegando no título de um livro de Valter Hugo Mãe, em 3 minutos antes da maré encher, sucedem-se poemas de jovens poetas portugueses como Adília Lopes, José Luis Peixoto ou Rui Lage, num alinhamento coerente, não muito arriscado, jogando pela certa, onde a componente Fado tanto é dada pela voz de Mitó, como pelas ambientais guitarras portuguesas. Em relação ao primeiro trabalho, um pouco mais de relevo para o Trip-hop. De resto, prioridade à palavra. Quem canta "Tenho uma estátua florescente da virgem maria." só o pode fazer.
Contra os A Naifa, um dos mais acertados e benvindos projectos no que toca ao tratamento do Fado, joga a especificidade da sua música. Muito centrada nesse mesmo tratamento ao Fado, e num público maioritariamente citadino, numa faixa etária muito trintona. Apesar disso, ficam bons registos como "Da uma da noite às duas da manhã", "Fé", "Senoritas" ou "A verdade apanha-se com enganos". Em imagem, o cartaz que anuncia as datas do seus concertos.
Título: 3 minutos antes da maré encher
Autor: A Naifa
Nota: 7/10

Coisa Ruim

Um casal, cujo chefe de família, um biólogo e herdeiro de uma casa no interior do país, decide-se mudar de malas feitas, saindo de Lisboa, com o intuito de mudar de vida enquanto é tempo e aprofundar as suas pesquisas.
Como era de prever, a sua família não partilha da sua opinião, de que uma vida no campo é melhor do que na cidade, ainda assim, o pai leva a melhor, e com ele leva também a sua mulher, filha mais velha, o neto e o filho mais novo, deixando o filho mais velho em Lisboa.
Chegados ao destino, vão-se apercebendo de certas crenças populares, que vão assustando cada membro da sua família. Verdades? Ou superstições? A verdade é que inclusive um homem da ciência se vê obrigado a regressar a Lisboa.

Ao entrar na sala, apercebi-me que apesar de ser um filme português, não iria ver a Soraia Chaves despir-se de forma sensual. É que apenas éramos cinco, sentados numa sala de cinema de um dos centros comerciais mais frequentado de Lisboa. Esta situação prova que um sucesso de bilheteira não implica maior qualidade. Um filme definitivamente marcante para quem o vê, quer pelos cenários, banda sonora, interpretação (de alguns) e pelo ambiente que se cria na sala. Um filme que altera o estado de espírito do espectador, altera a respiração do espectador e que obriga o espectador a alterar a sua posição constantemente.
Parabéns a Rodrigo Guedes Carvalho pelo seu primeiro argumento cinematográfico. O Repórter da SIC consegue deixar “o país e o mundo” a olha-lo com outros olhos e à espera de outros argumentos, já que demonstrou um enorme sucesso.

Em suma um filme português muito bom, que com menos de metade do orçamento habitual para este tipo de cinema no estrangeiro, é capaz de igualar ou supera-los em termos de qualidade. Prova disso mesmo é que ‘coisa ruim’ fez as honras da casa no festival Fantasporto do presente ano.

Titulo: Coisa Ruim
Realizador: Tiago Guedes e Frederico Serra
Argumento Original: Rodrigo Guedes Carvalho
Elenco: Miguel Borges, Isabel Branco, Paulo Branco, Orlando Costa, Manuela Couto, Filipe Duarte, Elisa Lisboa, Adriano Luz, José Afonso Pimentel, João Pedro Vaz e Gonçalo Waddington.
2006

quarta-feira, março 22, 2006

Fotografia


Pela segunda vez, ocupo o meu tempo e espaço a divulgar (e descobrir) mais qualquer coisa sobre Fotografia. Recorri, novamente, aos tão prestigiados prémios World Press Photo para escolher uma fotografia que me despertasse atenção. Se ao visualizar todos os premiados de 2005 a escolha foi difícil, com os deste ano o mesmo não se passou. Não por serem piores que o ano anterior. E, admito que, esta fotografia que vos apresento, não é a minha fotografia preferida.
O que esta fotografia tem de especial é o facto de ter sido tirada por João Silva.
João Silva é um fotógrafo português que cedo emigrou para África, a sua residência é na África do Sul. Neste momento trabalha para o "New York Times", é um dos mais famosos repórteres de guerra. Ele esteve na grande maioria das guerras civis de países africanos, assim como, na Bósnia, Iraque e outras zonas conflituosas do globo.
Esta fotografia tirada numa prisão do Malawi valeu-lhe o segundo lugar na categoria de Contemporary Issues Singles do World Press Photo 2006.

terça-feira, março 21, 2006

Sobre o Roubo


"A Associação Fonográfica Portuguesa vai apresentar, dentro de semanas, queixas-crime contra utilizadores da Internet que usem serviços ilegais de partilha de ficheiros de música", assegura o director-geral da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP), Eduardo Simões, ao JPN (http://jpn.icicom.up.pt)

Numa altura em que se prepara nova vaga, em jeito de cruzada, contra os utilizadores de programas de download musical, como o Emule, e em que se repetem os slogans que abundam nos cinemas, onde se tenta fazer crer que fazer download de músicas é crime, convém esclarecer alguns pontos.
Não se tenta, por acesso à net e download de músicas, negar aos músicos e aos produtores, o seu quinhão, a sua justa e merecida fatia num bolo cujo cozinheiro são eles. Nem tão pouco se evoca a Arte como algo à parte do mercado capitalista, apelando a desvirtuados e inócuos slogans de "A arte pela arte". Mas, por favor, não me queiram convencer que é um roubo a minha vontade de conhecer mais música.
O argumento de que a música é um mero produto, capitalizável como se pretender, esbate-se numa sociedade que se quer culta e informada, e onde se pretende a livre troca de ideias e opiniões. Não tratem a arte como se fosse um mero repolho ou uma secretária de mogno. Longe vão os tempos em que a Arte era algo destinado às elites, onde uma burguesia enriquecida ditava as leis.
O uso de programas como o Napster, o Audiogalaxy ou o Emule, mais não são que uma geração que grita pelo seu direito, repito, pelo seu direito de acesso a um dos principais meios artísticos. Urge conhecer o máximo possível, para que cada um possa filtrar o que mais lhe agradar e para que se possa falar com conhecimento de causa. Só assim se consegue uma meio artístico vanguardista e uma sociedade culturalmente informada.
Um jovem que tenha disponíveis €75 por mês para comprar cds, dvds, livros e demais formas de acesso à cultura (e, diga-se muito honestamente, consegue-se dificilmente juntar tamanha quantia mensal para tais fins) e mesmo que reserve todo esse dinheiro para a compra de cds, conseguirá, na melhor das hipóteses, 5 cds por mês. Obviamente que tal não interessa à AFP, cujo único intuito é o de assegurar que é pago quem lhes parece ter tal direito, mas esta não é a sociedade de forte componente cultural que se pretende.
Deixarei de roubar, no dia em que, como o faço com os livros, conseguir comprar cds bem mais baratos. Deixarei de roubar, quando encontrar cds em edições mais baratas em feiras, como o faço com os livros ou dvds. Deixarei de roubar, quando um cd 12 de músicas que não conheço totalmente não custar mais de €15. Deixarei de roubar, quando encontrar promoções que me permitam exercer o meu direito à cultura, tal como o faço com os livros ou dvds. Deixarei de roubar, quando houver justiça entre o preço que pago e o bem a que tenho acesso. Deixarei de roubar, quando tiver à minha disposição, tal como tenho para a Literatura (Bibliotecas), espaços onde posso usufruir de uma larga variedade e qualidade de produtos musicais. Deixarei de roubar quando a Música for considerada cultura, quando o I.V.A sobre a música não for de 19%, ao contrário do I.V.A. sobre os livros, que se fica pelos 5%. Deixarei de roubar, quando não me roubarem a mim o meu direito de conhecer.
Mas, obviamente, o ladrão sou eu. E assim caminha Portugal, onde a Arte se parece querer para uma elite endinheirada.
(Todo este texto foi escrito ao som de Kanye West's Late Registration, óbvia e conscientemente "roubado" da net.)

Achso




Após a audição do duplo vinil Achso, editado pelo selo Cadenza, confirma-se a suspeita que alguns guardavam: Ricardo Villalobos será um fazedor de singles (de preferência de 12’’) e não de álbuns. Talvez seja mais apropriado esperar (como durante o ano de 2005) que ele vá lançando EP’s, vinis, remisturas e até colaborando em algumas compilações. Que não se entenda por isto que os seus álbuns sejam menores ou evitáveis – não o são efectivamente. Em Alcachofa e The Au Harem D’Archimède, o chileno soube povoar as faixas de ritmos e batidas ora frias, ora quentes, por vezes ríspidas e por vezes lânguidas, em subtil acordo com as suas habituais produções singulares e hedonistas. Nesses discos nota-se que a liberdade é menor, e o prolongamento que (não) pode dar às pistas obriga-o a inusitados esforços. Atendendo ao facto de que as músicas dos álbuns citados rondam, em média, os sete minutos de duração, pode ser intrigante essa necessidade (para muitos, sete minutos a escutar a mesma música são uma dormente eternidade). No entanto, esta característica poderá passar completamente despercebida a quem só oiça os LP’s pois, para todos os efeitos, são dois álbuns de referência na cena electrónica minimal do novo milénio, especialmente, e aqui enfatizo-o, o Alcachofa (2003).

Então sobrevive a dúvida: se são bons álbuns, porquê desfavorecê-los em favor de outras produções? A resposta tem uma palavra: Achso. Em cerca de 50 minutos, 4 faixas apenas vivem num habitat natural suficientemente amplo (diga-se temporalmente) para que o reputado músico lhes possa dar formas e contornos épicos. Todas elas vão crescendo em espiral, acumulando ritmos, ecos, vibrações e melodias suaves, alcançando, em períodos circunscritos, altos níveis de complexidade aos quais os nossos ouvidos devem responder com redobrada atenção. “Sieso” é uma viagem sobre carris por entre uma melodia ancestral e irregular, até que, findo o percurso, se pode começar a bater o pé e a mover o corpo, esperando o regresso ao princípio lá para o 9º minuto. A maneira cerebral como os compassos se vão sucedendo torna “Sieso” um must-have de Villalobos (do melhor que já fez). “Erso” tem uma guitarra soluçante a abrir as hostilidades, deixando espaço para a mestria familiar de Villalobos no uso de múltiplos ritmos, secos ou orgânicos. “Duso” é um desfile de silvos e vozes cortadas, acompanhado de uma bateria de graves que irá ser substituída, já próximo do fim, por um acordo sonoro de sons submersos. “Ichso” representa, mesmo com tão fortes rivais, o onirismo dos padrões, enquanto apoia uma frágil e modular melodia. A diversidade de padrões é de tal ordem que são necessárias algumas audições até que se esteja em condições de disfrutar de “Ichso”.

Em suma, e após atordoamento auditivo, Achso é a longa duração realmente suficiente para a insaciabilidade de Villalobos. Só é pena que este duplo vinil chegue, em princípio, com tanta dificuldade aos lares e, previsivelmente, aos clubes e discotecas, que em Portugal tendem a fugir do complexo como o diabo foge da cruz.

Nota: 8/10

domingo, março 19, 2006

A minha referência #3 - Herman José


Continuando a oportuna rúbrica criada por Ensaio, aproveito este espaço para prestar a minha homenagem àquele que, justamente, é tido como o maior humorista português. Para, à priori, expôr a influência do luso-alemão na cultura portuguesa, escrevo este post ao mesmo tempo que decorre o seu programa, hoje em jeito de festa de aniversário. Nele, em sua homenagem, desfilam algumas das maiores personalidades (não confundir com o conceito de personalidade que se usa em certos pasquins. Aqui, é usado como "pessoa que se destaca") do meio português, como Rui Veloso, José Hermano Saraiva ou Carlos do Carmo, perante uma plateia de notáveis nomes da cultura nacional.
Tudo começa em 1975 quando, ao lado de Nicolau Breyner, protagoniza "O Sr. Feliz e o Sr. Contente". Segue-se "O Tal Canal", "Hermanias", "Humor de Perdição" e "Parabéns". De programa em programa, desfila novidades no humor em Portugal, em laivos de originalidade que não se viam desde Raul Solnado. Até que chega o ano de 1997.
Em 1997, cria aquele que será o melhor programa de sempre em termos de humor televisivo. Precursor de programas como "Gato Fedorento", "Herman Enciclopédia" é uma sequência de sketches televisivos onde vai misturando humor corrosivo, por vezes non-sense, numa mistura de sucesso entre a realidade portuguesa e um humor que vai buscar o que de melhor podemos reunir: Britcom e Monty Python.
Cria uma equipa de criação de textos e de actores que o acompanham, introduz o Talk-Show em Portugal e é ainda pioneiro no Stand-Up Comedy. Cria diversas personagens que se mitificam e anedotificam no panorama quotidiano português, pelo meio inventa dezenas de músicas sonantes que se tornam património comum, como por exemplo "Vamos lá cambada". Da época de revolucionário do humor à da manutenção do seu microcosmos, vai um pulo. Contudo, mais desventura menos aventura, fica aqui a homenagem ao, até ver, maior humorista português.
Herman José pode ser visto na SIC, na RTP Memória e no Café Café.

quinta-feira, março 16, 2006

Cruisin' Alaska


Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band presents...

Que música fariam, hoje, os Beatles? Cruisin' Alaska, álbum do português The Weatherman, é a resposta. Álbum assumidamente Pop, Cruisin’ Alaska vem vincar uma diferença e um conceito no panorama musical português e internacional. Música Pop não é uma atitude, é um som, não necessita de ritmos frenéticos, não necessita de banalidades, não tem de recorrer à electrónica para viver numa animação permanente.
A verdade é que The Weatherman também usa a electrónica e, aqui e ali, deixa-se rasteirar por uma guitarrada muito Pop-Rock, mas consegue, acima de tudo, um dos melhores, e mais puros, álbuns Pop dos últimos tempos. Começando por "About Harmony", faixa que abre o cd, cedo se percebe que são os Beatles quem manda neste reinado. E continua-se, com "Looking for guarantees", música de um universo muito LSD. Mas também cedo se percebe que há algo mais que paira no ar.
Por altura de "Keep up the good vibes", tudo se torna claro. Os Beach Boys também foram convidados para a festa. É assim que, no seu cruzeiro, Weatherman consegue realizar a epopeica proeza de juntar os dois ícones major da cena Pop dos anos 60 num condensado pautado pelo que a tecnologia pôde desenvolver nos anos que faltam pelo meio até aos nossos dias.
O "metereólogo" de serviço é Alexandre Monteiro, gaiense de 26 anos, que consegue neste cd, mais que criar a sua obra-prima, dizer "Alto e pára o baile, que eu estou aqui!". Cruisin' Alaska é um grande cd, com grandes músicas ("If you only have one wish", "I sustain", "Keep up the good vibes" ou "One of us is the Observer"), um single bem radiofónico ("People get lazy") e, muito certamente, um dos melhores, senão mesmo o melhor, álbum Pop português de 2006. Mas fica, acima disto, a certeza de termos uma promessa.

Título: Cruisin' Alaska
Autor: The Weatherman

Nota: 8/10

terça-feira, março 14, 2006

A Minha Referência #2 - Pedro Górgia


Infelizmente a minha disponibilidade para abraçar a arte, nas últimas semanas, como já devem ter reparado tem sido muito pouca. No entanto, o desejo eterno de descobrir e mostrar o que os outros fazem distintamente, puxa-me para a frente do computador.
Como a rádio e o livro, a televisão surge como um meio de fácil proliferação de arte. Ou por divulgação ou, mesmo, por actuação. Apesar de, na televisão a cara contar excessivamente para o sucesso, existem ainda bons exemplos de representação nas telenovelas portuguesas. Porque o teatro não permite a (quase) ninguém uma estabilidade financeira. Porque há actores que não ambicionam a televisão como objectivo de carreira.
Pedro Górgia é mais uma das minhas referências nesta definição de actor profissional que eu aplaudo. Se calhar não é muito prestigiante ter participado numa telenovela de fraca qualidade como os "Jardins Proibidos", mesmo sendo um pastor com um agradável desempenho. Mas, actualmente, em "Mundo Meu", alguém teve a genialidade de lhe dar o papel de Miguel Ângelo, alguém teve a genialidade de o por a contracenar com a Manuela Maria. Numa altura em que certos críticos (exageradamente ou não) louvam o trabalho de Maria João Bastos na mesma telenovela, não lhes ficava nada mal demonstrarem enquanto crítica que estão atentos aos bons valores da representação nacional. Os bons valores como o Pedro Górgia, que tem um curriculum que começou há 15 anos. Um curriculum que abrange vários cursos de formação, representação em teatro infantil (um bom hábito que ainda mantém e lhe dá muita "bagagem”), filmes e para além das já referidas telenovelas, boas séries televisivas.
A personagem Miguel Ângelo expõe Pedro Górgia ao grande público como um surpreendente actor de comédia. Surpreendente, porque o humor não nasce da força do texto. Surpreendente, porque o humor não é perceptível numa cena isolada. Surpreendente, porque Miguel Ângelo é uma personagem altamente improvável na realidade mas que se torna credível pela a coerência de toda a figura criada. Figura criada que não é só mérito de quem a escreveu. Na sua grande maioria é mesmo de Pedro Górgia, actor que “entra no inconsciente da sua personagem e no consciente e no subconsciente, de tal forma que consegue ser a própria personagem, mesmo que para isso tenha de dar um pouco de si à personagem e tenha de a moldar a si.” Apesar de eu saber que Hitchikker não é fan de Pedro Górgia (ainda bem que não gostamos todos do mesmo) este é um actor que personaliza a perfeita definição que deveria ser lida por todos os que têm aspiração a tal.
Para os fans (como eu), Pedro Górgia regressará aos palcos portugueses no próximo dia 22, com a peça: Como Tornar-se um Fora da Lei de Sucesso, da sua autoria.
E, depois de Prateleira, surge uma segunda rubrica no Espaço de Crítica Artística: A Minha Referência

domingo, março 12, 2006

Clube dumas, A Sombra de Richelieu ou A Nona Porta

É possível um livro ser responsável por mortes, ser perseguido e desejado durante 3 séculos? Só há uma pessoa capaz de responder a essa pergunta, Lucas Corso, mercenário da bibliografia, caçador de livros por conta de outrem.
Corso é nos apresentado quando uma dupla de clientes seus recorre aos seus serviços: autentificar um manuscrito de Os Três Mosqueteiros e decifrar um estranho e misterioso livro queimado em 1667 juntamente com o seu impressor. A investigação arrasta Corso – e com ele, inevitavelmente o leitor – para uma perigosa busca que o levará dos arquivos do Santo Oficio aos livros condenados, das poeirentas prateleiras dos alfarrabistas às mais selectas bibliotecas internacionais.

Um livro que não permite separações de longo prazo, consegue ser misterioso, policial, asfixiante e erótico apenas e tão depressa como um virar de página. Arturo Pérez-Reverte surpreende-nos pela descrição das acções, pelo rigor de personagens, tornando o leitor capaz de visualiza-las ao pormenor.


Arturo Perez-reverte nasceu em Cartagena, em 1951. Pertence simultaneamente ao mundo do jornalismo e ao da literatura e no exercício da sua actividade como repórter de imprensa, rádio e televisão viveu a maior parte dos conflitos internacionais das últimas décadas.
Viu corada a sua carreira com o romance A tábua de Flandres (1990), traduzido e editado em vários países, e adaptado ao cinema por Jim Mcbridge.
O autor em qustão vai estar em entrvista, segunda-feira dia 20, na Fanc Chiado.


O Clube dumas inspirou Roman Polanski no filme, a nona porta com Johnny Depp. Embora com algumas divergências, são visíveis as semelhanças entre as duas obras: Lucas Corso passa Dean Corso; em vez de um entrelace de dois livros (O Vinho de Anjou e As nove Portas no Clube Dumas, enquanto no filme, o primeiro é reservado ao desprezo) entre outras.



É inevitável a comparação. E quem sai a perder é certamente Roman Polanski, O cruzar de dois livros tão distantes só por si é suficiente para a vantagem de Pérez-Reverte, e a decisão de Polanski em “cortar” algumas acções chave do livro, implicam uma sensação de perda para quem está por dentro das duas obras. Compreendo que tudo isto é normal na adaptação de um livro para o grande ecrã, mas não podia deixar de referir. Ainda no tema de comparação, devo dizer que a escolha de Polanski de alterar a figura do diabo funcionou pois tornou-se “numa diaba” muito mais atraente. E com ela, a cena de sexo (incrivelmente descrita no livro) que finaliza o filme, torna-se capaz de deixar os espectadores agitados na cadeira.

Como nota de conclusão fica uma critica, dirigida à editora Dom Quixote pela presença de alguns erros ortográficos na obra, algo que não pode passar em branco pelos revisores de umas das maiores e mais prestigiadas editoras de Portugal.

Clube Dumas
Titulo: Clube Dumas ou A sombra de Richelieu
Tradução: Maria do Carmo Abreu
1ª edição: Abril de 1995
Autor: Arturo Pérez-reverte

A Nona Porta
Roman Polanski’s “The ninth gate” com Johnny Depp, Lena Olin, Frank Langella, James Russo, Jack Taylor e Emmanuelle Seigner nos principais papéis. 1999

sábado, março 11, 2006

Prateleira #3 - Coisas que fascinam


Considerado por muitos o melhor cd Pop português de sempre, Coisas que fascinam, primeiro LP dos Mler ife Dada, é, indicutivelmente, um dos melhores cds da década de 80 portuguesa, e uma obra de relevo que recordamos aqui na rúbrica Prateleira. Inicialmente constituída por Nuno Rebelo, Augusto França, Pedro D'Orey e Kim, os Mler ife Dada formaram-se em 1984 na zona da linha de cascais e é com esta formação que lançam o primeiro single Zimpó. Contudo, seria com a substituição de Pedro D'Orey pela emblemática Anabela Duarte como vocalista, que a banda alcançaria maior projecção.
Anabela Duarte tinha já participado noutras bandas no panorama experimental e tinha inclusivé participado num dueto com Rui Reininho num cd dos GNR, e viria a ser a imagem (e a voz) de marca da banda, a par de Nuno Rebelo. Com uma voz agressiva, num tom que tanto encaixava bem nas baladas mais lentas que atiravam para o fado, como encantava com a força com que empolgava em temas mais Pop. A faceta fadista de Anabela Duarte viria, aliás, a comprovar-se com o disco Lisbunah, que editaria em 1988, um disco onde se afirma como uma excelente intérprete de fado.
E assim, em 1987, altura em que a Pop non-sense e descomprometida proliferava em Portugal (relembrar António Variações e Pop Dell'Arte) e competia com o crescimento do Rock de bandas como os Xutos & Pontapés pela atenção do público português, surge Coisas que fascinam. Um álbum paradigmático do confluir de influências que caracterizava a música Portuguesa, este cd apresenta a peculiar característica de apresentar quer uma forte panóplia de estilos conjugados, quer de vir a influenciar sobremaneira a vertente Pop portuguesa.
Ao ouvir Coisas que fascinam a eito, suge a ideia que o cd não possui uma toada única, um som unificante, tantas são os estilos que as faixas percorrem, mas, ao contrário de outros trabalhos que pecam por isso, essa é um dos grandes trunfos da banda. O apresentar de realidades diferentes que confluíram nos seus ouvidos, e que só a irreverência pode juntar tão harmonicamente. Com um cunho muito forte do experimentalismo (que aliás viria a marcar o trabalho, em termos de projecção e aceitação), ao longo de Coisas que fascinam, é-nos dado a conhecer um entrosamento deste com o Fado, a influência africana (Cabo Verde, especialmente) sobre a música portuguesa, uma ou outra pitada de Jazz, uns ares marroquinos de influência àrabe e muita Pop portuguesa, essencialmente lisboeta, que por vezes, sub-repticiamente, pisca os olhos ao Pop-Rock.
Em termos de alinhamento, os Mler ife Dada começam o seu trabalho com aquele que viria a ser o principal single, "Zuvi Zeva Novi!". Paradigma do experimentalismo de sons e vozes, apresenta-se como um bom cartão de visita, uma música bem conseguida e animada, com o pequeno senão de não demonstrar o potencial de todo álbum. Prosseguia-se o álbum com "Passerelle", mistura híbrida de experimentalismo com Pop-Rock, acentado em fundo Jazz e letra em inglês. "À sombra deta pirâmide" mistura com mestreza o clima árabe que restou em Portugal com o ritmo cabo-verdiano das coladeras, onde por vezes se sente ouvir um pouco de Zeca Afonso transfigurado em Manu Chao. Em "Valete (de copas)", a quinta faixa, surgia a primeira piscadela ao fado, com a voz de Anabela Duarte e o clima muito ambientalista a travar os ânimos experimentalistas com que vinhamos.
Seguimos o fascínio com um dueto entre Rui Reininho e Anabela Duarte em "Siô Djuzé", tema curto e totalmente cabo-verdiano, desconstruído por linhas de um som Pop muito ténue. Quase a chegar ao fim, por entre todo este caminho exaustivo de descortinar influências, ao décimo segundo tema, ouve-se o primordial canto fadista de Anabela Duarte, agora sem subterfúgios experimentalistas ou Pop, numa base clássica que chega a soar a leve e fresca remistura. Mas sempre com o cunho melancólico do fado lisboeta. É "Alfama". É Alfama. Para terminar a refeição o chef serve uma sobremesa de cuisine francesa, "Ça me fascine", prova da influência francesa na banda, se para tal não chegasse o trabalho anterior a Coisas que fascinam, o single "L'amour Va Bien, Merci" (que tinha como lado B "Ele, ela.. e eu", uma versão do tema de Madalena Iglésias.)
Depois de Coisas que fascinam, os Mler ide Dada prosseguiram a carreira, com algumas mudanças de elementos pelo meio e chegaram mesmo a ter mais um àlbum aclamado pela crítica, Espírito Invisível, mas nunca voltariam ao brilhantismo deste trabalho. Para atestar da importância do disco em causa, aqui fica a capa do Jornal de Letras que, há pouco tempo, pelos seus vinte cinco anos, lançou uma votação. De um júri onde constavam Adolfo Luxúria Canibal, Nuno Galopim, Jorge Mourinha, Gonçalo Frota ou Mário Lopes, saiu como melhor disco Pop português dos últimos 25 anos, Coisas que facinam, dos Mler ife dada.
Título: Coisas que fascinam
Autor: Mler ife Dada

Nota: 9/10

quarta-feira, março 08, 2006

Cru


«Chamou “Cru” ao seu mais recente disco por causa da forma, dos arranjos, ou foi mais pelo conceito geral?

Pelo conceito geral, que era fazer uma música brasileira que o francês gostasse. Os franceses são um dos poucos povos do mundo que aprecia muito a cultura brasileira, sobretudo a música. Só que a música que chega à Europa é cheia de símbolos: a camisa do Ronaldinho, a bandeira do Brasil, a mulata, o pandeiro... Eu quis um registo que não fosse técnico, de estúdio, mas sim de emoção, gravar a minha maneira de cantar na hora, a minha pessoa. No estúdio, a música pode ser perfeita mas fica mais fria do que quente. Há a tendência de “congelar” a interpretação. Uma vez gravado, fica para sempre. É claro que todo o artista é de certa forma, técnico, mas quando se escolhe um registo de emoção a técnica não ajuda muito. “Cru” é mais emoção e menos técnica.»

Y, 1 de Julho 2005

Aquele sobre quem recai a estulta responsabilidade de ser o próximo mito do panorama musical brasileiro, faz de conta que não nota a excitação europeia e grava a confirmação da sua bipolaridade artística: é um actor-músico.

Converteu-se num fenómeno moderno a existência avulsa deste tipo de artistas, ainda que muitos tenham reconsiderado em face das violentas críticas às suas supostas novas valias. Aqui a memória desempenha função-chave: quando se desenvolve admiração pelo trabalho de um artista numa área, ao longo dos anos, torna-se difícil (para um fã não amblíope) não esmiuçar friamente a nova performance. Talvez sobreavisado, talvez sortudo, Seu Jorge é verdadeiramente um actor-cantor-músico. Importa explicar porquê:

Educado sob os rigores da insustentabilidade social brasileira e pela boa vontade dos seus pais, Seu Jorge atravessou atribulado crescimento. Ao longo da sua adolescência desempenhou vários ofícios e, após tragédia aparentemente comum por lá (morte de um irmão e consequente desmembramento familiar), vagabundeou, viveu sem tecto e roçou o vínculo definitivo e fatal a vícios destrutivos. É então que se opera o milagre – resgatado por Paulo Moura, clarinetista brasileiro – que nos permite ouvir música dele. A partir de 1996, o seu nome vai crescendo dentro do meio musical canarinho, sustentadamente, impulsionado por algumas colaborações. Quando dá por si, edita Samba Esporte Fino, em 2001, viagem à sujidão visceral do samba e do funk negros, embora já com certo grau de sofisticação aprazível ao gosto ocidental. No entanto, ainda antes de conquistar o Velho Continente (sempre sedento de novidades), revelou-se como Mané Galinha no filme “A Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles. Em 2004, dá admirável concerto na MTV, posteriormente colocado nos escaparates discográficos; participa na película “Um Peixe Fora de Água”, de Wes Anderson, para quem faz eclécticos covers de músicas de Bowie; e, como se não bastasse, faz a tal produção para «francês ouvir»: Cru.

Ora o que impressiona mais, em contraposição ao álbum Samba Esporte Fino, é a simplicidade roufenha que dirige a gravação. Há toda uma exibição propositada de ligeiríssimas rugosidades que, como decerto pretendia, acrescenta uma humanidade palpável, não verdadeiramente real, mas teatral. Isto porque, e não tem pejo em afirmar, ele não é músico. Digo segunda vez: é actor-músico. Aliás, e como o próprio afiança, nota-se a nova abordagem minimalista, no sentido que minimiza o excesso de produção do disco de 2001.

Quanto ao samba, rock e funk, reduzem-se. A bossa nova, as baladas e o forró ganham espaço. Nas 10 faixas de Cru tudo se enquadra mais harmoniosamente, havendo espaço para diversas susceptibilidades psicológicas. Sendo uma colecção de músicas maioritariamente não originais, impressiona a fluidez com que o álbum se dá a conhecer: há Elvis Presley (“Don’t”) a assistir à cuíca a fazer as vezes da guitarra eléctrica, há Serge Gainsbourg (“Chatterton”) em manifesto suicidário da neurastenia filosófica, há Robertinho Brant (“Fiore de La Citta” e “Una Mujer”) a permitir novas versões de bossa requintada, há Carlos Dafé (“Bem Querer”) em viagem ao Brasil dos 70’s, Ataulfo Alves (“Mania de Peitão”) a revirar-se com a recuperação do êxito de 1941 “Ai Que Saudades de Amélia” e Duani (“Bola de Meia”) numa canção quase falada por Seu Jorge, capaz de tocar qualquer casal na vertigem da separação. E, para o que resta, há sempre Seu Jorge, a abrir com desabafo descomplexado (“Tive Razão”), a prosseguir com lamento passional (“São Gonça”) e a fechar com retrato sincero e assumido da sua anterior condição de vida (“Eu Sou Favela”).

Com mais ou menos emoção, mais ou menos técnica, Cru impressiona enquanto caldeirão musical. Era esse o passo que lhe faltava dar cá no burgo: mostrar que sabe dançar, cantarolar, rir, enlouquecer, protestar e, se for necessário, se suicidar.
Nota: 8/10

segunda-feira, março 06, 2006

Crimes Exemplares

O que esperar de um livro que não tem uma história, onde não há uma narrativa, onde não há um único fio condutor? Num desenrolar clássico de um policial, temos um crime e um motivo que se vão construir, ou desconstruir, até ao resultado final. Em Crimes Exemplares, não há um resultado final, há um conjunto de motivos e crimes e razões que Max Aub coleccionou.
Apesar disso, Crimes Exemplares revela-se um livro fascinante. Não num sentido clássico, com um enredo que nos prenda, mas no encontrar e descobrir de tantas pessoas diferentes. Diria-se que Max Aub, mais que escrever um livro, dá a escrever dezenas deles, num desfile de motivos de crimes que vagueiam entre o inacreditável e o quotidiano.
Crimes exemplares será, acima de tudo, um daqueles livros que se tem na prateleira e ao qual se recorre. Para além disso, um extraordinário livro para os amantes da compreensão da mente humana e dos limites da pessoa.
Título: Crimes Exemplares
Autor: Max Aub
Nota: 6/10