segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Match Point


Porquê falar de Match Point agora? Porquê falar quando já tudo foi dito e redito e toda a gente já leu o que se deve ler sobre o último trabalho de Wody Allen? Exactamente por isso. Porque já houve tempo para ler, ver e digerir, para toda a gente ter uma opinião sobre o assunto. Fãs ou não de Woody Allen, e levados ou não pelo que nos fizeram crer ser um reterno fulgurante do brilhante cineasta.
De facto, de Match Point, já tudo foi dito. Revamos pois as trivialidades óbvias da coisa para se passar à frente. É agora que se fala da dualidade significativa Londres/Nova Iorque e Jazz/Ópera, características peculiares que muitos julgam ser a razão do sucesso do filme, enquanto outros tantos julgam demonstrar uma inequívoca predisposoção de Allen para não mais aturar os seus enfadonhos compatriotas, ele que sempre foi tão melhor recebido e compreendido na velha Europa.
Aqui também, concerteza já deve ter lido, falar-se-ia de Rhys Meyers e de Scarlett. Rhys Meyers enquanto personagem em que, qual tábua de salvação, Allen finalmente se desprende de si próprio enquanto personagem principal, quer o fosse fisicamente ou alguém que fizesse de si próprio. Em relação a Scarlett Johansson, pela beleza enquanto fuga aos padrões convencionais, pela sensualidade, pelo charme. E, depois, pelo carisma da dupla. Até aqui, tudo muito bonito.
O grande trunfo de Match Point é, uma vez mais, o argumento. E perdoem-me o não espanto, mas essa característica já foi amplamente celebrada e oscarizada em Woody Allen. Sendo um actor acima de tudo inconfundível, é também um actor muito preso aos seus artefactos e manhas que transpõe de personagem para personagem. Característica que, embora estime e pessoalmente aprecie, não o torna num grande actor. Aquilo que realmente o distingue são, invariavelmente, os guiões. E a forma como encaixa no seu humor muito próprio uma componente reflexiva perspicaz e incisiva. Nada de novo.
O que torna este filme diferente é a falta de humor. A vida, de repente tornou-se séria. Aliás, com as personagens que Allen nos apresenta, outra coisa não seria de esperar. Chris Wilton (Rhys Meyers) subiu a pulso na vida. E não sendo completamente imoral, como o comprova o affair que originará o desenlace, tem consciência da posição que ganhou. E de como tudo isso é inegavelmente uma sorte. Sorte é, aliás, um tema recorrente neste filme. Enquanto noutros policiais e afins, a sorte é uma saída fácil para explicar o porquê ou o quem, em Match Point a sorte não é um fait-divers, um escape quando não se consegue desenlear o novelo da história. A sorte é a história.
De um calculismo que nos remete para O Retrato de Dorian Gray, a personagem de Rhys Meyers é conceptualmente perfeita e é da existência pulsátil mas altamente pensada (será que isto é paradoxal?) que nasce toda a força da intriga. Não será (não é) por acaso que Allen coloca Chris a ler Crime e Castigo, de Dostoievsky. Esta será, talvez, a única pitada de humor a que Allen não conseguiu fugir. Pelo meio, dois pormenores deliciosos. O fim cruel, mas por isso mesmo, real; e a forma como tudo se resume no prólogo. Mesmo a nível de resolução da história.
Não é, de facto, uma reviravolta qualitativa, como muitos querem fazer crer. É Woody Allen. Tudo isto já lá estava. Foi uma questão de sorte.
Título: Match Point
Realizador: Woody Allen
Elenco: Jonathan Rhys-Meyers, Scarlett Johansson, Emily Mortimer, Matthew Goode, Brian Cox, Penelope Wilton
Inglaterra, 2005
Nota: 7/10

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Woody Allen

Numa altura em que o seu nome aparece tão badalado pelo renovador Match Point, e em que, um dos principais elogios a essa obra é a capacidade de fugir ao que dele se esperava, convém relembrar o muito que essa parte agora aparentemente malograda de Allen nos deu. Sem minorar o efeito "retocador maybelline" que esta mudança Nova Iorque/Londres, Jazz/Ópera surtiu na sua obra, para contrapôr esta euforia, relembra-se aqui um disco de 2001, onde Woody Allen compila algumas das músicas que utilizou em variados filmes.
Sinteticamente, este cd tem dois atractivos major. Por um lado, junta as duas facetas mais conhecidas de Allen - o músico e o cineasta -, permitindo conhecer algum do seu gosto no que toca àquele que é, manifestamente, o seu género musical favorito. Por outro, para os fãs incondicionais de Allen - nos quais timidamente me inclúo - permite recordar alguns dos muitos filmes com que o nova-iorquino nos prendou.
Com um carácter mais divulgativo/rememorizante que crítico, convém, quase como Post-Scriptum a este post, acrescentar que em Woody Allen's Movie Music, podemos correr filmes como Manhattan, A era da Rádio ou Hannah e as suas irmãs, enquanto ouvimos músicas como "The flight of the bumblebee", "In the mood" ou "Take the 'A' train". Para ouvir no repeat.
Título: Woody Allen's Movie Music
Autor: Vários, compilação de Woody Allen.

Nota: 7/10

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Freakonomics


"Se Indiana Jones fosse um economista, seria Steven Levitt" - Wall Street Journal

Como podem verificar, este livro tem provocado comentários no mínimo curiosos. Talvez esta citação não seja a melhor forma de vos apresentar o livro. Neste momento, vocês devem estar a pensar que se trata de um livro na linha daquelas obras imprescindíveis de bolso como "Aprender Economia em 10 minutos" ou o "O abc da economia". Descansem, meus amigos, pois este Best Seller mundial, apesar de não exigir grandes conhecimentos de economia por parte do leitor, fornece-nos um conjunto de respostas incrivelmente interessantes. É então um livro que não trata da inflação nem das taxas de juro, e muito menos de modelos de desenvolvimento económico. Trata de questões sócio-económicas com que nos deparamos no dia-a-dia. Steven Levitt não é politicamente correcto, mas no mundo da superficialidade em que vivemos, talvez isso seja uma virtude. É daquelas obras em que a inteligência do autor estimula e enriquece a do leitor. Nestas 260 páginas, posso-vos garantir que se entende tudo o que este professor de Economia da Universidade de Chicago nos pretende transmitir. É abordado o interesse das agentes imobiliários na venda dos seus apartamentos ou mesmo a rentabilidade de um gang de tráfico de crack. O autor, Steven Levitt, tem 37 anos, e ganhou o prémio concedido a cada dois anos ao melhor economista americano abaixo dos 40. Adquiriu notoriedade internacional em 2001 como co-autor de um estudo que atribui à queda da criminalidade americana no anos 90 a legalização do aborto nos anos 70: Portanto, abortaram os criminosos ( crianças indesejadas que iriam enveredar pelos caminhos da criminalidade). Esta perspectiva, que também é tratada neste livro, envolveu uma enorme polémica por considerarem este argumento perfeitamente descabido(criminologistas e o próprio público em geral), preferindo acreditar nas estratégias inovadoras da polícia como causa do abaixamento criminal verificado. A palavra Freak compreende inúmeros significados. Designa um grande interesse ou dedicação. Uma pessoa pode gostar tanto de economia a ponto de se tornar Freakonomics.
É possível identificar professores que falsificam as notas dos seus alunos para valorizar os testes das escolas? É, e Levitt mostra como.
Por que é que os traficantes de droga moram com as suas mães?
Deixo-vos aqui uma amostra da simplicidade e do prazer que Freakonomics oferece:
O director de uma creche resolveu inibir os pais retardatários cobrando uma multa de 3 doláres cada vez que eles viessem buscar essas crianças depois da hora( a mensalidade do lugar era de 360 doláres). Errado. O número de retardatários aumentou. Os pais compravam agora a culpa de chegar atrasados. A multa foi suspensa. Voltou tudo ao normal? Não. Depois de terem comprado a culpa, os pais livraram-se dela.
Este livro mostra como a economia resolve mistérios em todos os campos da vida. Levitt tornou-se uma figura única na sua especialidade: um economista pop. O segredo do seu sucesso está no modo provocador como ele levanta as mais inusitadas perguntas sobre a vida quotidiana e na maneira como sustenta as respostas: pensamento simples, mas sempre amparado em dados estatísticos. Levitt convida o leitor a desafiar as explicações que o senso comum consagrou ( tentando instaurar um pensamento unconventional wisdow). O que é mais perigoso para uma criança? uma arma de fogo ou uma piscina em casa?
A maneira como o autor exercita a sua inquietude intelectual é um refresco diante de tantas obscuridades cultivadas pelos intelectuais. O seu trabalho lembra igualmente de como a economia nas últimas décadas tem ampliado o seu campo de acção: "Estamos a falar de uma ciência cujas ferramentas lógicas e estatísticas podem ser empregues em quase todos os aspectos da vida moderna." - Levitt
Não esquecer ainda a colaboração de Dubner (jornalista do New York Times), porque se o conteúdo se deve exclusivamente a Levitt, já a forma ficou a cargo deste jornalista. A junção destas duas competências torna o livro ao mesmo tempo profundo e agradável de ler, o que é raro em livros do género.
Quais então os atributos que fazem do Freakonomics esse fenómeno de vendas, tratando de um assunto considerado hermético pela esmagadora maioria das pessoas ( já é número 1 em portugal).
1. Abordar temas não abordados pelos economistas, estabelecendo relações dificilmente imaginadas entre assuntos diferentes e procurando explicações também incomuns para identificar a causa de uma série de problemas.
2. Fazer as perguntas certas sobre algo que se pretende descobrir, mas que sejam completamente fora dos padrões e capazes de virar do avesso a sabedoria convencional, expressão cunhada pelo consagrado John Kenneth Galbraith, talvez o mais conhecido economista vivo.
3. Partir de uma visão do mundo extremamente realista, baseada nas seguintes ideias fundamentais:
a) Os incentivos influenciam decisivamente as decisões das pessoas;
b) Senso comum em geral está equivocado;
c) Os especialistas de qualquer matéria usam informação priveligiada em benefício próprio;
É com a combinação de todos estes elementos- alguns dos quais já enfatizados por génios do passado, como Adam Smith - que Levitt e Dubner chegam a conclusões surpreendentes, e não raras vezes, relacionáveis a respeito de temas aparentemente tão distantes como a redução da criminalidade e a legalização do aborto.
Em suma, uma pessoa pode ficar surpreendida após uma leitura a este livro, pois provavelmente jamais teríamos imaginado, sequer, a possibilidade de relacionar coisas tão distintas.

Sobre o Teatro


Como tudo no tempo em que vivemos, sobre o teatro há ideias, facções, partes contraditórias e todo o tipo de preconceitos. Há maneirismos, repetições, correntes, várias concepções e feitios. Há os bons actores, os bons encenadores, os bons coreógrafos, todos eles cada vez menos; e há os outros, os críticos, os actores, os novos artistas, os eternos buscadores da mera glória. Mas o que é, afinal, representar, vai bem para além de toda uma gentalha que procura sucesso imediato, próprio desta sociedade de consumo, assim mesmo, imediato, onde estrelas de ocasião se sucedem sem a percepção que são marionetas manietadas nas mãos de quem o teatro social enceta.
Que representar, no fundo, não é a busca do fácil, mas o complexo do óbvio. Que representar não é mais do que a busca dos porquês. Face a uma personagem, o actor, quando ainda fora dela, não tem mais a fazer se não entrar numa espiral de sentido único, onde se inteira da personagem e onde se deixa a personagem inteirar dele. O teatro, a representação de uma personagem, a encenação de um texto é a contextualização do mesmo, tem como único propósito fazer cada fala ter sentido. E não ir a uma ementa de preconceitos teatrais e buscar o maneirismo que melhor se adeqúe. Pois a quem faz de bêbado não basta cambalear, a quem faz de cego não basta tropeçar. È fácil a tentação do óbvio.
Ao actor, perante determinada peça, cabe-lhe lê-la, vezes e vezes e vezes, e para além disso, ler para lá do que está escrito, entrar no inconsciente da sua personagem e no consciente e no subconsciente, de tal forma que consiga ser a própria personagem, mesmo que para isso tenha de dar um pouco de si à personagem e tenha de a moldar a si. Cabe-lhe ser a personagem de tal forma, que tudo o que diz em palco, quer o que esteja escrito quer o que improvise, faça cabal sentido, seja natural. A busca da naturalidade em palco, que legitimamente existe, só é atingível, pela interiorização da personagem. Assim, o actor deseja que algo corra mal na peça, que algo fuja ao mero texto, para que possa provar que a sua personagem existe, que é real e vai para além do texto, que não é mais que uma parte da sua história.
E talvez queiramos esquecer tudo isto quando entrarmos em muitas salas nacionais, pois que o mero abanar do corpo, o debitar de um texto como se de um exame oral se tratasse e a movimentação programada e mecanizada parecem ser suficientes para cativar um público que se deixa enganar por nomes e publicidades. Resta-nos a sorte de encontrar pequenas peças, pequenos nomes, pequenas salas que buscam a essência e uma meia dúzia contável de nomes sonantes, que para além do seu quinhão, continuam a lutar pela verdade teatral.

domingo, fevereiro 19, 2006

Based on real events

O “eterno nomeado aos Óscares ” marca aqui o seu regresso. E ao contrário do seu último sucesso de bilheteira, “A Guerra dos Mundos”, protagonizado por Tom Cruise, Munich não se trata de ficção científica, Spielberg, não precisou de inventar alienígenas que por qualquer razão acharam que a terra seria um bom planeta para se viver (?). Trata-se de um tema bastante em voga, o terrorismo. Impossível ficar indiferente pois para além do tema em si, é baseado em factos reais. Munich mostra a tentativa de retaliação de Israel contra os palestinianos supostamente envolvidos no massacre de onze atletas israelitas, nos jogos olímpicos de Munique em 1972. Spielber mostra assim que não tem medo da polémica que prometia de inicio, e que acabou por acontecer por parte do povo judeu. Polémica que não impediu este filme de se tornar um dos favoritos aos Óscares com cinco nomeações.
É realmente um filme brilhante, bem ao estilo de Spielberg, capaz de colar os espectadores à cadeira de cada vez que ocorre um assassinato. Na minha opinião, marca também o regresso ao grande ecrã de Geoffrey Rush, aqui como actor secundário, outrora como protagonista do brilhante “Shine” de Scott Hicks, onde vence o óscar de melhor actor.

Steven Spielberg’s “MUNICH” com Eric bana, Daniel Craig, Ciaran Hinds, Mathieu Kassovitz, Hanns Zischler e Geoffrey Rush nos principais papéis.
Lusomundo, 2005

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Magazine Artes


Porque a capacidade de criticar apenas pode advir do conhecimento de causa e porque divulgar Arte é tarefa difícil e muitas vezes inglória, aproveita-se assim este espaço para destacar quem o faz e, especialmente, quem o faz bem. Numa altura marcada pelo aumento da importância do uso de ferramentas como a Internet e de formatos como, mea culpa, os blogs, é bom ver, como aliás já tinhamos mencionado aquando do post sobre a revista 365, que o formato da Revista não está gasto.
A qualidade da revista Magazine Artes reside em dois elementos muito simples. Por um lado, na quantidade de assuntos e temas e géneros de referência que aborda e, por outro, na imparcialidade. Ao contrário de outras publicações, onde se refere sem pudor o Blitz, a revista em causa consegue criticar (verbo transitivo, fazer a apreciação de) sem ser tendenciosa, arrivista e, pior, soar a falso.
Numa bem conseguida mistura entre a necessidade de divulgar o que é português, e a óbvio obrigação de mostrar o que de melhor se faz lá por fora, na Magazine Artes podemos ler participações de Jorge Reis-Sá, Gonçalo M. Tavares, Jorge Silva Melo ou António Manuel Venda, enquanto desfolhamos a actualidade das Artes Plásticas, Cinema, Teatro, Música e Literatura. De grafismo oportuno e leitura acessível, apresenta-se aqui a revista mensal Magazine Artes, sobre a imagem da capa da edição de Fevereiro corrente.

Movimentos Perpétuos


O que faria juntar nomes de tão variadas correntes como o são Sam the kid, Rodrigo Leão, Gaiteiros de Lisboa, Dead Combo ou Ricardo Rocha? Carlos Paredes. Em 2003, sob a alçada e escolha de Henrique Amaro (nome ligado, como sempre, à Antena3), reuniram-se 20 músicos com o único propósito de homenagear Carlos Paredes. O resultado foi um cd duplo de 20 músicas onde se criam ambientes e sons a partir desse identidade comum.
Sem ser um cd brilhante e sem ter, como seria de esperar numa compilação, uma toada única, consegue-se, apesar de tudo, manter uma certa fidelidade ao tema original. Contudo, é bem visível (ou melhor, audível) que a grande maioria das criações procurou mostrar Paredes á sua maneira, mantendo um som muito próprio e característico, como o atesta Rodrigo Leão.
Com uma sonoridade que oscila entre o Chillout e uma certa melancolia, este álbum, cujo nome remete para um álbum do próprio Paredes - Movimento Perpétuo - , permite uma abordagem diferente ao grande mestre da guitarra portuguesa. Com um especial sabor para os fãs de Paredes pela homenagem, terá Movimentos Perpétuos o seu ponto alto em "Viva!", tributo bem conseguido de Sam the kid.
Título: Movimentos Perpétuos - Música para Carlos Paredes
Autor: Vários
Nota: 6/10

terça-feira, fevereiro 14, 2006

O Libertino


A um pouco de sexo
ou muita poesia
ainda não fico indiferente Quinteto Tati in "Valsa Quase Anti-Depressiva"
O que esperar de um filme cujo protagonista é Johnny Depp, contracenando com John Malkovich, ao som de uma banda sonora da autoria de Michael Nyman (rever, The Piano)? Na estreia como realizador de Laurence Dunmore, O Libertino é um filme sobre a Londres do final do séc. XVII e sobre John Wilmot, segundo conde de Rochester. Se está à espera de um filme vivo, de acção e emoção, de um protagonista por cuja vida se torce, desista, saia da sala ou, na melhor das hipóteses, não chegue a entrar. Como Depp avisa no prólogo do filme, não é fácil gostar dele. E, à partida, repito desta vez com um certo ênfase que o itálico me permite, à partida, nem do filme.
John Wilmot foi um escritor cuja vida, mergulhada num misto embriagante de álcool, sexo, literatura e deboche, mais do que inserir-se bem na altura, foi o culminar exponencial dessa vivência, quer enquanto vivência ela mesma, quer enquanto consequência desta. Escritor incompreendido e cuja rendição crítica apenas sucedeu, como de costume, após a sua morte, O Libertino mostra-nos o percurso errante de um homem que, tentando ser mais que isso, acabou despojado dessa mesma condição. Para imaginar a toada do filme, imagine um filme de Manoel de Oliveira. Só que em bom.
Falar de O Libertino, é falar de Johnny Depp. Assumindo-se cada vez mais como um dos melhores actores da sua geração, Depp tem aqui um dos pontos mais altos da sua carreira em termos de representação. Não sendo, de certo, o filme que a história mais guardará com o seu nome, dificilmente haverá maior exercício enquanto actor para Depp. Como muleta, a qualidade calejada de Malkovich e uma eficiente Samantha Morton. E, não a despropósito, é de facto de Teatro que se fala aqui. Para além do ambiente teatral do filme, para além de o próprio filme ser a adaptação de uma peça de teatro, para além de Wilmot ter sido dramaturgo, para além do ênfase que é dado às representações, é de Teatro que se fala neste filme.
Magistral, para qualquer amante de Teatro, toda a sequência em que Wilmot "transforma" a sua musa numa actriz, no verdadeiro significado da palavra. "Eu sou a Natureza. Tu és o artificial", ouve-se pela voz de Depp. Para muitos dos actores e encenadores de hoje verem, Wilmot encara uma visão do Teatro que, sendo-nos hoje bastante mais cara, não o era na altura. O trabalho, a naturalidade, a representação fiel. Ainda no campo do Teatro, e ainda no campo do magistral, o que dizer da representação que é feita de Sodom or The Quintessence of Debauchery, obra maior e pioneira da Literatura pornográfica britânica?
A verdade, de facto, é que O Libertino não é um filme fácil. Filme literário e literato, num falso tom morno, cria um ambiente soturno e cinzento de uma Londres debochada e sodómica, face de um reino que também o é. Wilmot é, quiçá, o Alberto Caeiro de todo este enquadramento. A pureza, o único realmente consciente da sua inconsciência, preferindo relegar o seu génio para segundo plano, face às conjunturas alcoólicas da cidade que o abriga. Apenas ao ver a possível transformação de Elizabeth Barry numa actriz que valha o epíteto de tal, Wilmot decide, sem abdicar da decadência moral e física, empregar o seu talento e génio.
Não fugindo, e bem, de um cunho que a parte literária do escritor obriga, O Libertino é um filme para ser saboreado. Saboreadas as falas, saboreada a decadência, saboreado o tom enevoado, a falta de luz, o prólogo, o epílogo, Johnny Depp, John Malkovich, saboreado o sexo, saboreado o deboche, saboreado Johnny Depp, saboreado o Teatro, saboreado o intelecto, saboreado a Literatura, saboreada a imagem, saboreada a música, saboreada a ciclização, saboreadas as palavras, saboreado Johnny Depp, saboreado álcool, saboreado a orgia mental, saboreado John Wilmot.
E se, num homem, juntarmos Deus e Sexo?

Título: O Libertino
Realizador: Laurence Dunmore
Elenco: Johnny Depp, John Malkovich, Samantha Morton, Rosamund Pike, Tom Hollander, Johnny Vegas
Grã-Bretanha, 2006

Nota: 8/10

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

See you later, alligator


Em See you later Alligator, Bill Haley & His Comets cantavam: "When I thought of what she told me / Nearly made me lose my head". Em Alligator, último trabalho dos, sem qualquer dúvidas, americanos The National, a história é outro. Aqui é ela que ficará de, perdoem-me a tradução literal, cabeça perdida perante o que ele diz. E o que ele diz, está bom de ver, já se estava mesmo a ver. A voz falante de Matt Berninger continua a falar dos mesmos temas, que sem piada se designam por brejeirice, com o toque que ele lhes confere escapa para o humor decadente. Sexo, muito sexo, mulheres e vida nocturna.
Ao quarto trabalho, os The National, apresentam-nos, sem papas na língua, mais do mesmo. Sem ser Lapaliciana, esta verdade é camuflada pela consistência, sim senhora isso ninguém lhes tira, e, honra lhes seja feita, pela qualidade. Que não sendo muita, não transbordando, também não se esconde. Mas esperava-se mais. Esperava-se um salto. Ficamo-nos por um mergulho pachorrento de um crocodilo. Mas chega de bater num ceguinho que, afinal de contas, até vê bastante bem.
Berninger, com o grande suporte do seu baterista-maestro Bryan Devendorf, continua a cantar (?) naquele tom muito falado, que por vezes parece ir buscar o que de melhor a escola de Jacques Brel ou Charles Aznavour ensinou ao mundo. Por outro lado, o country (sempre o maldito Country), mascavado de Alternative Country, aparece no que de pior este albúm nos traz. Pelo meio, uns coros muito à Franz Ferdinand e uma grande grande bateria. Com muito de Pop-rock à mistura (como não pode deixar de ser num single que se preze, "Abel" e´a prova guitarrada disso mesmo), os The National guardam para o fim de Alligator o melhor. Qual doce guardado para quem aguentou a refeição toda, "Mr. November" é a música com mais força, a mais pujante, onde melhor se enquandra todo o panorama lírico deste crocodilo noctívago.

Título: Alligator
Autor: The National

Nota: 7/10

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Calígula


"CALÍGULA - Cherea, acreditas que dois homens cuja alma e cuja altivez sejam iguais possam, ao menos uma vez na vida, abrir o coração e falar como se estivessem nus um diante do outro, despojados dos preconceitos, dos interesses particulares e das mentiras em que vivem?

CHEREA - Penso que é possível, Caius. Mas julgo-te incapaz de o fazer.

CALÍGULA - Tens razão. Só queria saber se pensavas como eu. Cubramo-nos então de máscaras. Utilizemos as nossas mentiras. Falemos como quem se bate, sempre em guarda."

Porque o texto de Teatro, também nasceu para ser lido, não apenas representado. Aliás, esse será, em muitos casos, o grande desafio do actor. Fazer com que o texto seja tão bem representado, quanto o está escrito. A maioria dos dramaturgos merece-o. Albert Camus exige-o. Nascido na Argélia em 1913, aquele que viria a ser agraciado com o prémio Nobel da Literatura em 1957, viu a sua vida manchada pela luta anti-fascista. E se obras como O Estrangeiro atentam na sua qualidade de romancista, peças como Estado de Sítio, comprovam que também no teatro a a sua arte está bem manifesta.

Do que se fala hoje aqui é, essencialmente, de Calígula. Peça que veio a ser representada pela primeira vez em 1945 no Théâtre Hébertot, com encenação de Paul Oettly. Calígula conta a história de um imperador cuja loucura é perceber, melhor que ninguém, que a vida é um não-sentido constante e cujo único erro que comete, é poder cometê-los. Calígula diz, na peça, que, apesar das mortes caprichosas que ordena, no reinado dele morreram muito menos pessoas do que deviam ter morrido, graças às guerras que evitou. Mas não é de uma morte absoluta que se fala, mas da morte como meio de ele, Calígula, atingir uma liberdade e endeusamento que, sabê-lo-à à partida, não lhe é possível. Calígula deseja apenas o impossível e sabe não o poder ter. O seu erro é procurá-lo da pior maneira possível, o impossível á custa de todos os seus subditos.

À conta dos seus devaneios, as personagens vão-se dividindo entre os que o ama, porque o percebem, porque partilham da sua loucura ou, simplesmente, por afeição; e os que se revoltam, os que foram vítimas dos seus caprichos, os humilhados, que vêem a sua hora aproximar-se e temem pelas consequências da loucura do seu soberano.

Tónica comum na sua escrita, Camus apresenta-nos uma peça onde os temas centrais são a morte e o poder. Mas, aliado a isso, aparece-nos um exercício único de compreensão dos limites da mente humana. Calígula é a parte humana reprimida que deseja ser Deus não o sendo. Em Calígula, pode-se. Uma peça de ritmo fluente e vivo, que não dispensa o cariz reflexivo e filosófico a que Camus nos habituou.

Título: Calígula
Autor: Albert Camus

Nota: 7/10

domingo, fevereiro 05, 2006

Ex-Cena em cena


"Porque é que escrevi O Exercício do Outro?

Porque gosto do jogo e da construção. Gosto de jogar com partes que se ajustam para formar um todo e depois se desmontam para de novo se reajustarem num todo diferente. Que antes não sabemos qual é. Gosto do enigma que torna o jogo uma espécie de método experimental de hipóteses múltiplas. E simultâneas. Atrai-me a possibilidade e a histeria. Como um jogo. Como uma personagem
Porque gosto de personagens. Gosto do mistério da criação de personagens no papel, que ganham vida própria para além da vontade que as criou e adquirem vontade própria para além da vida a que foram limitadas. Que não se fica por aí e não sabemos onde vai ter, porque é um testemunho passado em mão para o actor. Fascina-me o percurso do actor que busca partes de si para formar um todo e depois se desmonta para novamente se buscar na construção de um todo diferente. Como um método experimental de hipótese múltiplas. Como um jogo de possibilidade e histeria. Como o teatro.
Porque gosto do teatro. Gosto da confusão de elementos assumida no teatro como um jogo. Gosto da necessidade de assumir a confusão de elementos própria do teatro e do jogo do processo criativo, que consiste em ordenar os elementos muitas vezes pelo caminho de deixá-los à solta para que se ordenem sabe-se lá como. Como uma possibilidade. Como um esgotar de possibilidades até à histeria. Como uma impossibilidade para lá da histeria. Como a vida.
Porque gosto da vida. Gosto particularmente da vida humana, em todas as formas e possibilidades que ela pode assumir e afirmo a minha luta contra a recusa da possibilidade da vida, mesmo quando ainda não assumiu forma visível e, portanto, não sabemos onde vai ter. Transcende-me o mistério da vida, das partes mínimas de infinito que se conjugam para formar um todo irrepetível e depois, fatal e misteriosamente, se desmontam para. Como um enigma. Como um jogo. Como um jogo enigmático até à histeria. A histeria da possibilidade. E da impossibilidade também. Como tudo.
Porque gosto de tudo."
Álvaro Cordeiro
O Grupo de Teatro (amador) Ex-Cena estreou na quinta-feira passada, dia 2 de Fevereiro, a peça O Exercício do Outro de Álvaro Cordeiro. Este post apresenta-se como meio de divulgação e não de crítica. Porque a peça está em cena (pelo menos) mais um fim-de-semana (o próximo) e é essencial para o espectador saber o mínimo possível para que se deixe surpreender por um texto inspirador e uma encenação aparentemente enigmática.
Apesar de, não estar a fazer uma crítica à peça, o facto de a divulgar sustenta uma avaliação favorável de alguém que já a viu mais que as três vezes que esteve em cena e, encontra sempre uma interpretação diferente das anteriores, tal como os diversos elementos do público demonstram na interecção pós-peça.
Título: O Exercício do Outro
Autor: Álvaro Cordeiro
Encenação: Paulo J. Vaz
Elenco: Ana Cabral; Ana Correia; Andreia Alexandre; Catarina Duque; Joana Duque; Marta Geraldes; Paulo J. Vaz; Paulo Martins; Tiago Almeida.
Em cena nos dias 9,10 e 11 de Fevereiro no Auditório de Alfornelos, Teatro Passagem de Nível.

Prateleira #2 - Só

Na saga de álbuns que perfazem, neste ano de 2006, 15 anos, é talvez chegada a altura de, nesta rubrica, revisitar um dos mais belos trabalhos nacionais de sempre. O adjectivo “belo” é, aliás, sintomático e, ao mesmo tempo, estranho, num autor cuja marginalidade e rebeldia estão bem patentes quer na forma, quer no conteúdo. Mas, para tal, convém conhecer Jorge Palma.

Jorge Manuel d’Abreu Palma, nasceu a 4 de Junho de 1950, em Lisboa, e, na sua infância, nada fazia antever o percurso que teria. Aos 8 anos tem a sua primeira audição no Conservatório Nacional, onde se viria a formar em Música Clássica, tendo ganho alguns prémios internacionais como pianista. E assim, a meias entre o piano e a Faculdade de Ciências, tendo como pano de fundo o Salazarismo, vai crescendo Jorge Palma. Até 1978.

“Porque nunca foi a ambição, nem a vingança, que o levou a desprezar a lei
E jamais lhe passou pela cabeça tentar alterar a Constituição
Como um poeta ele desarranja o pesadelo para lá dos limites legais
Foragido por amor ao que é belo e por vocação”

in Jeremias, o fora da lei.

Tendo, entretanto aprendido, autodidactamente, a tocar guitarra, e abandonando as lides clássicas para se dedicar ao rock, Jorge Palma percorre entre 78 e 80, as ruas de Paris, em cujo metro vai tocando Bob Dylan, Simon and Garfunkel ou Leonard Cohen. Pelo meio, em 1971 participa na primeira edição do Festival Vilar de Mouros e lança, em 1972, o seu primeiro, de muitos, single a solo, The Nine Billion Names of God.

Numa média de 1 cd de 2 em 2 anos, vão surgindo trabalhos coerentes que o enquadram como um dos principais, senão mesmo o principal, “cantautor” português. Jorge Palma é parte de uma geração que, influenciada pelo Maio de 68 e pela situação nacional, fizeram a sua carreira misturando sociedade, política e música. Geração de onde vêm também Sérgio Godinho ou Zeca Afonso e aos quais se juntaram, numa fase pós 25 de Abril, artistas e bandas como os Xutos e Pontapés. Prova desta interligação e preocupação social é a sua manifesta, tal como a de Sérgio Godinho, associação ao Partido Comunista Português.

A grande qualidade de Jorge Palma consiste em aliar a sua extrema qualidade poética ao brilhantismo da sua composição, o que não será alheio à sua formação musical. Se repararmos, para além da formação clássica, Palma participou numa banda de Hard-Rock (Sindikato), fez cds de puro Rock (Palma’s Gang ao vivo no Johnny Guitar), percorreu o Jazz (mais visível no recente Norte), sem nunca esquecer as suas origens marginais e autodidactas no que toca à música de intervemção.

Contudo, apesar desta mescla de influências e vontades, é possível entender em Jorge Palma uma toada geral, um som unificante. Baseado, muito, no piano e na guitarra, Jorge Palma vai-lhes acrescentando ora um saxofone, ora uma bateria, ora uma guitarra eléctrica, ao sabor da música, na procura de um som cujo maior objectivo é servir uma letra. A grande magia da sua música será o repentismo, as mudanças, as diferentes versões das mesmas músicas. Numa carreira onde, em suma, podemos provar um pouco das fontes onde bebeu: Cohen, Dylan, muita da música francesa dos anos 50 a 70 e toda a toada pós-punk, dos The Cure aos The Smith, passando pelo retorno ao Rock and roll do Hard-Rock, como os Led Zeppelin. Para além disso, em albúns como Norte ou , desfilham-se as influências Jazz, desde Sonny Rollins a Duke Ellington.
"Deixa-me rir
Tu nunca lambeste uma lágrima
Desconheces os cambiantes do seu sabor"
in Deixa-me Rir

É contudo, dirá qualquer fã de Jorge Palma, para lá da sua qualidade musical, que não é pouca, ficarão as suas magistrais letras. Para além do grande poeta que é, Jorge Palma consegue ser um poeta variado e vivído, como se cada música e cada letra, fosse um pedaço seu, uma parte da sua vasta experiência. Da esperança de “A Gente Vai Continuar”, ao intervencionismo de “Portugal, Portugal”. Da marginalidade de “Jeremias, O fora da lei”, ao idealismo de “Terra dos Sonhos”. Do amor encantado de “O Meu Amor Existe”, ao amor desencantado de “Essa Míuda”.

E, em 1991, temos Só. Considerado pelo Diário de Notícias um dos 100 melhores cds portugueses do séc. XX, é um cd especialmente importante na carreira de Jorge Palma. Sem uma única música original, é um álbum intimista, onde o piano e a voz se interligam nalgumas das mais belas canções do músico. Aliás, sendo que Jorge Palma se sente particularmente confortável em concerto, antevê, a par de Tempo dos Assassinos e Ao Vivo no Johnny Guitar, essa faceta, com a particularidade de, ao contrário dos outros dois, não ser ao vivo. , traz o melhor de Jorge Palma. Sem os excessos roqueiros, com a proximidade das letras e a harmonia do piano. Nesta nova roupagem, Jorge Palma corre temas como “Só”, ”Bairro do Amor”, ”À espera do fim”, ”Dizem que não sabia quem era”, ”Frágil” ou ”Estrela do mar”.
"Tradições
Atrás de contradições
Fizeram-te abrir os olhos
Podes dizer:
Eu... sou"
in Viagem na Palma da Mão, de Jorge Palma
Título: Só
Autor: Jorge Palma
Nota: 9/10

O que aconteceria se um elefante entrasse numa sala de cristal?



É num dia clássico de Outono, que nos são apresentados cada uma das personagens presentes no filme. Temos um estudante de fotografia, Eli, que enquanto percorre os corredores do liceu, aproveita para fotografar retratos dos que se cruzam com ele, como é o caso de John, que se dirige ao gabinete do director para levar uma repreensão por ter chegado novamente atrasado, temos também Nathan, um jogador de futebol que terminado o seu treino, prepara-se para se encontrar com a namorada. Brittany, Jordan e Nicole, coscuvilham como habitualmente nos corredores, enquanto Michelle corre para a biblioteca, onde de momento, passa os seus dias a arrumar livros.
Estamos portanto num cenário familiar a todas as personagens, inclusive para Alex e Eric dois jovens que enquanto os outros fotografam, chegam atrasados, coscuvilham e arrumam livros, devido à intenção de pela primeira serem vistos (ao contrario do que acontece habitualmente, em que são tratados como parte da decoração do liceu) resolvem, matar o máximo de alunos e funcionários do liceu, suicidando-se em seguida.

Inspirado na tragédia de Columbine, Gus Van Sant, cria assim o filme que foi aclamado por muitos como uma obra-prima. O seu ponto forte será talvez a fotografia, conseguindo tornar uma acção neutra, num ambiente asfixiante. O espectador é levado a crer que o seu papel de observador torna-se desnecessário e até desencorajado. Parece que não foi feito para ser visto, algo que me custa passar de constatação a raciocínio. Atribuo a culpa ao facto de em mais do que uma vez ser visível apenas as costas da personagem durante vários minutos seguidos ou também de em cenas de diálogo, a imagem não se apresentar centrada, chegando mesmo a cortar um dos intervenientes. Nota alta também para a banda sonora, suave, passando despercebida mas com grande valor, como é o caso da belíssima Sonata ao luar de Ludwig Van.

Titulo: Elephant
Realizador: Gus Van Sant
Elenco: Alex Frost, Eric Deulen, John Robinson, Elias McConnell
HBO Films, 2003

PALMA DE OURO – Festival de Cannes 2003 e Prémio melhor realizador

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Wolf Creek


Wolf Creek tem, à partida, um grande handicap. É um filme de terror. Se há género onde o cliché e o alvo fácil abundam, é o terror. Lobisomens, homens maus com máscaras feias ou pessoas que saltam, insistentemente de forma previsível, por detrás de uma porta, misturam-se amiúde com adolescentes que passam férias em locais remotos, casas com mau aspecto e perigosos mutantes. Wolf Creek é, pegando na frase supracitada, uma história de adolescentes que passam férias em locais remotos.

A questão é que, neste filme de orçamento reduzido, Greg McLean joga com isso a seu favor. Ao contrário de tratar a vida adolescente das, chamemos-lhe assim, vítimas como um artefacto, essa mesma vida é a essência do terror. Do pouco menos de duas horas que dura o filme, cerca de metade é focada na vida quotidiana e desprendida dos três adolecentes de que fala o filme. É tornando-nos próximos das personagens, é fazendo deles pessoas reais, com afinidades reais e pormenores reais, que nos coloca num patamar tão próximo deles, que não nos conseguimos desprender da sua dor.

Sinopsando, Liz, Kristy e Ben são três amigos que percorrem a Austrália até Wolf Creek, um local real, onde a paisagem criada por uma cratera é, de facto, adequada para o clima de "Road tripping" a que se assiste. Durante essa visita, o seu carro avaria-se e a única pessoa que surge é um local que lhes oferece ajuda. E aqui sim, começa a parte de terror. A melhor parte. Pela maneira como é construída e pela forma como consegue, em parte, fugir daquilo a que o seu género nos habituou.

A grande vitória de Wolf Creek é evitar o gore. O sangue, os gritos, as personagens fantásticas, a música hitchcockiana, a sombra que se vê. Wolf Creek é, também, um filme de humanidade. Uma reflexão sobre os limites da mente humana, dos valores humanos, da condição que uma pessoa pode (não) ter perante outra. E aqui, todos os limites são vencidos. A dor física combina-se com a psiquíca numa anastomose cuja realidade é cruamente verídica. Crú é, aliás, um adjectivo bastante bom para o filme. Parte do calor das personagens que são dadas a conhecer, para a crueldade que é feita sentir no espectador.

Mas, dizia-se no princípio, o grande handicap é ser um filme de terror. E, como tal, não consegue fugir a muitos clichés. O pior do filme é a previsibilidade. Frases como "That´s not a knife. This is a knife" ou "If I told you, I'd have to kill you" são assustadoramente previsíveis. Pormenores como o porquê da falha do carro, são lamentavelmente esquecidos. Fica um exercício monumental de compreensão da mente humana (torna-se exaustiva a procura de causas do assassino) e o sabor de assistir a um filme de terror que, finalmente, não acaba mesmo nada bem.

Título: Wolf Creek - Viagem ao Inferno
Elenco: John Jarratt, Cassandra Magrath, Andy McPhee, Kestie Morassi, Guy Petersen, Nathan Phillips e Gordon Poole
Realizador: Greg McLean
Austrália, 2006

Nota: 6/10