sábado, setembro 30, 2006

Missão Cumprida


O objectivo era voltar a juntar no palco António Feio e José Pedro Gomes. António era o líder da missão. A UAU apoiava em tudo o que fosse preciso. António encontra Dois Amores e compra os seus direitos. Como o próprio afirmou, uma peça que não tem só duas personagens principais, tem outras personagens muito interessantes.
Eu começo por expor Dois Amores como uma peça de teatro hilariante. Que mais hilariante se torna nesta versão portuguesa.
A acção começa quando João Santos (José Pedro Gomes) não cumpre o horário à risca, a sua bengala para ter duas mulheres, duas casas, dois vizinhos de cima, duas freguesias, duas vidas. O bom coração de João Santos atraiçoa-o ao tentar salvar uma senhora de idade e atirando-o para uma cama de hospital e uma capa de jornal.
Qual a solução encontrada por João Santos? Mentir! Tem é que arranjar outra bengala: Simão Horta (António Feio), o vizinho de cima no Dafundo. Os alvos das mentiras são: as duas mulheres (Cláudia Cadima e Maria Henrique), os dois polícias (António Machado e João Didelet) e o outro vizinho de cima (Martinho Silva).
O texto é anormalmente cómico. Com uma característica que me deliciou: o seu crescendo em humor. Frequentemente, os autores para desenvolverem a história e caminharem para um final tornam a escrita mais narrativa e menos engraçada. Ray Cooney, genial, cria uma comédia que vive da história.
A encenação é do líder da missão. E é uma das razões que torna a peça na versão portuguesa ainda mais hilariante. António Feio pensa em tudo para ser o mais cómico possível. O seu invulgar bom senso impede que tudo seja exageradamente ridículo. E para surpresa de muita gente, que não percebe que o teatro dirigido por bons profissionais é espectacular, o Teatro Villaret está por estes dias sempre de sala cheia.
Finalmente, o melhor do espectáculo. O sabor de missão cumprida: António Feio e José Pedro Gomes outra vez juntos em palco. São provavelmente a dupla de actores de maior sucesso em Portugal. Mais que a qualidade individual de cada, é a perfeita interacção de ambos que nos faz saltar rapidamente da cadeira, a rir, para os aplaudir. De destacar ainda, João Didelet que foi o único que conseguiu acompanhar o exigente ritmo dos protagonistas, tendo sido o protagonista do momento mais hilariante da noite de ontem.

quarta-feira, setembro 27, 2006

"Capital", de David Mourão-Ferreira


“Casas, carros, casas, casos.
Capital
encarcerada.

Colos, calos, cuspo, caspa.
Cautos, castas. Calvos, cabras.
Casos, casos... Carros, casas...
Capital
acumulado.

E capuzes. E capotas.
E que pêsames! Que passos!
Em que pensas? Como passas?
Capitães. E capatazes.
E cartazes. Que patadas!
E que chaves! Cofres, caixas...
Capital
acautelado.

Cascos, coxas, queixos, cornos.
Os capazes. Os capados.
Corpos. Corvos. Copos, copos.
Capital,
oh! capital,
capital
decapitada!”

In Obra Poética

Chega-nos pela escrita de David Mourão-Ferreira esta singular e explicita ao mundo burguês da capital e do capital. Escritor e professor universitário, participante de várias associações e instituições, formado em Filologia Românica, Mourão-Ferreira distinguiu-se pela sua obra enquanto poeta, romancista, crítico e ensaísta.

Diz-nos Mário Cesariny que “Burgueses somos nós todos, ou ainda menos.” É assim esta capital, repleta de capital que Mourão Ferreira condena por vários motivos. De carácter demonstrativo, o poeta vai-nos explicando quais os vícios deste ciclo a que a capital, pelo capital, se sujeita. A capital encarcerada dos carros e das casas, da ausência de vida, da ausência de espaço, da ditadura do sufoco. A capital do capital acumulado, do desprezo pelo outro, “dos calvos e das cabras”, dos casos e mais casos que se repetem, da necessidade estúpida do mais pelo mais, a capital da ganância pelo capital. A capital dos cofres, da insegurança, da desconfiança, do roubo, do capital acautelado, do capital prioritário. Uma espiral de desumanização económica, neste macrocosmos impessoal que leva, sem forma de retorno, à capital decapitada, a capital do capital, a capital que o não é.

Da ausência de poesia é o que nos fala este poema onde David Mourão Ferreira usa, sem abusar, da enumeração e de maravilhosas aliterações. Não será estranho este jogo de sons a quem conhecer a obra de David Mourão-Ferreira, onde ele recria com mestria ambientes fonéticos semelhantes que sirvam o propósito do poema que concebeu. Uma forma que muito o caracteriza e cuja estética é impressionante. Neste poema, o vocabulário da opulência aparece mesclado com o tom carregado que as sílabas que utiliza conferem. Tom carregado de verdade, conceda-se.

“Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos”

Mário Cesariny

Kafka à Beira-Mar

“E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros. E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.”
Haruki Murakami, in 'Kafka à Beira-Mar'

Vem recheado de mistério esta mais recente obra do japonês Haruki Murakami a que o público português tem acesso, depois de Sputnik, Meu amor, de 1999. Largamente aclamado pelo público e um verdadeiro êxito de vendas, é sobre a alçada de um gato que nos é apresentada esta agradável e poética viagem pelo fantástico. Seria uma barreira cultural este culto do extraordinário e do fantástico que opera no mercado japonês e que nos chega não só através da Literatura, mas especialmente pelo cinema. Em Kafka à Beira-Mar resulta de modo oposto, puxando-nos de modo hipnótico para um universo interessante mas que não chegamos nunca a perceber.

Kafka à Beira-Mar não será um livro de fácil leitura porque não é um livro simples. É um livro de escrita elegante e espraiada, com um sentido estético e poético elevadíssimo, mas cuja trama não se desenrola de forma clássica. De tal forma o é, que mesmo chegado ao fim do livro, o leitor interroga-se mais do que se esclarece. A escrita fluente e a exigente descrição psicológica das personagens prendem, num livro onde o non-sense e o fantástico poderiam desinteressar.

Em Kafka à Beira-Mar, interlaçam-se as história de dois homens, o jovem de 15 anos, Kafka Tamura e o caçador de gatos, Nakata. Kafka é um rapaz demasiado maduro, que foge de casa, de um pai cuja presença será fará sentir sobre a forma de uma maldição edipiana. Ao longo da história, por entre mundos paralelos onde o tempo não faz sentido, conversas com a andrógina Oshima e romance com o passado de alguém, Kafka vai descobrindo o mundo ao descobrir-se a si, a sua sexualidade e quem verdadeiramente é. Nakata é alguém que sente a cabeça vazia, fruto de um segredo militar que se vai desvendando e que, graças a isso, consegue manter breves conversas com gatos. Pelo meio, Nakata conhece Hoshino, o camionista que vê nele o avô e que será a sua bengala, por entre procuras de pedras mágicas e conversas com o Coronel Sanders do KFC.

Eis um livro que não fala do fantástico, usa o fantástico como metáfora, com maior ou menor sucesso, para falar do passado e do futuro. O presente, neste mundo de fronteiras temporais pouco definidas, é um modo de coabitar a nossa história com os nossos anseios. Aqui fala-se de amizade, de refazer no futuro os nossos erros do passado, de procurar um sentido último, bem para além das convenções sociais. Um livro que ultrapassa as barreiras culturais, no nosso meio literário não habituado a romances comerciais tão repletos de peixes que caem do céu e prostitutas que citam Hegel.
Título: Kafka à Beira-Mar
Autor: Haruki Murakami
Nota: 6/10

United 93


5 anos após o fatídico 11 de Setembro de 2001, altura em que a América entrou em histeria colectiva, chegam finalmente as primeiras tentativas cinematográficas de abordar a questão. Mais ano menos ano teria de acontecer. Michael Moore já havia, com um pouco mais de interesse acrescente-se, aberto caminho pelo recalcamento americano. Mas a abordagem subversiva de Moore parece, a julgar pela reeleição de Bush, ter tido mais impacto na Europa do que na sua terra natal. Mais ano menos ano, então, isto tinha mesmo de acontecer.

E, com uma previsibilidade assutadora, os primeiros filmes comerciais surgem para relatar, não a inoperância da máquina defensiva americana, não as causas mais obscuras por trás dos ataques (como o fez Moore), não para explorar algumas teorias da conspiração (como o fizeram alguns telefilmes e fará, com certeza, o género policial do futuro), nem tão pouco para acompanhar as desventuras e torturas da guerra a que este ataque deu origem (ou será que a necessidade da guerra deu origem aos ataques?). O que nos chega são duas histórias paralelas no sentido em que apontam. A força do americano comum. Os lobos maus dos árabes atacam os coitadinhos indefesos dos americanos. Nada a que Hollywood não nos tenha habituado, revendo Rambo’s, Air Force’s e afins. Nem é isto que principalmente se critica em United 93.

A grande falha de United 93 é que Paul Greengrass (Domingo Sangrento, Supremacia de Bourne) parece esquecer-se que toda a gente viu o 11 de Setembro, toda a gente o comentou, pesquisou, ouviu, reouviu, reviu em todos os aniversários da data. United 93, mais do que um documentário, parece um telefilme de fraca qualidade, ao qual não será alheia a génese documentista do realizador. Este era, provavelmente, um filme que tinha de ser feito. Alguém, na história recente da cinematografia americana teria de relatar a vida deste grupo de sobreviventes, não na medida em que sobrevivem, mas na que fazem por tal. Louvemos ao menos Paul Greengrass por nos deixar com uma certeza, “Pronto, já está”. Melhor assim, despachar esta “necessidade” logo ao princípio da história da filmografia sobre o 11 de Setembro. Talvez assim se abra caminho para procurar mais.

Greengrass até procura alguns pormenores interessantes. A separação física dos actores aquando da filmagem para que melhor sentissem o isolamento e a necessidade de confiar em estranhos, o recurso às já célebres câmaras à 24 ou a obrigatoriedade dos actores em refazer a vida da personagem que interpretavam. Contudo, à parte o óbvio onde falha (toda a forma de pegar no enredo), Paul Greengrass perde-se ao tentar mostrar quer a aflição inoperante das Torres de Controlo (cenas de uma vivacidade só ao alcance de um filme de Manoel de Oliveira) quer os últimos instantes, qual Reality Show, dos já-elevados-a-heroís passageiros. Na retina fica um bom final. Despido de tudo, uma queda em direcção à morte, a queda na relva, o escuro, o silêncio e o acender das luzes no cinema: “Nós morremos, vocês estão aí, isto foi um filme”. Hoje soube-me a pouco, diria o Sérgio Godinho.

Four planes were hijacked. Three hit their targets. One did not.” Pois, o problema é que nós já sabíamos isto.
Título: United 93
Realizador: Paul Greengrass
Elenco: Christian Clemenson, Cheyenne Jackson, Polly Adams, Trish Gates, Opal Alladin, Omar Berdouni, Simon Poland e Lewis Alsamari.
E.U.A., Inglaterra e França, 2006.
Nota: 5/10

domingo, setembro 24, 2006

The Pillow Man


Quando me foi apresentado este projecto, Espaço de Crítica Artística, eu aceitei-o por um motivo especial: tentar divulgar o teatro nacional. Na minha opinião, pouco valorizado em Portugal. São peças de teatro como The Pillow Man que não me deixam desistir.
Esta peça que está em cena no Teatro Maria Matos só não é extraordinariamente boa para o público (estupidamente) mais exigente.
Um escritor, num regime totalitário, é interrogado acerca do conteúdo grotesco dos seus contos e das suas semelhanças com uma série de homicídios infantis que estão a acontecer na sua cidade. Este é o ponto de partida de The Pillow Man.
Tudo está no limiar da perfeição. Texto, encenação, cenário, interpretação articulam-se pormenorizadamente cativando a plateia durante todo o tempo da peça e não só.
O texto de Martin McDonagh é excelente.Vasto no diálogo, inclui pequenos contos escritos pela personagem principal de narrativa absorvente. De realçar que durante a peça não se tem a habitual sensação que "esta ou outra cena estão aqui a mais". E para quem pensa que vai assistir a uma peça dominada pela tensão, surpreende-se com o frequente humor negro de eleição.
A encenação é a estreia de Tiago Guedes (realizador do filme Coisa Ruim). E certamente não será a última. O sucesso parte do aproveitamento do largo palco para criar espaços inesperados. Prolonga-se na cadência ritmada das cenas, na extensão do espectáculo e acaba na exímia escolha dos actores.
A interpretação é perfeita! Gonçalo Waddington (brilhante a contar as suas histórias) e Marco D'Almeida (com um atraso mental inteligente) destacam-se porque atingem perfeições mais exigentes. Albano Jerónimo (o "brutamontes"-não-protótipo) e João Pedro Vaz (um pseuso-intelectual) não podiam ir mais longe.
The Pillow Man está em cena no Teatro Maria Matos até ao dia 15 de Outubro.