sexta-feira, dezembro 29, 2006

Simples(mente) o melhor

“Não ter já mais nada para dizer e continuar a escrever é um crime. Porque não tem o direito de continuar a escrever se não tem nada a dizer”.
José Saramago

Da cena suburbana para o mainstream, o salto do Hip-Hop em Portugal foi tremendo. Valete, Boss AC, Da Weasel, Mind Da Gap, Chullage ou Dealema, muitos sãos os nomes que vão povoando este território ainda em crescimento no panorama musical nacional. Dos mais agressivos, aos mais comerciais; dos mais melódicos aos mais conscientemente crus. Há, cada vez mais, variedade e qualidade, neste género a ganhar definição própria. O que há também é Sam The Kid, até ver o maior talento de toda esta fornada e razão maior de o Hip-Hop em Portugal ser o que é hoje.

Despachemos a parte informativa e burocrática da coisa. Pratica(mente) é o último trabalho do rapper que surgiu com Entre(tanto), em 1999. Em 2002 lançava um dos melhores álbuns de Hip-Hop até à data, Sobre(tudo). No final do mesmo ano sai ainda o criticamente aclamado Beats Vol.1 – Amor. Pratica(mente) traz participações de Melo D, Valete, Pacman, NBC, Lil’John e Carlos Bica. Os Scratches são responsabilidade de DJ Cruzfader e os temas são todos produzidos por Samuel Mira, vulgo Sam The Kid.

Despachemos ainda a parte mais óbvia deste álbum. Pratica(mente) é, perdoe-se-me o trocadilho, segura(mente) o melhor álbum Hip-Hop da história do género em Portugal. Sam The Kid segurava já com “Não percebes”, o troféu de melhor single do género, numa música repleta de força autobiográfica e revoltada, uma lufada de ar fresco bem ao seu género. “Poetas de Karaoke” segue as mesmas pegadas. Este álbum, ao contrário de muitos, não se resume, de todo, a este espantoso single. Ainda assim, este é um marco do Hip-Hop que não pode passar despercebido.

“Não há credibilidade na performance.
O microfone não está ligado. Isso para mim é non-sense.”

Abre com José Saramago a quarta faixa, a tal dos poetas, ataque directo e bem direccionado contra a produção musical portuguesa que parece ter vergonha desse rótulo. Aqui esventra-se a criatividade dos músicos que insistem em fazê-lo em inglês. Sam fá-lo com um beat extremamente rico em subtilezas e as suas rimas intensas (esqueçam tudo o que aprenderam, aqui as rimas não se limitam a ABAB ou ABBA). Intensas no conteúdo e na própria frequência com que nos apercebemos da poesia premente e constante do rapper de Chelas.

O melhor de Sam The Kid, que é subsequentemente o melhor do Hip-Hop, é isto mesmo, ter algo a dizer. Não é difícil criar um bom ritmo, mandar alguma areia para os olhos de ouvintes famintos com uma falsa agressividade ou manter uma atitude. Isso é o menos. Difícil é saber fugir ao óbvio, ao mundo quotidiano dos amores e desamores e perceber o que tem de ser dito, saber ser inconveniente, não por gritar, mas por obrigar a pensar. Em relação aos tais poetas de que fala a música, como diz o povo (personagem maior no ambiente de Sam), cada um enfiará a carapuça, sendo que, a alguns, a carapuça já foi enfiada.

“Porque é que eles têm mais estudos do que eu?
Ai não sabes?
Porque já os pais deles eram mais ladrões que o meu!”

Já o ouvimos samplar Amália, Carlos Paredes ou Mário Viegas. De referência em referência destilando qualidade. Em Entre(tanto), vimo-lo mostrar-se. Em Sobre(tudo), provar que é um escritor, referenciado pela originalidade. Beats Vol.1 traz o melhor do seu ouvido, a batida como linguagem. 2006 parece ser o ano da condensação de tudo isto. O Cântico Negro de José Régio, ouvido em “A partir de agora”, parece explicação sucinta da carreira musical de Sam The Kid, espécie de Kanye West português.

“Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!”
José Régio

Autobiográfico, irreverente, dono de uma saudável verborreia, não em forma de verso, mas em forma de poesia. Agressivo mas consciente, socialmente alerta e alertante, musicalmente culto, instruído e instrutor. Da crítica aos que o procuram para ganhar algo com a sua música, aos falsos poetas da cena musical, passando pelo aborto, abstenção ou quotidiano. Há praticamente de tudo no universo deste senhor. Com poemas do pai, Napoelão, ou de José Régio, a intenção serve sempre o mesmo propósito. Escrever, enquanto se tiver algo a dizer.

“Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!”

Simples(mente) Samuel Mira.
Título: Pratica(mente)
Autor: Sam The Kid
Nota: 8/10

domingo, dezembro 24, 2006

Six Demon Bag

Numa altura em que a uniformização parece ser a palavra de ordem para o mercado musical, Six Demon Bag é uma lufada de ar fresco, um oásis musical, não tanto pela qualidade, se bem que também a tem, mas pela excentricidade. Man Man é o nome do quinteto de Honus Honus, e Six Demon Bag o segundo álbum da banda que ficou conhecida após Man in a Blue Turban with a Face.

Falar de Six Demon Bag é uma tarefa tão simples quanto o cd é linear. Nada, portanto. Amalgama de sons e instrumentos, tão variados e divergentes, a sua confluência num único álbum torna-se, como seria inevitável, paradoxal. Por um lado, são um exercício prazenteiro de melodias e, por outro, um conjunto controverso de sons incoerentes. A questão é que neste caso concreto tudo isso soa bem. Soa a diferente, a original. Como se, finalmente, fossemos a um alfaiate e não a um pronto-a-vestir. Ainda que o fato venha em cores berrantes.

Quando se fala de Man Man, vem à partida a trilogia Zappa / Waits / Beefheart para ajudar a classificar. Sem desprimor para os senhores, e aparte as semelhanças, a verdade é que se trata de um trabalho tão ímpar que semelhanças com qualquer outro são pontuais. Ainda assim, a presença de Tom Waits é muito sentida, a par de um universo que remete bastante para Emir Kusturica, nas secções mais circenses e até nalguns pormenores jazz.

Este saco de demónios de que fala Honus Honus é uma actividade catártica saudável, para ele, e benéfica, para nós. Vagueando esquizofrenicamente entre o Punk, o Circo, a Pop, o Rock e sons tribais e de influência cigana, Six Demon Bag é um caso típico de algo de que se gosta ou não. Sem paninhos quentes. Ou se reconhece a qualidade do parafuso a menos de Honus Honus e se regozija com uma sonoridade eminentemente diferente; ou se ouve um bocado e se afirma categoricamente a incoerência do mesmo. Para qualquer um, não há indiferença, não se houve como música de fundo de supermercado, nem se confunde com dezenas ou centenas de bandas. Isso, ninguém lhes tira.
Título: Six Demon Bag
Autor: Man Man
Nota: 7/10

sábado, dezembro 23, 2006

Casino Royale

Há quem veja James Bond como um franchising de sucesso. Outros vêem-no como uma inevitável gripe sazonal. Outros ainda vêem-no como um insopurtável fenómeno pendular. Por incrível que pareça, esta interminável saga continua viva após o flop colossal de Die Another Day. Muitos rumores se espalharam pelo meio, muitas informações foram lançadas pela imprensa, muita tinta correu. Quem seria o escolhido após a exoneração de Pierce Brosnan enquanto agente secreto 007? A resposta soou com alarme: Daniel Craig. Este actor inglês tinha sido visto em filmes sem peculiar distinção, mas a sua última aparição fora no polémico Munique de Steven Spielberg, pelo que a crítica queria saber se Craig estaria ao nível de actores como Sean Connery e Roger Moore. Quem já tinha visto, como eu, Craig em séries britânicas, sabia que podia elevar as expectativas. E assim se fez.

Para além do desafio que foi escolher o protagonista, o realizador Martin Campbell (responsável por desastres cinematográficos como A Máscara de Zorro e respectiva sequela, e Limite Vertical) tinha nas mãos a tarefa de adaptar o primeiro livro de Ian Fleming. Este livro, anterior à famosa licença para matar, lançava algumas luzes sobre o início de carreira de Bond ao serviço de Sua Majestade. Como tal, os argumentistas conseguiram adaptar o cenário da Guerra Fria para um clima de tensão pós 11 de Setembro, sempre com a ameaça terrorista a pairar nas paisagens exóticas que desde cedo encantaram os fãs dos filmes.

Contudo, este filme em particular é verdadeiramente surpreendente logo no início. Vemos sequências a preto e branco, e imagens em flashback com uma fotografia alternativa, com imenso grão, mas muito bem conseguida. Posteriormente, vem o genérico. E aqui toda a gente faz um compasso de espera e sustém a respiração. Então, surpreendemo-nos: eis o genérico mais brilhante de todos os filmes! Não há silhuetas de mulheres seminuas, músicas arrastadas ou mesmo músicas sem qualquer qualidade. Ao invés, há uma exploração do universo de Bond, evoluindo com muito estilo, sem adereços pirosos, sem excessos, fazendo referência aos naipes de cartas de Casino. E a música é um deleite ao fim de tantos anos a ouvir canções idiotas…

A história que alenta a película é simples: nesta sua primeira missão, 007 tem de impedir o vilão (que desta vez não tem três mamilos, mas chora sangue) de ganhar um jogo de póquer milionário para que este não financie o terrorismo. Simples, mas, com a ajuda de cenários da Europa de Leste, de Itália e de Madagáscar, pega. E aqui Daniel Craig mostra bem porque foi escolhido. Independentemente da sua impecável forma física e destreza motora, o actor consegue ser o melhor Bond da série ao tornear uma figura tão estereotipada em algo de novo, pondo de parte o sex symbol para se converter num espião com sentimentos e origens. Demasiado para quem espera ver o agente secreto a correr por entre bombas e estilhaços, e a acabar a noite na cama com uma das infinitas Bond-girls.

Oferecemos também um lugar de honra aos argumentistas por nos terem poupado aos clichés bondianos como o enjoativo modo de preparação do famoso cocktail. Quando o empregado pergunta 'Shaken or stirred?', Bond remata com 'Does it look like I give a damn?' Brilhante. Ou mesmo o 'My name is Bond. James Bond.' só aparece no final das duas horas e meia. Deste modo, também está dispensado da série o humor de Moneypenny e de Q, e apenas por uma questão de adaptação que pode nem parecer uma incongruência, uma vez que se trata do primeiro filme do herói.

Mais uma vez, balançamos por entre os luxuosos ambientes, diamantes e muitos conflitos de interesses, armas e passagens secretas. Desta feita, depois de muitas impressionantes cenas de acção, entramos nas deslumbrantes paisagens do Montenegro. Aqui fica o Casino Royale, inspirado, segundo Fleming, no Casino Estoril durante a Segunda Grande Guerra. É no Casino Royale que Bond vai ter de vencer Le Chiffre, o vilão de serviço, no tal jogo de cartas. Para isso, conta com a ajuda da Bond-girl jovem-contabilista-em-ascensão Vesper Lynd, personagem ao cargo da francesa Eva Green (observada muito ao de perto em Os Sonhadores do grande Bernardo Bertolucci). A surpresa reside no facto de, pela primeira vez, termos na tela uma Bond-girl que não é só um acessório, um corpo bem definido e bem curvado: há de facto uma personagem. É pena que a lindíssima Eva Green não esteja à altura da proeza, mesmo com o sotaque inglês… Verdadeiramente frustrante para quem espera um pouco mais.

Contando com elaboradas cenas de perseguições e tudo o que se espera neste tipo de filmes, este embrulho tem o recheio que todos querem, ainda que com algumas boas surpresas. É certo que se pode fugir à fórmula já gasta para tentar comprar o público de novo. Não obstante, esperemos que este filme tenha sido um reinventar e não um subterfúgio de quem está cansado de não vender. Independentemente do ângulo, a película é um forte abanão à base modular da saga, é uma verdadeira adaptação do Bond de Fleming e é uma actualização do universo da espionagem para o século XXI. Com uma fasquia colocada agora tão alta, esperamos ansiosamente pelo próximo filme do espião ao serviço de Sua Majestade.


Título/Ano: Casino Royale

Realizado por: Martin Campbell

Escrito por: Neal Purvis & Robert Wade

Elenco: Daniel Craig, Eva Green, Mads Mikkelsen, Judi Dench, Felix Leither, etc.

As Pequenas Memórias

“Deixa-te levar pela criança que foste.”

Nome maior da Literatura portuguesa contemporânea, José Saramago não deixa por isso de ser um caso de invulgar divisão do público português. Laureado com o Nobel da Literatura, o feito não parece suficiente para encantar a gregos nem a troianos. Reminiscências da sua actividade no Diário de Noticias, incompreensão das suas escolhas politicas ou desagrado com o seu peculiar processo de escrita, algo persiste que não permite a uma larga camada da sociedade saborear o que escreve.

As Pequenas Memórias são o seu mais recente livro. Planeado, na sua mente, há cerca de 20 anos, chega-nos agora esta visão autobiográfica dos seus primeiros anos de vida. Ao contrário do que seria de esperar numa biografia de um prémio Nobel, não são os grandes acontecimentos mundiais vistos pelos olhos que aqui se retratam. Não é a vida por trás da cortina do fenómeno Nobel, não é um repisar da história recente portuguesa pelos seus carregados óculos nem tão pouco se abordam algumas das suas posições que mais celeuma provocaram.

Aborda-se tão simplesmente a sua infância. Uma sucessão de pequenos trechos, um contínuo jorrar de lembranças, que parecem surgir com a preocupação lógica de quem conta uma história à lareira, nenhuma. Entre a Azinhaga, no Ribatejo até aos primeiros tempos de Lisboa. Dos pormenores mais humilhantes que a infância proporciona aos momentos mais pessoalmente enriquecedores. É um Saramago, mais que biográfico, extremamente pessoal que aqui nos é transmitido.

O que fica, mais que os eventos, sem qualquer fio condutor, que nos vão sendo descritos, é a enorme capacidade de comunicação de um escritor absolutamente ímpar. O interesse de As Pequenas Memórias enquanto obra poderá ser, e é-o, totalmente discutível. A qualidade da escrita de Saramago não. No seu estilo rendilhado e mordaz, onde as frases podem tornar-se estradas compridas mas que, invariavelmente, chegam a bom porto, torna-se um prazer sensorial e enriquecedor seguir as peripécias da criança que foi.

Algumas críticas têm sido dirigidas ao livro no sentido da escassez de conteúdo, indicando que o livro se resume a uma sucessão de trechos, na maioria de índole ligeiramente cómica, sem grande consequência. É de facto do que se trata. Mas esperar mais, em termos formais, do livro, seria ingénuo. O que recebemos é bem mais que isso. A possibilidade de mais uma obra para avaliar e contemplar uma escrita tão original quanto consistente. Ainda que o livro o não seja. Saramago é um nome sem nada a provar. Conseguir escrever tão bem sobre tão pouco é também uma arte.

Tìtulo: As Pequenas Memórias
Autor: José Saramago

sexta-feira, dezembro 22, 2006

to: Elliot from: Portland

Em Outubro de 2003, o conhecido cantor e compositor indie Elliott Smith pôs fim à sua vida ao cravar uma faca de cozinha no seu peito. Alguns comparam a reacção da dita comunidade indie semelhante à reacção da geração grunge depois da emblemática morte do seu líder Kurt Cobain, ainda que com outras roupagens. Apesar do seu fim violento, o suicídio de Smith era, para a maior parte dos seus acérrimos fãs, um fim previsível para um homem que lutava contra a dependência e contra a depressão. Para além dos seus ouvintes, também as bandas que se insurgiram com ele no universo da música independente depressa manifestaram a sua reacção. Assim, oriundo de Portland, Oregon, terra natal de Smith, nasce, três anos depois, o álbum To: Elliot From: Portland.

Este álbum, ainda que muito mais do que uma colectânea de covers, é a prova máxima da genialidade de Smith, um artista com uma alma torturada que deixou um legado suficientemente extenso para que se incluam num CD algumas músicas por si compostas nunca antes escutadas. Tudo isto faz de To: Elliott From: Portland um disco com muito a reter, assim como uma excelente oportunidade para conhecer a música de Smith. Para quem, como eu, já conhece, fica sempre a hipótese de revistar lugares antigos e reviver os sentimentos de sempre.

As bandas preferidas da esfera indie mostram-se sob um prisma muito interessante neste disco, fazendo uma leitura muito própria, por vezes diferente, sem se afastarem muito da intenção de Smith, oferecendo sempre um cunho pessoal. A primeira banda deste rol é The Decembrists, que oferecem uma aproximação low-fi da música Clementine, tornando-a num estudo que se aconchega no country alternativo, uma possível intenção de Elliott para esta faixa. Clementine ergue-se muito lenta sobre acordes levemente abanados na guitarra acústica, delineada sobre o tom melancólico das harmónicas. A canção original é, segundo me recordo, perfeitamente espectral, cinzenta e ensombrada, pelo que os The Decembrists conseguiram alcançar uma verdadeiramente boa interpretação: ao cinzento acrescentaram o outro lado da janela, a ver a chuva cair.

Na faixa seguinte, esquecemos os sintetizadores e a loucura electrónica dos The Helio Sequence para nos concentrarmos numa versão perturbadora de Satellite. A beleza da música é inquestionável, porém, o mais notável é a diminuição do andamento, a fusão coral no refrão, a firmeza das cordas, os acordes acústicos e a pequena distorção da linha melódica. É absolutamente brilhante conseguir enquadrar a visão de Elliott Smith em algo de tão sublimemente construído na subjectividade.

Dolorean simplifica The Biggest Lie ao jeito do country mais pragmático de Emmylou Harris, o que não é necessariamente mau. Talvez a diferença desfaça a base de Smith, sem deixar de ser uma leitura interessante. The Ballad of Big Nothing é explicada pelos The Thermals, um pouco mais trôpega do que a versão original, contando com um pouco mais de percussão e acordes mais robustos nas guitarras.

I Didn’t Understand ficou ao cargo dos Swords. E ainda bem. A banda oferece um excelente cover da música de Smith, conseguindo enquadrar uma surpreendente profundidade em termos de harmonia. O acordeão envolve o ritmo um pouco desacelerado para se confundir com os teclados no refrão. Destaque para a voz, modulada naquilo que parece uma assombração do registo de Elliott Smith. Escutar I Didn’t Understand é uma verdadeira overdose de melancolia: a atmosfera remonta aos tempos de canções de Elliott, o ambiente é pesado e negro.

Rose Parade é um produto muito bem acabado por parte de Sexton Blake. Há um ritmo semelhante, o mesmo tom moribundo a definhar acordes ritmados no piano, alguma percussão quase escondida. Ainda assim, há uma pequena variação no modo como esta música soa. Amelia traz-nos Between the Bars na sua voz maravilhosa, num estilo muito simples, muito sing-along, muito profético. Ao longo desta faixa, sente-se na voz, nas notas descendentes sequenciadas piano, na pandeireta, uma ironia própria do destino.

De seguida, Eric Matthews assoma com uma versão diferente de Needle in the Hay, incorporando trompetes, um ritmo mais aos tropeções, sendo, por isso, uma manobra um tanto negra face à versão de Smith. Ainda assim, é uma boa música, que pegou na intensidade musical para aceder ao conteúdo das letras. Nesse sentido, Elliott Smith não precisava de se fazer perceber.

Como outra versão mais adulterada, temos We are the Telephone com Division Day. É demasiado pop, demasiado rápida e demasiado sintética para uma música de Smith. E para provar que se pode interpretar Smith de acordo com parâmetros mais pop, os Crosstide transformam o que poderia ser um cover fantástico de Angeles numa das melhores faixas deste disco: há uma leitura pessoal sem descurar o ambiente melancólico do compositor.

Wouldn’t Mama be Proud é uma excelente aproximação de Jeff Tront ao espírito do disco. Destaque para as notas mais agudas, muito bem conseguidas pelo vocalista, e para os enquadramentos rítmico e harmónico, muito bem estruturados. Semelhante na qualidade, diferente na interpretação, temos To Live & Die in L.A. com King's Crossing.

Como forma de contraste, escutamos Speed Trials, uma viagem alucinante levada a cabo pelos Knock-Knock. Ainda que salvos pela melodia original e pela voz que transcende convenções, fica um sabor amargo nos lábios. E talvez mais estranho do que isto seja a versão hip-hop de Happiness da autoria de Lifesavas… é, de facto, interessante conseguirmos ter estilos diferentes dentro do mesmo álbum, no entanto, é com alguma perturbação que se sente um enorme destoar ao escutar esta faixa.

Como derradeira homenagem, a última música deste CD é uma fabulosa canção de despedida. Quem a canta é Sean Croghan, um companheiro de quarto de Smith que nunca se chegou a despedir dele. Talvez seja por esse mesmo motivo que High Times tenha um peso tão sinistro neste disco. E, para realçar a profunda expressão de tristeza que existe nesta faixa, fica também retido o facto de esta música ser inédita: todos pensamos como teria sido Elliott Smith a cantá-la.

O que fica, então por dizer, depois de tantas versões, de tantas leituras, de tantas aproximações? Muito pouco. Quase nada. À margem do génio de Smith? Dentro das suas intenções? As respostas para estas perguntas serão apenas fruto da especulação musical. Deixemos isso de parte. Fica o objectivo deste disco, portanto, a homenagem feita a um músico fantástico, a um homem sofredor, e em muitos casos a um exemplo e a um amigo. Separado de gostos e de pontos de vista. Verdadeiramente independente.


Título: To: Elliot From: Portland

Artista/Compositor: The Decembrists et al. tocam Elliot Smith

Ano: 2006

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Wake Up And Smell The Coffee



Neste últimos três meses de 2006, deparámo-nos nos cartazes culturais com um oferta de monólogos bastante diversificada. Para tal, a contribuição de alguns dos melhores actores portugueses tem sido fundamental. Maria João Luís com Stabat Mater, Gonçalo Waddington com Comida, João Lagarto com Começar a Acabar, Tiago Rodrigues com Wake Up And Smell The Coffee são alguns exemplos de bons actores que valorizaram, neste final de ano, esta diversidade cultural.

Monólogo - Cena falada apenas por um personagem; discurso aparentemente dirigido a ele mesmo, ou a um auditório do qual não se espera resposta. Na análise do discurso teatral, é considerado como uma variedade do diálogo.

Eu considero arriscado fazer um monólogo. Ou melhor, um monólogo que valha a pena ser representado. Tudo pesa muito. O texto, a versatilidade do actor, o espaço, o tempo de acção têm de estar perfeitamente unidos de forma a criar uma linha coerente de espectáculo com o intuito de captar a atenção do público que, nestas encenações é extremamente exigente.

A definição de monólogo que transcrevi não é perfeita. Eu procurei várias e não encontrei nenhuma que exprimisse o que eu entendo como monólogo. Escolhi esta porque abarca os elementos essenciais mas nem sempre de forma correcta. A melhor definição de monólogo será mesmo o espectáculo de Tiago Rodrigues no MM Café que esteve em cena até ao dia 16 do presente mês. Com um texto de Eric Bogosian e encenação de Luís Mestre, o actor português dá uma pequena lição de dramaturgia.

Cena falada apenas por um personagem; a definição começa mal. Eu sei que o erro não é tão linear. Esta definição de monólogo parte de uma peça teatral. Ou seja, descreve o que é o monólogo quando inserido numa montagem teatral. No entanto, quando alguém descobriu esta arriscada fórmula mágica de realizar espectáculos só de monólogos, esta parte da definição tornou-se obsoleta. Tiago Rodrigues não interpreta uma só personagem, começa com uma espécie de “eu-actor”, passa por um actor frustrado até a um vendedor-diabo, entre outras deliciosas personagens.

Discurso aparentemente dirigido a ele mesmo, ou a um auditório do qual não se espera resposta. Tiago Rodrigues ao encarnar todas estas personagens, obviamente não tem sempre o mesmo destinatário. O monólogo começa com o tal "eu-actor" que fala directa e abertamente para o público sobre o espectáculo que estamos à espera de assistir. De seguida assistimos a um deambular de direcções. O actor num ritmo fascinante, fala para si próprio, para uma pessoa específica no público e para a plateia inteira. Este deambular é fantástico. Tiago Rodrigues domina por completo a expressão do sentimento. A sua interpretação passeia entre o confiante e o frustrado com uma expressividade que nos faz esquecer que tudo não passa de uma representação. E Tiago sabe que para o sucesso pleno tem que sentir a reacção do público. As gargalhadas, os suspiros, os silêncios são as respostas do público que Tiago absorve com muita facilidade. Mais uma vez a definição falha, é verdade que não há resposta verbal por parte do publico, mas desde quando uma resposta só é apelidada de tal no uso exclusivo da fala?

Sobre Wake And Smell The Coffee não interessa falar só sobre o trabalho de actor. O texto de Eric Bogosian é também excelente. Aliás será mesmo a base para Tiago desenvolver a sua arte. A escrita de Bogosian é inquietante, vasculha nas nossas pequenas rotinas e para quais já não temos armas. Somos mesmo atingidos com a violência do confronto. Lá está, não respondemos verbalmente, mas o silêncio na sala torna-se constrangedor durante alguns segundos. Não muitos, porque logo de seguida o constrangimento é quebrado por um momento cómico. E é desta variação que vive o monólogo. Atingido o clímax final com uma cena inquietante repleta de humor.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Air - Late Night Tales



Quando se pretende expressar uma série de eventos na forma de uma ideia ou de uma digressão sentimental, a construção de uma banda sonora pode ser a melhor aliada. Deste facto se socorre o cinema há décadas e a ligação entre ambos parece cada vez mais sólida, mas esses ambientes e as suas regras resvalaram da tela e conquistaram uma autonomia muito própria, consubstanciada após o clássico de Brian Eno Ambient 1: Music For Airports. Apesar de a música dita erudita desempenhar há muito mais que décadas uma função semelhante, só com o desenvolvimento da música popular e o progresso da aparelhagem electrónica (a introdução dos sequenciadores, sintetizadores e samplers, por exemplo) certos sons encontraram lugar e validade. Eventualmente se percebeu que existia um novo campo, fértil em experimentações, cujo relevo, desde os anos 70, vai e vem. O que já não oscila é a importância dos ambientes musicais para além desse estilo mais restrito que é a música ambiente.

E se essa importância se acentua nos tempos recentes, propagando-se por diversas correntes musicais e fazendo da definição de um ambiente um novo critério para o êxito, honra seja feita a uma banda que acolheu essa orientação desde o primeiro álbum: os franceses AIR. Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel, a cumprir uma década de carreira, são responsáveis pela contaminação do ar com um cheiro apenas caracterizável através dos três termos franceses cujas iniciais dão origem ao nome: A de Amour, I de Imagination e R de Rêve (sonho). De todos os álbuns o mais consistente na forma e conteúdo talvez seja Moon Safari, de 1998, embora nenhum seja a excepção a confirmar o ditame, a máxima orientadora. Escutar a discografia dos parisienses é como sentir os efeitos de um bálsamo que não se esgota num aroma ou no alívio da dor, mas que se expande pelo corpo alterando a nossa disposição. Mais do que pela concepção de preciosidades romântico-atmosféricas pop, primam por fazer música capaz de estabelecer novos humores.

Todo este enquadramento gerou uma certa expectativa em relação à contribuição dos AIR para a série Late Night Tales, do selo Azuli. Queria-se perceber o que estava na rectaguarda da sua criação musical, o que tinha levado à depuração da sua música e que género de influências e gostos paralelos teriam. Sucessivos adiamentos na edição do álbum começavam a frustrar quem acompanhava o processo, e até a primeira tracklist vinda a público viria a ser distinta da realmente escolhida. Custa compreender o porquê de tanto atraso, tendo em conta que se trata de uma playlist.

É, de facto, apenas uma playlist. Na verdade, não se pode dizer que tenham sequer dado particular atenção às passagens das músicas. As transições são feitas da maneira mais óbvia, como se o objectivo fosse demonstrar que, perante a qualidade das músicas propostas, nada mais havia a fazer senão pô-las todas em sequência. Hoje em dia, qualquer um pode fazer isto no seu computador pessoal. Tentar, buscando na sua colecção, um agregado de músicas suficientemente boas para se poderem aglutinar e formar um ambiente. Isto é fácil. Difícil é fazê-lo bem.

Quem se lembraria de forjar um álbum indicado para os amantes da penumbra e para todos os momentos simultaneamente melancólicos e belos? Muitos. Mas quem incluiria os Black Sabbath (“Planet Caravan”) nessa compilação, logo a seguir à introdutória “All Cats Are Grey”, dos The Cure? E quem conseguiria tão harmoniosa amostra de doces vozes (Cat Power, Jeff Alexander, Elliott Smith, Reg Presley dos The Troggs e Robert Wyatt), intercaladas por referenciais cinematográficos (Georges Delerue, Tan Dun e Nino Rota), como cenas de um filme ligadas pela banda sonora? Quem arriscaria a inclusão de Minnie Riperton (“Lovin’ You”), na sua face mais descaradamente romântica e colorida? E ainda a tudo isto juntar os estranhos teclado e voz de David Sylvian em “Ghosts”, uma atormentada canção do já lendário Scott Walker (“The Old Man’s Back Again”) e o tom grave na hora da despedida em “My Autumn’s Done Gone” de outro monstro da música contemporânea, Lee Hazlewood?

Poucos. Muito poucos. Provavelmente os mesmos que finalizaram com a interpretação da Orquestra de Cleveland de uma composição de Ravel. Ouvindo mesmo atentamente, fica-se com a sensação que qualquer compilação dos AIR sairía inexoravelmente assim: um álbum de música não original que realmente cria um ambiente. Um álbum para os aspirantes a músicos com poder de encaixe.

Nota: 9/10

domingo, dezembro 17, 2006

Less Than Zero

Less than Zero marcou o início da carreira literária de Bret Easton Ellis, embora se tenha destacado não como o livro que antecedeu The Rules of Attraction ou American Psycho, mas como um excelente começo no seio da literatura americana.

Explorando um tema que acaba por ser recorrente nos seus livros seguintes, Ellis consegue subverter a realidade no modo como escreve: a alucinação e a paródia de sentimentos estão ao serviço da realidade alternativa que procura descrever. E consegue-o com um perfeição assustadora para o jovem de apenas dezanove anos que era.

Este livro é narrado sobre a forma de um registo semelhante a um diário ou a um caderno de anotações. Quem nos fala é Clay, um rapaz adolescente de dezoito anos que está a gozar as suas férias de Inverno em Los Angeles, depois de ter desperdiçado o semestre na sua faculdade por entre festas, sexo e droga. A casualidade destes eventos é proclamada ao longo de todo o livro, desde o início até ao banal desenrolar da acção nas mais variadas circunstâncias.

Para Clay, a sua vinda a Los Angeles concretiza-se em mais festas, em mais álcool, em mais valium, em mais cocaína e em muito mais sexo. Não consegue compreender até que ponto está ou não apaixonado por Blair, uma ex-namorada, embora mantenha relações de uma noite com rapazes bronzeados que conhece nas mais diversas festas. Não compreende até que ponto se voltou a relacionar com os seus amigos, mas fica em casa sob o efeito de dois ou três valium.

Os contactos que estabelece rumam sempre às novas doses de cocaína, aos novos dealers e a novas situações ilícitas. A crueldade com que tudo isto é descrito é imensa: não há qualquer tipo de censura quando se descreve a sub-cultura oca que é uma constante na vida de Clay e dos seus amigos. Para ele, nada do que possa testemunhar nas imensas mansões ou locais frequentados pela classe alta a que pertence o sensibilizam.

Tudo prossegue, tudo se arrasta até ao ponto em que o leitor já se contorce com o mundo que o narrador lhe apresenta. E até ao dia em que este contacta com feridas muito escondidas, com as realidades novas dos seus antigos amigos: vê-se, então, forçado a admitir a sua fragilidade, e a história prossegue assim, oscilando entre comprimidos, tonturas e a incapacidade de fugir através da alienação química. O que prova a fragilidade do consumidor de drogas, do jovem rico, da aparente superficialidade orientada por convenções igualmente superficiais.

Talvez se possa dizer que a pouca consistência da história é um trunfo fulcral no que diz respeito à tenacidade e ao efeito de caos que se sente ao ler as páginas deste livro, uma vez que Ellis afasta por completo as teorias que, segundo se pensa, orientam o nosso comportamento. E isto é efectivamente um ponto positivo: a linha mestra deste livro é a narração sem escrúpulos do crescimento e da passagem à idade adulta no seio de uma cultura de dólares perfeitamente estagnada.

Como última referência, o título não podia ser mais apropriado e a remete o leitor à conhecida música de Elvis Costello, muitas vezes abordada no decorrer da narrativa. Em suma, temos nas mãos uma excelente estreia para Bret Easton Ellis e um marco surpreendente na literatura americana do século XX.


Título: Less Than Zero

Autor: Bret Easton Ellis

Prateleira #8 - The Clash (UK)


The Clash é a versão britânica do álbum de estreia da banda homónima britânica, considerada uma das precursoras do movimento punk no Reino Unido. No final dos anos setenta, o Reino Unido testemunhava a revolução musical que distinguiria bandas internacionalmente e criaria um estilo diferente do que tinha sido feito até então. No entanto, os The Clash conseguiram fazer a sua música onde tantos tentaram e apenas conseguiram vaguear em torno de um cliché.

A banda foi formada depois de Joe Strummer ter largado os The 101’ers e ser ter juntado a Mick Jones e a Paul Simonon no grupo que seria chamado de The Clash. Pouco depois, juntou-se-lhes o baterista Terry Chimes, peça que impulsionou alguns concertos sem grande expressão junto do público. As editoras discográficas finalmente descobriram o potencial da banda e os The Clash assinaram um contracto de cem mil libras com a CBS. Este acto causou discórdia entre os britânicos, que chegaram mesmo a proclamar a morte do punk depois da efeméride. A situação acalmou e, depois do famoso The Anarchy Tour de 1977 (com bandas como Sex Pistols, Johnny Tunders & The Heatbreakers e os The Damned) o que restava do dinheiro do contracto serviu para a gravação deste disco.

Nesta altura, já os The Clash contavam com Nicky "Topper" Headon como baterista que, apesar de se ter tornado o baterista definitivo, não participou aquando da gravação deste disco. O álbum foi lançado em Abril de 1977 e vendeu mais de cem mil cópias, um valor não muito elevado dada a qualidade do som, que apenas agradou os ouvintes de punk já habituados a técnicos de som sem experiência. Dois anos mais tarde, o álbum foi lançado nos Estados Unidos com um som melhorado, algumas faixas diferentes e um alinhamento modificado.

Assim, neste disco, temos Joe Strummer como vocalista e na guitarra, Mick Jones na primeira guitarra e com alguma voz, Paul Simonon no baixo e Terry Chimes a.k.a. "Tory Crimes" na bateria.

O ritmo simples de Janie Jones é um bom início para o CD, não só por ter ficado conhecido como um clássico da banda e um clássico do punk, mas também porque elucida os ouvintes acerca do conteúdo musical que se expõe ao longo do disco. A faixa seguinte é Remote Control, onde ouvimos a combinação da diferença de duas vozes únicas: a de Mick Jones e a de Joe Strummer. É uma faixa um pouco mais lenta, que resulta muito de uma sucessão decrescente de acordes aliada a uma percussão característica. Sem deixar de incentivar a energia

I’m so bored with the USA acabou por se tornar um mito, fenómeno explicado pela divertida guitarra que não excede um tempo definido nem se torna demasiado sobrelevada. O baixo mantém a sua linha fiel e sem grandes alterações, destacando o refrão em coro: I’m so bored of the USA. A faixa seguinte é White Riot, popularizada depois do cover dos Anti-Flag. A versão presente neste disco é uma versão diferente da escutada na versão americana deste CD, sendo bastante melhor. Esta é música mais rápida do álbum, o que, juntamente com a sua pouca duração, contribuiu para a sua conversão num ícone do punk britânico. Deve o seu título às rebeliões conhecidas por Notting Hill Carnival Riots, tema inspirador para Joe. A versão americana acrescenta algumas sirenes e uma profusão menos legível da linha melódica da guitarra.

Hate & War é mais um colosso na música punk e na carreira da banda. Destaque para as letras provocadoras, à boa maneira punk, que funcionam como crítica social. O refrão final é um excelente exercício fruto do cruzar das vozes de Mick e Joe. What’s my Name consegue ser um pouco aborrecida e apresentar um refrão monótono. É a única música do álbum atribuída a um ex-guitarrista da banda, Keith Levine, e a única que não está ao nível do resto do álbum.

Eis que chega Deny, uma faixa exclusively British. A guitarra aproxima-se de uma vertente mais sombria, unida à voz de Joe a cantar uma letra mais violenta e menos humorística. A faixa está muito bem conseguida, enquadrando perfeitamente o refrão com as notas dedilhadas na guitarra e com a letra, se bem que, mesmo com o acrescentar de alguns pormenores muito bem musicados, Deny peque também um pouco pela repetição.

London’s Burning representa um auge deste CD, sendo bastante rápida, com uma letra que nos fala de Londres e da realidade com que os fãs punk tomavam contacto todos os dias. Já para não falar do soberbo solo de guitarra de Mick Jones, contributo mais do que essencial para tornar esta faixa uma das melhores músicas punk escritas até hoje. E, do mesmo modo que London’s Burning se apresenta enquanto um clássico, Career Opportunities também se consegue distinguir nesta esfera musical por aceder ao mundo do desemprego numa letra irónica aliada a uma guitarra simples e a uma melodia fácil.

Cheat, a música seguinte, bebe sobretudo dos The Ramones no refrão, apesar de conseguir uma oscilação rítmica muito interessante, um solo de guitarra fantástico e alguns efeitos colaterais muito atraentes. Foi deixada de parte na versão americana por se destacar do resto do álbum, apesar de ser uma excelente música punk. Retomam-se depois os ritmos muito rápidos com Protex Blue, um lugar de destaque para todas características indissociáveis da banda, tal como o humor, a rapidez com que se canta e se toca, e a energia que se transmite.

Provavelmente a faixa mais curiosa deste disco seja Police & Thieves, uma música quase experimental que mostra o contacto dos The Clash com o reggae. E é fantástico o modo como, em pouco mais de seis minutos, conseguem articular o punk com o reggae de um modo tão perfeito, seja pelo intercalar das vozes de fundo com a guitarra, seja pela percussão mais jamaicana. Contudo, o destaque é, sem dúvida, a linha do baixo, absolutamente fundamental para o resultado final que é uma faixa muito rica em referências e muito rica no que toca a uma articulação fabulosa entre dois universos que caminhariam paralelamente nos anos seguintes.

48 Hours mostra-se demasiado curta (a mais curta do álbum), mas enquadra-se no apetite auditivo: uma guitarra típica, um refrão em coro, uma letra interessante. Acaba por ser um prefácio para o grande final deste CD: Garageland. Garageland tem a melhor letra deste álbum e é uma das melhores letras dos The Clash. O título foi inspirado numa crítica muito frequente nos concursos televisivos: o júri costumava dizer às bandas que deviam ter ficado na garagem. Porém, esta faixa consegue ser diferente do resto do disco e agradecemos aos The Clash por não terem ficado na garagem. Mostram-se novas maneiras de abordar o que podia perfeitamente estar muito usado ou muito tido em conta, isto sem se andar muito longe da qualidade do resto do disco. "I don't wanna hear about what the rich are doing/ I don't wanna go to where the rich are going/ They think they're so clever; they think they're so right/ But the truth is only known by guttersnipes."

De um modo geral, The Clash (UK) foi um excelente álbum de estreia e uma óptima rampa de lançamento para a esta banda e para muitas outras que começavam a gravar e a tocar. Para além de ser um disco clássico para os amantes de punk, este álbum representou uma era, uma mentalidade. Atingiu níveis de crítica muito inteligentes à sociedade e à política, conseguiu ter sentido de humor, abraçou uma realidade alternativa. Sem dúvida um percursor de grandes novidades, sem dúvida uma amostra do best of the British.


Título: The Clash (UK)

Artista/Compositor: The Clash

Ano: 1977

sábado, dezembro 16, 2006

The Anatomy School

«He found his bed and climbed into it. Getting settled made the bed creak and twang. If that went for too long guys would accuse him of all sorts of things. One thing really. Brennan's pulling his plonker. He kept his hands well away from it. They smelled of lemon.»

Quando Bernard MacLaverty escreveu The Anatomy School, sabia que tinha conseguido qualquer coisa de diferente dos seus outros livros. O autor, já nomeado para o Booker Prize, arrancara à feroz crítica do Reino Unido classificações muito satisfatórias. Porém, talvez seja mais importante o facto de MacLaverty se ter conseguido afirmar e destacar na tão saturada literatura britânica dos dias de hoje. Quem já entrou numa livraria nas terras de Sua Majestade sabe como é ser bombardeado pelos imensos outstanding books e books of the year que ofuscam as prateleiras. No entanto, The Anatomy School consegue ser muito mais do que isso.

MacLaverty conta a história de Martin Brennan, um adolescente preso na fase mais dura da sua vida, atravessando um período particularmente problemático: Belfast no final dos anos sessenta. Talvez tenha sido a inocência desmistificada que tornou este livro tão emblemático, contudo, começamos por seguir Martin neste período da sua vida e somos, de imediato, o seu melhor amigo. A aprendizagem da vida contorce o seu pensamento: pergunta, pergunta, pergunta… e torna a perguntar. As respostas estão diante dos seus olhos, assim como está o valor das coisas, o pensamento cruzado com a informação que lhe é impingida no colégio católico. E, confrontado com dúvidas sobre sexo, obcecado pela consumação da carne, pela derradeira desmistificação da sua virgindade, Brennan lá consegue ter tempo para o que é verdadeiramente crucial para a sua mãe: passar nos exames finais… a qualquer custo.

Martin Brennan tenta atravessar, então, este rito de passagem fulcral. É imperativo que consiga passar nos seus exames, uma vez que esta é a segunda vez que está a fazer o último ano. A bolsa que lhe fora oferecida caducou aquando da sua reprovação, pelo que a sua mãe, uma viúva trabalhadora de uma classe indefinida no contexto social dos anos sessenta, o pressiona bastante. A culpa e o medo do fracasso são duas constantes nos dias de Brennan. Quase tão constantes como a confusão sexual que lhe assombra o espírito à medida que se envolve em duas curiosas amizades: com Kavanagh, o jovem desportista e experimentado que Martin idealiza e deseja ser; e com o perturbador e revolucionário Blaise, cuja intelectualidade plena de carácter é muitas vezes incompreendida.

Deste modo, deparam-se inquietações, desafios à autoridade e à religião. Blaise incita os amigos a questionarem o dogmatismo religioso e a ordem que o colégio empreende. Kavanagh aponta o dedo à personalidade dos padres, às suas falhas, à sua vertente mais humana por detrás de batinas e rosários. Aqui, McLaverty confronta o leitor com a realidade dos anos sessenta, com a abertura de espírito que se distorce noutro tipo de incertezas, do mesmo modo em que se fala de um alvorecer científico, de uma tentativa de criar fórmulas para sentimentos, de uma expressão fingida de políticas muito reais e concretas.

Do abstracto surge o concreto no modo como se concretizam as perguntas destes três rapazes. A adolescência incita as questões a tomarem forma e as amizades encarregam-se de oferecer uma resposta mais ou menos vaga: trocam a Religião pela Ciência, procuram compreender a Arte, a História, o mundo que parece tão perto e tão cinzento. Fica ainda o turbilhão sobre-explorado das suas mentes inquietas: o que é o sexo e a pornografia? Onde está essa coisa chamada de alma? Deverá Martin ser padre? Como é que as mulheres sentem prazer?

Intercalando o sagrado com o profano das amizades, McLaverty narra a história com mestria, num estilo duro, pleno da ansiedade de quem faz tudo às escondidas ou pela primeira vez. Sejam os cigarros fumados junto às casas de banho ou os pensamentos que deambulam muito por cima do discurso despótico dos padres do colégio. Insurge-se sempre a dúvida neste romance plenamente masculino, perfeitamente orientado para a decadência da virilidade, para a transformação de rapazinhos em homens e para toda a parafrenália de implicações que isso possa ter. As personagens femininas acabam por ser um símbolo, quer para os rapazes, quer para a sociedade.

Em determinados momentos, o autor congela o diálogo e pára a acção para nos darmos conta de como o fenómeno da aprendizagem é bizarro e assustador. Isto acontece do mesmo modo em que procura o humor nas noites de sanduíches organizadas pela mãe de Martin para um padre e algumas amigas. O jovem ouve a tentativa de explicação da realidade, a busca pela compreensão da existência e a veracidade que não existe nos afectos. E pensa, maquina e irrita o seu raciocínio, longe das conversas em que a sua mãe se orgulha de ter um filho que "não fuma" e que não tem qualquer "interesse pelo sexo".

O curso da vida de Martin não é linear, mas estamos com ele. Seguimo-lo ao longo do seu difícil e tortuoso percurso, num livro sério mas cheio de sentido de humor e perspicácia. Porque é bom sentir que se faz qualquer coisa, ainda que qualquer coisa de errado. Porque é bom saber que se existe. E porquê.

« 'Thanks be to God. There seems to be nothing but girls to distract you down at the library. Do you ever say the prayer I gave you?'
'Yeah.' »


Título: The Anatomy School

Autor: Bernard MacLaverty

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Ligação Directa

“Quando uma rádio como a RFM se queixa que passaria mais música portuguesa se ela tivesse qualidade e depois não passa nem a mim nem a outros, fico um bocado perplexo, no mínimo. No mínimo.”
Sérgio Godinho em Blitz

Sérgio Godinho já tinha provado que é perfeitamente capaz de se recriar. De baralhar e voltar a dar. Foi o que fez com O Irmão do Meio de 2003. Aí, com ajuda dos amigos, propunha novas abordagens para alguns dos grandes clássicos da sua carreira. Agora, com Ligação Directa, propõe nova abordagem à carreira de sempre. Com músicas novas.

Álbum de originais seguinte a Lupa, de 2000, Ligação Directa não surpreende ninguém. Vamos então tentar perceber se isto é bom ou mau. Sem arriscar, Sérgio Godinho faz o que já se esperava, mais um bom disco. O problema é que com ele é que isso não é novidade. Fica mais um bom registo para a sua já grande, quantitativa e qualitativamente, discografia. Perde-se uma oportunidade de algo realmente original.

Não é fácil criar algo de drasticamente novo quando se está quase a fazer 40 anos de carreira. Mas de Sérgio Godinho espera-se tudo. Contudo, a questão aqui pode também ser, para quê algo de novo, se o que temos é bom? Confere. Ligação Directa não espanta ninguém, mas também não desaponta. Quem dera poder dizer isto de mais músicos.

Ligação Directa abre em doze dupla sobre tema repisado mas, aparentemente, sempre bem-vindo. “A Deusa do Amor” e “Ás vezes o Amor” são boa abertura, com a segunda em claro destaque, single descarado e chapa três. Despachado que está o tema do Amor neste empacotamento duplo, seguimos com “Marcha Centopeia” que, musicalmente, mostra o melhor de Godinho. Como em “O Carteiro”, por exemplo, a recriação de sons populares com ritmo de fundo a pedir um pé a marcar ritmo é a sua especialidade.

“Não há duas como ela” faz lembrar o Palma de “Tempo dos Assassinos” e “O Velho Samurai” é o Sérgio Godinho de antigamente. Para o bem e para o mal. Mas mais para o bem, convenhamos. Muito mais para o bem é “O Rei do Zum-Zum”, uma das melhores, senão mesmo a melhor, música do álbum. Sátira social e harmonia melódica com o jogo de palavras que só mesmo Godinho consegue, numa daquelas letras que se tornam paradigma da boa escrita musical portuguesa. Ligação directa para a galeria dos obrigatórios.

Bem agradável é também “No Circo Monteiro nunca chove” à qual se segue “O Às da Negação”, com forte peso de uma melódica e quase militar bateria. “O Big-One da Verdade” é a única música que não é de sua autoria, pertencendo a Hélder Gonçalves. Para terminar, em competição directa com “O Rei do Zum-Zum”, “Só neste País”, música a fazer lembrar “Que força é essa?“. Coros ciciados em tom de boato popular são alguns dos bons pormenores que ajudam a compor mais uma boa música deste bom álbum.

Bom é mesmo o pior que se pode dizer de Ligação Directa. Mas se calhar arriscar mais talvez desse em algo muito bom. Talvez não. Deixemo-nos, por enquanto, levar por este pragmatismo. Não deslumbra, mas agrada.
Título: Ligação Directa
Autor: Sérgio Godinho
Nota: 7/10

terça-feira, dezembro 12, 2006

Rewind #3 - O Vale era Verde

“Men like my father cannot die. They are with me still, real in memory as they were in flesh, loving and beloved forever. How green was my valley then.”

A metáfora por excelência. O cinema pode ser poesia. O Vale era Verde é a prova disto mesmo. Realizado por John Ford apartir de um romance original de Richard Llewelyn, conta a história de uma família de mineiros do País de Gales no princípio do século vinte. É através de uma auto-biografia retrospectiva de Huw Morgan, 60 anos depois, que conhecemos os membros da família, as suas desventuras e emoções e, paralelamente, a vida do vale onde se inserem, das suas gentes e preocupações.

O Vale era Verde é essencialmente um filme metafórico. Na passagem para um novo século, a presença da realidade mineira na vila apresenta-se como uma faca de dois gumes. Sustenta-a e polui-a. Sustenta o vale, na medida em que é a principal, senão o única, fonte de rendimentos para toda aquela população. Será esta dependência que estará na origem do descalabro que se abaterá sobre o vale com a escassez de empregos e o surgir de mão-de-obra mais rentável.

Polui o vale, em todos os sentidos possíveis. No sentido mais literal, desaparecerá o verde encantador da infância de Huw, substituído gradualmente pelo industrial cinzento. Este cinzento que ofusca a frescura da natureza não é mais que a alegoria da alma de cada um destes habitantes galeses. Elucidativas as imagens iniciais em que o Vale se dirige como um todo, ao som de cânticos tribais, para as minas. Não tão subtilmente quanto isso, um cinzento interior abater-se-á sobre todo este mundo rural. Intrigas e suspeitas, contestações e sindicalismos, desemprego e fome, muitas serão as provações a que este povo tipicamente trabalhador se terá de sujeitar.

Não há qualquer tipo de vitimização nesta película. O clã Morgan, um paradigma do seu povo, é trabalhador. Rural, honesto e temente a Deus, como todos, é uma família sofredora mas intransigente na defesa do trabalho como valor fundamental. Este cinzento que se abate sobre todos, pousará a sua mão também sobre os Morgan. Doença, infelicidade, necessidade de emigração e morte são algumas das consequências que o Vale traz ao clã de Huw.

O Vale era Verde é, para além desta grande e elaborada metáfora, um excelente filme de época. Não tanto fisicamente. Há o vestuário, a paisagem, a caracterização das personagens, os vastos pormenores da casa dos Morgan. Há tudo isto. Mas o que mais impressiona é a coerência psicológica, para o bem e para o mal, de um povo cuja verdade é o trabalho. As virtudes e as teimosias irracionais de um meio rural, pouco dado a literacias. O trabalho, a religião e a virtude como contraponto da educação intelectual e da podridão social. Os únicos apoiantes da educação de Huw seriam Mr. Gruffydd e o próprio pai de Huw, dono de uma visão estratégica e sentido de dever atrozes.

Este pai, chefe do clã Morgan e uma das referências do Vale, é Donald Crisp, vencedor do Óscar de Melhor Actor Secundário com O Vale era Verde. O Filme arrecadaria ainda a estatueta para outras quatro categorias, nas quais se incluem Melhor Realizador e, obviamente, Melhor Fotografia. Para além destes 5 oscares, estava nomeado para outros tantos e receberia ainda o prémio de Melhor Filme Estrangeiro pela Associação de Críticos Argentinos e de Melhor Realizador pela Associação de Críticos de Nova Iorque.

O Vale era Verde é um filme invulgarmente belo. Belo no sentido fotográfico do termo e belo no sentido mais humano que poderá ter. Uma metáfora da confrontação de um mundo mais virgem e conservado com uma realidade à qual não há fuga possível. Maria do Rosário Pedreira escreveu: “Tudo o que vem de ti é um poema”. Ninguém descreveria melhor este filme.

Título: O Vale era Verde
Realizador: John Ford
Elenco: Roddy McDowall, Donald Crisp, Walter Pidgeon, Maureen O’Hara, Anna Lee, Sara Allgood, John Loder e Patric Knowles.
E.U.A., 1941

Nota: 10/10

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Noise Floor (rarities: 1998-2005) - Bright Eyes


Os independentes Bright Eyes chegam agora com Noise Floor, uma compilação de raridades musicais, de algumas ideias acidentais que tomaram lugar entre 1998 e 2005. Não é a primeira vez que a banda de Conor Oberst opta por um formato de compilação, embora acentue que não se trata de um best-of, mas sim de um disco cheio de peculiaridades, à sua única e boa maneira.

Neste CD, escutamos os temas de sempre, com a voz de sempre, embora com algumas pequenas e deliciosas variações. Estas mudanças tão características podem seguramente afastar muitos ouvintes, embora atraiam os fãs para o universo alienado e febril musicado por Conor Oberst e seguidores. Abre com Mirrors and Fevers, uma colagem de confusão e ruído, seguida de um pequeno trecho a cappella. Aqui residem algumas gravações de um tour que a banda efectuou pela Europa, assim como um pedaço do álbum homónimo de 2000. Funciona como prólogo para um processo de uma confusa letargia.

Segue-se-lhe I Will Be Grateful For This Day, a primeira música mais electrónica composta pela banda: a voz quase negligente de Oberst molda-se nos contornos harmónicos espelhados no órgão e na percussão lenta. Narra mais um universo inerente à própria natureza da banda, cheia de letras perturbadoras, uma linguagem nua e com palavras de espontaneidade.

Trees Get Wheeled Away evoca mais o folk íntimo, presente na melodia simples e convidativa. As guitarras acústicas remetem para um cenário mais idílico, embora a letra rasgue frases de grande ironia e provocação. “There’s a virgin in my bed / And she’s taking off her dress (…)” Conta mais uma história deprimente na crueza das palavras não premeditadas, sob uma melodia bonita e numa tonalidade oscilante entre o maior e o menor.

O piano volta em Drunk Kid Catholic, mostrando que os Bright Eyes conseguem afastar quem não abraça a realidade ilusória que a banda nos propõe. Tudo gira em torno de um sentimento que é mastigado, dissecado em partes distintas, completamente exposto sobre uma música bem conseguida. À semelhança desta faixa, temos presente também Spent on Rainy Days, com um ritmo mais rápido, em contornos mais rock, manifestando sempre uma intensa marginalidade. A percussão procura atingir as guitarras eléctricas, perseguindo as palavras fugidias. Esta é uma das muitas faixas gravadas em caves, garagens, salas vazias, por entre cinzeiros cheios e guitarras amontoadas… o que lhes confere uma certa rebeldia ainda mais acentuada neste álbum.

A faixa seguinte apresenta-se como a mais acidental de todas. Gravada no início da carreira da banda, The Vanishing Act é um aparente e dissonante improviso sobre o piano, alimentado por acordes ininterruptamente sacudidos na guitarra. A voz de Conor Oberst confunde-se com uma matiz irreversível, fundindo-se na voz feminina que se lhe junta. A música corre, a letra arranha. E acaba.

Soon You Will be Leaving Your Man é um molde clássico na própria ironia do termo. O desafio dos Bright Eyes ecoa na cinzenta melodia cantada, na modulação perfeita dos acordes, na calma e ligeireza com que se esboça a infidelidade e o amor semi-verdadeiro. O mérito consiste na aproximação da beleza face ao grotesco, à fantasia doentia das alucinações. Do mesmo modo que se adequa uma percussão fora do comum, quase imperceptível, escondida por entre as notas no piano. No final, há uma pequena amostra de ruído e vozes que substituem a melodia cantada por instantes. Assim funcionam também Motion Sickness, cantada com ligeireza, com um dedilhado na guitarra e um órgão quase coral no refrão; e Amy in the White Coat na voz triste e nostálgica de Oberst sobre um suave ruído incessante.

Com mais algumas faixas dignas do melhor conseguido pela banda, apresentam-se Weather Reports, Seashell Tale e Bad Blood. A música nunca pesa pela intensidade e não peca por ausências: o cru manifesta-se nas letras, no modo como rastejam, no modo como nos introduzem ao sublime do mundano e ao mundano do sublime. O seu magnetismo encontra uma expressão na figura da mulher, em copos de vinho, em comprimidos, na náusea, no desespero, na nudez, na ausência. O alternativo encaixa-se no modo de pensar e fazer música na medida em que, sarcasticamente, se apresenta desadequado e desinibido. Ouve-se “The drunk kids, the catholics / They’re all about the same / They’re waiting for something, hoping to be saved”.

O contacto entre o que é descrito torna-se de tal modo poderoso que a música parece quase insuportável. A angústia plúmbea não se desvanece nunca ao longo das dezasseis faixas deste disco. Porque, na verdade, este mundo não é fácil... e tão-pouco é a abordagem dos Bright Eyes: lida-se com a perda, com o falso, com o aparente, com o lugar-comum, com a superficialidade do quotidiano. Treme-se. Toca-se o que não é real e o que é meramente aparente.


I just keep drinking the poison

And smoking the cartons

A pack and a half a day

So when time comes to claim me

My friends and my family will gather around my grave

And they’ll believe that they knew me

And love me and miss me

And all call by my name.



Título: Noise Floor (rarities: 1998-2005)

Artista/Compositor: Bright Eyes

Ano: 2006

domingo, dezembro 10, 2006

Lunário

“As bocas pousam da nudez uns dos outros. Enche-se de alegria a minha treva. E tudo dividimos: o pão e a noite, a pobreza, os corpos e a desolação.
O dia volta pelas frinchas das tábuas, passa igual a outros dias. Pelas vozes que despertam, pelos fios de suporte suspensos, pelo movimento langoroso dos corpos – reconheço todos aqueles rostos que enfrentaram o cruel dia.”


Vem confundido com a vida de Al Berto, este Lunário que ele nos oferece. Desde Sines a esta afirmação despudorada de uma sexualidade que não pretende chocar, mas antes ser natural. Uma metáfora da sua escrita. Mistura entre Prosa e Poesia, os limites dos dois conceitos desfazem-se neste escritor que constrói o seu mundo, que é a sua noite, à volta da palavra.

Esta inexactidão do limite bem definido entre Prosa e Poesia não se limita à escrita propriamente dita de Al Berto. Espraiada, rica, plena de vocábulos eminentemente oníricos, será o seu paradigma, mas para além desta, há as repercussões na forma deste romance. Lunário é tanto um livro de poemas quanto nos transporta para uma noite de beleza de palavras e construções. Só mais tarde aparece uma narrativa, o quotidiano de Beno, o pretexto para este elaborado juntar de sons.

É talvez por isso que o livro segue a vida de Beno e dos que o rodeiam. Como um diário escrito na terceira pessoa. Beno, Kid, Nému, Alba e Zohía são as personagens que vão desenrolando uma acção de carácter moderno e modernista. O choque com o estabelecido não se dá por contraposição. Este mundo das regras sociais a que estamos acostumados simplesmente não existe. Existe sim o mundo de Beno. Amor, drogas e poesia. Ou, numa palavra, melancolia.

Caem ainda sobre este livro as palavras de ser, acima de tudo, um livro homossexual. Lunário, acima de tudo, não é um livro homossexual. É um livro de pulsões e paixões. A homossexualidade é só os moldes em que tal nos é expresso. Uma história de amor em que o amor é tudo menos o nosso conceito prêt-à-porter de sociedade ocidental homofóbica e monogâmica.

Dividido em sete partes (Crepúsculo, Lua Nova, Quarto Crescente, Lua Cheia, Quarto Minguante, Umbria e Cântico), Lunário é um livro pouco usual na literatura portuguesa. Subversivo mas com naturalidade. Exótico no sentido mais urbano e quotidiano da palavra. Um Romance em jeito de conjunto de poemas sobre as relações humanas. Uma das melhores obras de Al Berto, metáfora autobiográfica condensante da sua obra.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Vivo #2 - Cat Power no Festival Radar (Aula Magna)


As expressões artísticas não têm consciência de si. Quer sejam construídas pelo homem ou compreendidas na sua total substância mas não dele emanadas, parecem depender do desempenho do criador ou intérprete caso surjam inesperadamente medíocres. Há no entanto certas especificidades que distinguem algumas expressões artísticas de outras. No cinema, após a estreia de uma fita ela comportar-se-á seguindo a mesma linearidade, evitando qualquer flutuação (excepto os casos em que se procedeu a uma reedição futura, por vezes com tratamento tecnológico); na generalidade das artes plásticas não é pedido ao artista que exiba a sua mestria em tempo real, pelo que a obra final resultará imutável, se correctamente protegida; as obras literárias congelam na forma assim que o autor ou editor as divulgam, sobrando apenas espaço para não mais que meros adornos ou aguçadores do apetite; as artes dramáticas, no entanto, sobrevivem da proclamação estética concluída somente no cair do pano e vivem no (e do) medo permanente do erro e do fracasso; a música, do modo que se nos apresenta hoje em dia, evolui em dois tabuleiros quase autónomos cujas regras fundamentais divergem. Torna-se claro que, tal como a apresentação ao vivo advém da gravação, também a representação teatral brota do texto dramático e a película do argumento. Não obstante, em nenhum destes casos (nem, diga-se, na maioria dos outros) há tamanha adequação entre o resultado final do objecto artístico enquanto obra estabilizada e a exibição do mesmo a uma audiência como na vertente musical. Porque o que releva quer do álbum, quer do concerto é, afinal, a música.

Adiante: as experiências artísticas não têm consciência de si nem dos outros. São antes estados prévios que dispensam qualquer tipo de pudor ou compaixão, mesmo quando os outros são quem lhes deu forma. São filhos a quem não devemos educar na esperança de uma consideração recíproca. Essa separação é um dos requisitos para a autonomia da expressão artística e, consequentemente, fonte de força da arte como um todo.

Pondo de parte o meu altruísmo artístico, mandando às urtigas tudo o que disse, permanece em mim o mesmo sabor agridoce que se instalou à saída da Aula Magna. A norte-americana, em estúdio, é uma pérola. Álbuns como Moon Pix, You Are Free e o recente The Greatest colocaram-na no trilho de outras grandes figuras femininas da canção. Esperava-se, na segunda visita a Portugal, que Chan Marshall se redimisse do desastroso concerto em Matosinhos, em 2004, mostrando estar finalmente num estado minimamente controlado (pessoas como ela não se desejam excessivamente domesticadas) que permitisse aos portugueses ouvir aquela belíssima voz marcada pelas vicissitudes da vida, a terna melancolia inscrita nas letras das músicas e nas composições a habitar os terrenos do rock, blues e folk.

Quem lá foi ansiava por essa grandeza para a qual o último álbum avisa, esperando deleitar-se com a sublimação das suas capacidadas, isto é, com o fim das mudanças súbitas de humor, os desvarios súbitos e as crises emocionais ou hormonais. Um concerto com canções tocadas do princípio ao fim, com Cat Power acompanhada pela banda e com Cat Power a solo, à guitarra ou ao piano. Assim ela planeou e fez, sendo acompanhada pela super-banda (e superlativizada) The Dirty Delta Blues Banda, ao longo de cerca de uma hora. Extremamente descontraída, pareceu flutuar durante as canções, dançou, cantou, acenou, apresentou timidamente as suas desculpas em relação ao sucedido no primeiro concerto, descalçou os seus sapatos portugueses e foi agraciada com uma longa ovação, ao que ela respondeu rompendo pelo meio do público distribuindo setlists pelos felizardos.

Tendo feito quase tudo bem, não deixa de ser intrigante sentir que, no fim de contas, quase nada resultou ao nível do que se gravou em estúdio. Apesar de alguns momentos bem conseguidos, como o belíssimo cover de “Satisfaction” e as mais intimistas “I Don’t Blame You” e “Where Is The Love”, apesar de se ter atravessado diversos álbuns (com maior ênfase para o último) para gáudio dos fãs mais indefectíveis, apesar de ressuscitar certa parte do legado musical norte-americano (Bill Callahan paira em muitas das músicas de Chan Marshall), o concerto desenrolou-se sob arreliantes condições técnicas – um zumbido estático corrompeu a qualidade do som ao longo de toda a actuação, o baixo e a bateria pareciam asfixiados, deram-se grandes oscilações do volume sonoro e até se aturou uma reverberação amadora aqui e ali.

Com tudo isto, ficou claro que público presente era de tal maneira admirador das virtudes de Cat Power que se esqueceu de ser exigente, oferecendo uma ovação bajulatória no término do concerto. E se a audiência que lotou a Aula Magna tinha como desejo único, como ânsia suprema, poder vê-la chegar ao fim das canções, então chegou certamente agradado a casa, pese embora o facto de que a mulher, aparentemente sóbria, tem por certo um temperamento peculiar, visível quando interrompeu uma das canções sob o infantil pretexto de haver percebido a sua própria falta de talento através de um ataque de tosse de uma senhora do público.

Foi, em suma, uma pálida amostra do que Cat Power é, – uma “cantautora” cujas canções reflectem uma estranha e frágil mistura de beleza, melancolia, depressão e distúrbios emocionais – numa noite em que a manifestação artística, sem dó nem piedade, não quis cristalizar a obra presa nos álbuns.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Voz Própria #2 - Diogo Infante

Diogo Infante (foto João Silveira Ramos)
Quando decidimos criar esta rubrica, em que procuraríamos desafiar artistas a expor as suas experiências, um nome assaltou-me repetinamente o pensamento: Diogo Infante. Pelo sucesso da carreira de actor e agora como Director Artístico do Teatro Municipal Maria Matos.
Para a realização desta entrevista contámos com a preciosa ajuda de Helena Mascarenhas (Directora de Comunicação do Teatro Maria Marios) e, obviamente, com a disponibilidade de Diogo Infante.
Com mais de 15 anos de carreira é de consenso geral que é um excelente actor. Quais foram as suas preocupações ao desenhar esta carreira? Houve registos que procurou mais ou alguns que evitou?
Nunca delineei uma estratégia em termos de carreira. Tinha, e tenho, uma profunda paixão pela arte de representar e queria aprender o máximo que pudesse, estava ávido de experimentar desafios novos, que me permitissem crescer como actor e testar as minhas capacidades. Sabia que estava limitado pelo simples facto de viver num país pequeno com uma mercado de trabalho limitado. Nunca me impus um estilo ou registo, desde a comédia, à tragédia, ao drama realista ou ao teatro do absurdo, sempre achei que devia passar pelos vários estilos, sempre ambicionei ser polivalente. Mais do que num estilo ou género, revejo-me numa atitude séria e profissional de estar na profissão, numa busca permanente de encontrar formas interessantes de comunicar com o público, impondo-me sempre níveis de exigência muito altos, nem sempre atingíveis. Sou duro comigo, e procuro nunca me deslumbrar pelo sucesso.
Hoje com as inúmeras telenovelas e série infantis, vemos muitos jovens a tentarem a carreira de actor. Alguns conseguem vingar sem o Curso de Teatro do Ensino Superior. Ainda assim, há bastantes vozes críticas perante esta nova procura de actores para consumo imediato. Para o Diogo, que seguiu a carreira pelo conservatório, qual a importância deste na formação de um actor? Torna-se indispensável para um actor profissional a experiência e maturação desse trajecto?
È sempre perigoso generalizar, mas acredito que uma formação adequada é meio caminho para atingir um determinado nível técnico, que permita a um jovem actor ter uma maior e mais eficaz capacidade de resposta, às várias solicitações profissionais a que estamos sujeitos. O tempo de formação dá-nos igualmente um maior auto conhecimento, das nossas capacidades e limitações e esse conhecimento é fundamental na gestão emocional que temos necessariamente de fazer, no confronto com as várias personagens que vamos interpretando.
Foquemo-nos novamente na sua carreira. Já fez Teatro, Cinema e Televisão. Como é que se consegue moldar às exigências de cada estilo e em qual se sente mais à vontade?
È necessário reconhecer a linguagem que esta a ser utilizada, evitando cair em ideias demasiado pré concebidas. No essencial, somos uma matéria moldável que visa servir um projecto mais global, seja ele teatro, cinema ou televisão. Em cada uma destas áreas, há especificidades que vamos incorporando até se tornar algo natural mas a base é sempre a mesma, a representação! Pessoalmente sinto-me mais á vontade, ou melhor, tenho mais prazer, no teatro, pelo desafio que sempre implica o confronto com o público.
E agora surge um cargo directivo, Director Artístico do Teatro Municipal Maria Matos. O que é que falta ao Diogo Infante, enquanto profissional, para se sentir realizado? Há algo a atingir para além disto?
Há sempre novos desafios. Á medida que vamos avançando na idade colocam-se novas etapas, novas personagens e novas dimensões. Pessoalmente ainda ambiciono realizar um filme.
O êxito como director artístico é neste momento o que nos fascina mais. Peças como Laramie e The Pillow Man foram um sucesso na medida em que, nos primeiros dias dos espectáculos a sala estava pouco preenchida e nos finais, pelo passa-a-palavra, praticamente enchia. O que é que pesa na escolha dum espectáculo? Há um fio condutor na escolha de peças para o Maria Matos? Como se apercebeu que mais cedo ou mais tarde estas peças teriam sucesso?
Há sobretudo a consciência da necessidade de investir em textos contemporâneos, que reflictam realidades com as quais os públicos possam mais facilmente se identificar.
Acredito que é forçoso desmistificar o carácter, por vezes pesado e intelectual, que é atribuído ao Teatro, criando pontes e factores estimulantes que ajudem a formar públicos mais informados e com um sentido critico e estético mais apurado. Para além da qualidade, implícita na escolha, de um texto, valorizo necessariamente a equipa criativa e a sua capacidade de potenciar o texto, bem como a utilização de novas linguagens e o cruzamento das várias artes performativas, num posicionamento vanguardista, sustentado e consequente.

Depois de um primeiro ano de sucesso, quais as expectativas para 2007?
As maiores! Estamos extremamente optimistas e queremos capitalizar o facto de termos conseguido chamar sobre nós a atenção e curiosidade do público, ao dotar o Teatro Maria Matos de uma nova identidade e dinâmica cultural, que se deseja cada vez mais, uma referência na cidade. Estamos igualmente conscientes da responsabilidade de termos colocado a fasquia bastante alta, com espectáculos como "Laramie" e " The Pillowman", mas queremos continuar a trabalhar para proporcionar espectáculos de qualidade e que contribuam para uma reflexão conjunta sobre a nossa existência e a sociedade em que estamos inseridos.
Lemos que gostava de ter uma Sala Estúdio mas por motivos de investimentos tornou-se inviável. É um dossier para reabrir no futuro?
Acho difícil. Implicaria uma intervenção morosa e muito custosa. Além de que, iria neste momento descaracterizar o espaço do Teatro, bem como o trabalho que temos vindo a desenvolver.
Este é o Teatro que temos, e estamos muito contentes!

Como consequência do bom trabalho (assim o classificam crítica e público), espera ficar mais do que os três primeiros anos de contrato ou há outros projectos?
Confesso que não tenho pensado muito nesse assunto, quando chegar o momento, espero fazer uma análise do trabalho que efectuamos, juntamente com o conselho de administração da EGEAC, e decidirmos se faz ou não sentido continuar.
Para finalizar, vê-lo em cima de um palco com um marco do Teatro Nacional como é Eunice Muñoz torna-se algo imperdível. Que expectativas se têm para um desafio destes, enquanto actor e director?
Estou naturalmente muito expectante e entusiasmado. É um sonho antigo poder contracenar com a extraordinária actriz que é Eunice Munoz, e estou certo que o seu contributo para o nosso Teatro vai ser precioso e marcante.

Danielson - Ships

Existem uma série de álbuns com determinada particularidade, nada fácil para quem o compra. Ter de o ouvir, repetidamente, para daí extrair algo, pode tanto ser agradável como penoso. Scott Walker é um exemplo. Danielson, um paradigma. Não é um objecto comum o último trabalho de Daniel Smith, agora de novo sob o nome de Danielson.

Quem é, então, este americano de New Jersey? Já com cerca de uma década de trabalho, tem primado o seu trabalho pelas colaborações com a família e amigos, publicando sobre várias variantes do nome Danielson (Danielson Famile ou Tri-Danielson, a título de exemplo). Com uma forte componente religiosa na sua música, o que nem sempre é fácil, especialmente quando o público é o povo indie, tradicionalmente independente desse género de conotações, edita em Maio de 2006, Ships, o seu mais recente trabalho.

Falar de comparações com Sufjan Stevens é redundante. Não só porque este é um dos grandes marcos do género onde se insere Danielson, mas especialmente porque ele colabora desde sempre com Daniel Smith, incluindo em Ships. Aliás, apesar de regressar ao nome original, Daniel Smith, o nome por trás do alter-ego, não abdicou da participação dos amigos, onde para além de Sufjan Stevens podemos ver ainda membros dos Deerhoof e de Ladytron.

Voltando a Ships, a verdade é que este é extremamente difícil de enquadrar. Classicamente enquadrar-se-ia numa Folk-Rock bastante experimental e alternativa E, na sua essência, é o que sucede. Mas as variações são tantas que a confusão se gera. Da Pop à Folk, passando pela electrónica, ainda com um cumprimento à musica experimental de passagem. Há momentos de euforia seguidos repentinamente pelos sons mais perturbantes. Há sonoridades de alguém que rejubila entre paragens melancólicas.

São estas variações que marcam o álbum. Para o melhor e para o pior. Ships é um muito bom cd. É-o sem qualquer favor, tenha os defeitos que tiver. Mas fica a sensação que poderia ser muito melhor. Smith entrou numa onda de alterações e experiências musicais que apenas pode trazer boas consequências, mas tem de ser controlado. Ships sofre de ser um trabalho demasiado desgastante. Há tanto som neste cd que se torna difícil não o odiar ou amar. Como aliás, quase em tudo com Daniel Smith. Até na sua voz.

“Bloodbook on The Half Shell” é provavelmente a melhor música de todo o álbum. Na retina (sim, que Daniel Smith é um adepto da comunicação artística do visual com o áudio, como o comprova a excelente capa de Ships) ficam ainda “Did I Step on Your Trumpet” e “Kids pushing Kids”. Boas melodias, boas experiências e boa música. Mas apenas apartir de algumas audições e em excesso. Esperemos que Ships seja a promessa de algo maior.
Título: Ships
Autor: Danielson
Nota: 7/10

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Prateleira #7 - O Monstro Precisa de Amigos

“Chegámos ao fim da canção
E paro um pouco para dormir”

Como é óbvio, começamos pelo fim. “Chegámos ao fim da canção”, ouve-se por altura da última faixa, “Fim da Canção”. Não mentem. Esta é, de verdade, apenas uma canção. Tão somente isso. Rock, Punk, Hard-Rock, Poesia, balada, melodia, explosão, ir e voltar. Tudo isto numa canção. Que são no fundo treze, mas isso não importa. Bem-vindos a um dos melhores álbuns portugueses da década de 90.

Em 1997, Cão já deixava antever uma inovação acima do normal, mas quem seria capaz de adivinhar que o diamante se poliria tão rapidamente? É fácil, dirão agora. Bastava ouvir “A Dama do Sinal”, “Bigamia” ou “Mata-me Outra Vez”. E têm razão. Estava tudo lá.

Chegou então o ano da graça de 1999. Bendito seja. Este é também o ano em que colaboram com uma versão de “Circo de Feras” para o cd XX Anos XX Bandas, tributo aos Xutos&Pontapés. Mas é, acima de tudo, o ano de O Monstro Precisa de Amigos, um disco revelador. Revelador de uma banda que criaria um público fiel à sua força. Revelador de um poeta na sua maior expressividade musical. Revelador de alguns dos melhores músicos da sua geração. Revelador de parte da música portuguesa desta década.

Relembre-se que se trata apenas de um álbum de canções. A última vez que escrevi isto de um álbum foi sobre Todos os dias fossem estes outros, de Nuno Prata. Coincidência? Talvez. A formação dos Ornatos Violeta incluía Manuel Cruz, Peixe, Kinorm, Elísio Donas e Nuno Prata. Esta é a grandeza de O Monstro Precisa de Amigos. É um salto enorme em relação a Cão e é uma catapulta, hoje notória, para o que dali sairia. Manuel Cruz e Peixe seguiriam para os Pluto. Manuel Cruz seguiria ainda para os Supernada. Nuno Prata lançaria este ano o seu prometedor trabalho a solo. Falta ainda Manuel Cruz na versão a solo. Está programado para o próximo ano, sob o nome de Foge Foge Bandido.

“O que eu quis mostrar ao mundo
era tão forte e tão profundo.
Eu quase me afoguei na emoção.”


Em O Monstro Precisa de Amigos há uma explosão confluente de influências e experiências. Há a mais terna e melancólica balada Pop-Rock dos anos 90. Há a irreverência própria de uma juventude que insiste em gritar, estilo Arctic Monkeys. Há a faceta mais Hard-Rock dos Xutos, o mais profundo de uma letra de Jorge Palma, o lado mais negro dos Smashing Pumpkins. Tudo num mundo paralelo, que é no fundo o mesmo, onde a poesia é rainha e senhora. É um álbum de canções porque a excelência da palavra assim o permite.

Abre com “Tanque”, primeira prova de que a poesia é a força motriz de todo o álbum. “Se uma vida não chegar / Hei-de ter cem vida mais / Quantas mais ditar o coração”. Estamos conversados. Segue-se “Chaga”, banda sonora de uma perseguição alucinante. Scorsese em melodia romântica. Segue com o mesmo ritmo “Dia Mau”, onde se fala dos efeitos secundários da poesia (sempre com músicas curtas, como se pede a uma canção, sempre por volta dos 2/3 minutos). “Para nunca mais mentir” seria uma boa música se não antecedesse uma música enorme. “Ouvi Dizer”, em dueto com Vítor Espadinha, é um momento alto da canção portuguesa. Poesia com alterações de ritmo. A languidez melosa da voz de Cruz a arrastar-se a caminho da raiva, a forma que arranjou de nos pagar. Nós agradecemos. Ainda é possível sofrer de amor com qualidade.

A sexta faixa apresenta-nos um dueto com Gordon Gano, vocalista dos Violent Femmes, em “Capitão Romance”, outro ponto alto desta grande canção que é este monstro. “Pára de olhar para mim” é feita daquela essência sonora que caracteriza os Ornatos Violeta e fez deles um marco. “Dá-me a tua mão / E vamos ser alguém / A vida é feita para nós” ouve-se em “O.M.E.M.”, Operação Minimização do Ego Maximizado. “Acordar é bom. Mais fácil é dormir”. Mais poesia pela voz do suspeito do costume.

Delicodoce vem, de mansinho, “Coisas”, por altura da qual tudo isto se começa a tornar num grande livro de poemas, uma única e coesa canção. Melodicamente vemos a voz de Cruz empurrar-nos, sem o percebermos, para “Nuvem”. Começa a preocupar-nos que tudo isto faça sentido. O conjunto, o álbum, a melancolia, a qualidade. Não interessa. Já à espreita está “Deixa Morrer”, que aparece assim, acendendo uma luz. Sol de pouca dura. “Notícias do Fundo” antecedem “Fim da Canção”. Aqui ouve-se que “A dor chegou para ficar” Com um cd destes, não admira.

É, sem mentira, um Monstro de que aqui se fala. Pela positiva. Um monstro da música portuguesa. E ainda bem que ele precisa de amigos. Nuno Prata e Manuel Cruz têm-lhe dado alguns bons amigos. Esperemos ansiosamente pela proliferação da amizade.

“Foi tão bom
Para ti
Como foi para mim”


Foi com certeza.
Título: O Monstro Precisa de Amigos
Autor: Ornatos Violeta
Nota: 9/10

domingo, dezembro 03, 2006

The Queen


"Uneasy lies the head that wears a crown." W. Shakespeare em Henry IV

The Queen
- A Rainha

Seria impossível deixar passar ao lado este filme. Quando ouvi rumores acerca de uma eventual película que tinha por base a figura da mulher viva mais poderosa do Reino Unido, pensei imediatamente em Helen Mirren. Na verdade, e apesar de encontrarmos neste filme muito mais do que uma interpretação, Helen Mirren está absolutamente genial no papel the S. A. R. a Rainha Elizabeth II. Provavelmente com a melhor interpretação de uma figura viva de que há memória, The Queen é um filme fabuloso, cheio de realces que correm um risco verdadeiramente compensador.

Stephen Frears realiza a obra, depois de nos ter apresentado alguns bons trabalhos, como Mrs Henderson Presents e o imortal Mary Reilly. Agora mostra-nos o que de melhor consegue fazer, aliado ao argumento muito bem definido de Peter Morgan e a uma fotografia exemplar (que nos oferece contrastes ao longo da narrativa). Frears consegue separar a ficção da realidade do mesmo modo tão ligeiro e subtil com que consegue uni-las. E é deste modo que o filme se desenrola, remexendo em assuntos passados para fazer cócegas no presente. Sem pretensiosismos.

Tudo começa com a célebre eleição de um Primeiro-Ministro Trabalhista, ao fim de muitos anos de governo Tory. Este Primeiro-Ministro é, sem sombra de dúvida, a figura anedótica de Tony Blair (que Michael Sheen leva bastante em conta). A relação entre Downing Street, 10 e Buckingham Palace parece fria e demasiado cordial para Blair, no entanto, Tony tem a secreta aspiração de acalentar os corações, aparentemente gelados, da Corte e Família Real britânicas.

Agosto, 1997. Sucede-se, então, o desenrolar mítico em Paris: a princesa Diana morre depois de um aparatoso e misteriosamente enevoado acidente de viação. As notícias têm um impacto muito peculiar em Balmoral, a casa de férias da Família Real na Escócia... Aqui assistimos a interpretações maravilhosas, que praticamente preenchem a secreta fantasia de todos os súbditos: a intimidade dos seus monarcas. James Cromwell pega no duque de Edimburgo (o príncipe-consorte Philip) e demarca-o exactamente como o vemos, juntando-lhe, claro, umas boas manhãs de caça com os netos Will e Harry. A rainha-mãe é aquela figura muito conscienciosa, cheia de um peculiar sentido de humor. Sentido de humor esse que é, aliás, partilhado por todos os membros da Família Real.

Helen Mirren interpreta, então, a rainha Elizabeth II na semana que, supostamente, teve um grande impacto na sua imagem e na imagem da instituição que ela tão sábia e sobriamente defendeu ao longo de muitos anos de reinado: a Monarquia. Para os seus súbditos, a falta de uma demonstração de dor, de pesar, de lamento era vista como um ultraje. Para Elizabeth, sempre educada para não mostrar o que sentia, era apenas o cumprimento do dever divino: a Coroa... e, para tal, pôs à frente de quaisquer que fossem os seus sentimentos o dever de reinar. Tony Blair e S. A. R. Elizabeth II mostram-nos diálogos deliciosos, em que Mirren está quase mais majestática do que a verdadeira rainha.

Num enredo apoiado em factos verídicos, mas com uma dose razoável de imaginação, Frears desenvolve a semana que sucedeu o trágico acidente, apoiando-se em momentos históricos do Reino Unido e da sua Família Real. E, apesar de tocar em muitas feridas ainda abertas no coração do povo britânico, este filme não pretende ser uma ofensa ao mostrar outras facetas da rainha: a de mãe, a de avó, a de filha, a de esposa. Acaba por ser uma homenagem, um filme borderline no sentido em que depoleta aquilo que não tem intenções de esconder, isto é, assistimos a uma obra espontaneamente brilhante que humaniza uma figura tão injustamente castigada pelos media. Todos sabem, embora não o reconheçam, que esta rainha foi mais do que estandartes e protocolos, mais do que uma peça decorativa no governo do Reino Unido: aprendeu a crescer, a reinar, a aconselhar. Não é, de um modo mais supérfluo, o que todos fazemos?

Ainda que este filme conte com a imponente interpretação de Mirren (se Deus a ouvir, há-de ganhar o Óscar), é muito mais do que isso. É um excelente prisma para ver a Família Real e a sua figura central, é um maravilhoso filme (que conta também com uma banda sonora majestática), tem um enredo que mexe numa história que todos conhecemos muitíssimo bem, sem deixar de ser empolgante.

Verdadeiramente um filme britânico e, sobretudo, um filme de altíssima qualidade. Sob o peso da Coroa. Sobre a leveza das aparências.


Título/Ano: The Queen (2006)

Realizado por: Stephen Frears

Escrito por: Peter Morgan

Elenco: Helen Mirren, Michael Sheen, James Cromwell, Sylvia Syms, Alex Jennings, Helen McCrory.