sábado, março 31, 2007

Solo Piano Music (Complete Published Piano Music)

Integrando a colecção de discos da Naxos chamada American Classics, a obra completa para piano solo do compositor Samuel Barber (1910-1981) é um daqueles CDs que se encontra nos confins da prateleira das séries económicas. No entanto, e apesar de ter uma capa nada atractiva e um grafismo que roça o assustador, este disco contém uma excelente gravação de 1995 sob a mestria de Daniel Pollack. Reúne a totalidade do trabalho publicado do compositor americano, que sempre se manteve à sombra do seu conhecido Adagio de um Quarteto de Cordas (posteriormente adaptado para Orquestra de Cordas).

À descoberta da partitura de Barber está Daniel Pollack, o pianista californiano que actualmente lecciona em Yale, apesar de ser protagonista de uma carreira cheia de sucessos e de interpretações maravilhosas. Ganhou inclusivamente, com a Sonata de Barber, a Competição de Piano Tchailovsky em Moscovo no ano de 1958. Assim, este disco oferece uma proposta irresistível: (re)descobrir a música de Barber – que vai muito além do já conhecido Adagio – e auscultar a consagração de Pollack sobre as teclas.

Samuel Barber conseguiu o que a maior parte dos compositores não conseguiu, embora tenha sofrido consequências que a maior parte dos seus colegas, quer tenham sido eles seus contemporâneos ou não, não sofreram. No que toca ao facto de provocar, de inovar, de ser diferente, Barber sempre conseguiu fazer frente ao estabelecido (o melhor exemplo será relativo à sua vida particular, onde a sua homossexualidade, assumida aos dezoito anos com a relação que estabeleceu com Gian Carlo Menotti, sempre foi aceite em qualquer meio). Assim, Barber conseguiu usar a dissonância, os ritmos complexos, a visão mais pungente da harmonia a favor de uma busca pelo neo-Romantismo, pelo lirismo dos seus antepassados, pela perfeição mais ao nível dos conteúdos nas suas peças para um instrumento a solo. Ainda que poucos conheçam a sua obra.

Um excelente exemplo da genialidade de Barber, e um magnífico marco na música americana, é a monumental Sonata para Piano, Opus 26. A Sonata, intempestiva e tecnicamente feroz, foi durante alguns anos evitada, embora nunca ignorada, tornando-se na obra americana mais tocada em recitais de piano solo, assim como uma peça obrigatória na maior parte das competições.

Composta em dois anos, a obra tem quatro andamentos. O primeiro, Allegro Energico, inicia-se com um cromatismo frio e duro, no qual se desenrola um tema mais lírico, depressa esbatido pelos intervalos dissonantes expressos na brusquidão da resolução dos fragmentos musicais vários. Na conclusão do andamento, temos presente um emaranhado mais indistinto, embora se dissolva em pequenas e leves carícias para o finalizar. O segundo andamento, Allegro Vivace e Leggiero, é uma espécie de super-scherzo que, embora se possa dizer divertido, não é de todo histérico; consegue, no entanto, inverter o final do primeiro andamento sob a forma de um alegre jogo de notas agudas. O terceiro andamento é um Adagio Mesto que se caracteriza com a expressividade das notas mais graves e do ímpeto com que a melodia, nunca forçada, se esbate sobre o lirismo da reminiscência do tema principal. O quarto e último andamento é uma Fuga: Allegro Con Spirito, sendo de longe o andamento mais rico harmonicamente, mais confuso em termos de forma, mas também facilmente descodificado à medida que caminha para o esmagador e genial final.

O segundo módulo deste disco diz respeito ao trabalho Excursions, Opus 20, uma obra de Barber que reflecte as influências de outros estilos musicais – que variam desde o boogie-woogie à música mais tradicional. Constituem, assim, quatro peças bastante interessantes, sendo a primeira um andamento Un Poco Allegro, revelando-se sobre a forma do boogie-woogie, com um ritmo moderno e vivaz. O segundo, In Slow Blues Tempo traduz a harmonia, a melodia e o ritmo dos blues. Já o Allegretto da terceira peça traz muito do Romantismo alemão misturado com secções menos líricas e mais atípicas, embora o bucolismo e a expressão que se sentem nesta Excursion sejam muito lidas nas Kinderszenen de Schumman, por exemplo. A quarta e última peça, um Allegro Molto, tem uma componente mais étnica, sem nunca se soltar de um ritmo que já Debussy induzia em variadíssimas formas na sua obra.

O Nocturne – Moderato é a peça que Daniel Pollack converte de um modo particularmente irrepreensível. Neste Nocturno, Opus 23, Barber invoca, no subtítulo e na estética, John Field, o pianista irlandês que inventou a forma do Nocturno. Nesta peça, Barber relê a poesia que compositor polaco Fryderyk Chopin eternizou nos seus Nocturnos, transformando o seu Nocturne – Moderato na sua obra mais idílica e mais etérea que, embora se mantenha fiel à profundidade da busca pelo Romantismo, não esquece a orientação moderna em todos os maneirismos que exemplifica.

Em oposição a uma linha mais de exteriorização, Os Three Sketches são três curtas peças que Barber escreveu e distribuiu pela família. O primeiro, Love Song: Tempo Di Valse, Allegretto, é uma peça com apenas vinte e quatro compassos, que Samuel Barber traduziu numa valsa doce e nostálgica, e que dedicou à sua mãe. O segundo, To My Steinway (To #220601): Adagio, é igualmente uma valsa curta, com quinze compassos, dedicada ao piano da sua infância. O terceiro e último, Minuet: Tempo Di Minuetto, foi escrito com base no Minuet número 2 WoO 10 de Ludwig van Beethoven, tendo sido dedicado à irmã de Barber. É de particular interesse e de especial beleza a forma simples com que o compositor consegue exprimir afectos e ternura com apenas alguns compassos para colocar notas. É fantástica a forma com que esboça as melodias mais inovadoras e intimistas, ténues por detrás de formas convencionais.

Em seguida, Pollack oferece o Interlude 1, "For Jeanne" – Adagio ma non troppo, uma obra mais ou menos ao estilo de uma rapsódia, que traz muito do Romantismo de Brahms ou mesmo Reger, sem nunca se afastar da linguagem musical e das tonalidades do século XX. Aqui, Barber exige ao executante uma exploração imensa do teclado, assim como alguns intervalos que requerem um especial esforço de dedos. É um trabalho dedicado a Jeanne Behrend, uma conhecida pianista americana. A Ballade – Restless é o trabalho seguinte no alinhamento do disco. Escrita num período particularmente difícil, a Ballade reflecte o estado mental do compositor, sendo sombreada pelo cansaço da abertura e pelo antagónico virtuosismo da secção do meio. A obra termina recapitulando o início num pianissimo misterioso, fechando uma partitura bastante simples e compacta, que é simultaneamente um exercício de uma comovente expressão musical.

Como forma de terminar o disco, Daniel Pollack interpreta os Souvenirs, Opus 28, seis peças originalmente compostas para quatro mãos sobre as teclas. Samuel Barber adaptou as peças para piano solo e mais tarde para orquestra. Esta obra diz respeito a seis pequenos trechos variadíssimos. Uns trechos são mais humorísticos, outros mais dramáticos, oscilando entre ritmos (Scottische: Tempo Di Schottische, Allegro ma non troppo é um exemplo), formas (Pas De Deux: Adagio, uma forma típica do ballet), sempre com um discernimento moderno bem caracterizado e com uma elegância e precisão sublimes na harmonia e na melodia.

Eis um disco que explora a musicalidade imensa de Pollack e a obra inconfundível, cheia de recursos inesgotáveis, de um compositor fantástico e tão facilmente olvidável e substituível por uma obra que alcançou o sucesso. A leitura do pianista é absolutamente digna de destaque, não só no modo como cruza a expressão artística com a nota escrita, mas também pelo modo como visualiza o afecto na obra de Barber. Uma excelente interpretação da obra do mais genial dos compositores americanos (que, para quem não sabe, escreveu mais do que o trecho que se ouve em Platoon).



Título: BARBER: Solo Piano Music

Artista/Compositor: Daniel Pollack toca Samuel Barber

Ano: 1998 (à venda agora)

quinta-feira, março 29, 2007

Voz Própria #4 - JP Simões

1. Em 1970 (Retrato) ouve-se “A minha geração já se acabou”, numa fotografiadesencantada e entristecida. Como encaras o rumo que a tua geração tomouface aos acontecimentos que a foram contextualizando?
Uns morreram de overdose, outros salvaguardaram a sua dignidade num contexto discreto de construção pessoal, profissional e artística, a grande maioria deu continuidade, por omissão ou mimetismo, à grande feira do individualismo selvagem e irresponsável, agora sob a capa do progresso tecnológico (de importação) e da cidadania europeia (praticada essencialmente através do oportunismo financeiro e da novíssima demagogia baseada na interpretação de estatísticas).

2. A “inquietação” que vais buscar a José Mário Branco é também um sinaldesse desencanto geracional, fruto da visão do que não foi face ao que podiater sido?
Sim, mas é também apenas uma belíssima canção de um músico e cidadão notável.

3. E como vês a nova geração que está a surgir, nomeadamente a nívelmusical? Sentes que cometem os mesmos erros?
Prognósticos só no fim do Universo.
4. Sempre mostraste uma preocupação social na tua música, quer em 1970 querem projectos anteriores. A música tem necessariamente uma função social, uma espécie de manifesto?
Não forçosamente: mas podes aproveitar os dias mais estuporados para cuspir todo o merecido veneno que a vida em sociedade segrega.
5. 1970 é também o trabalho onde mais abertamente expões a tua influênciabrasileira, mais concretamente a influência de Chico Buarque. Como é que um rapaz de Coimbra acaba a compor um álbum tão “brasileiro”?
E como é que um rapaz do Texas declara guerra ao Iraque?
6. Quer nos Belle Chase Hotel quer nos Quinteto Tati sentia-se uma fortepresença cinematográfica, a começar pelo nome das bandas. Há cinema em 1970?
Há mais literatura, panfleto e postalinho afectuoso.
7. Melhor Disco Nacional de Janeiro para o DN, um dos 30 cds mais vendidosno país, este tem sido talvez o teu trabalho mais amplamente reconhecido a nível do grande público. Como é a tua relação com esse lado? Pensas na reacção das pessoas quando escreves e compões?
Não, penso nas reacções dos dálmatas: são animais muito sensíveis à música. Mas além disso, escrevo e componho imaginando que estou a ser ouvido por um amigo que não seja parvo.
8. Quando instado a comentar sobre o que gozaria hoje Alexandre O’Neill,respondeste que “o alvo seria 'o politicamente correcto e a questão nacional da criação da imagem de Portugal para o exterior”. Portugal ainda é um país demasiado preso a uma mentalidade conservadoramente burguesa e religiosamente estagnada?
Eu espero bem que sim: até porque me dá jeito ter sempre à mão um imenso conjunto de defeitos nacionais insuportáveis e consensuais.
9. Acabo a citar-te noutra entrevista: “Acho que me falta fazer tudo namesma, porque o que está feito já passou. (…) Continua tudo por fazer”. Qual é o próximo passo?
É espetar-me de Galeão contra a Ponte Vasco da Gama

sábado, março 24, 2007

Bandidos e Mocinhas

Nelson Motta, brasileiro, escritor e jornalista entre outras actividades, autor do romance O Canto da Sereia, assina Bandidos e Mocinhas, o seu mais recente livro. Romance em género de policial, Bandidos e Mocinhas é apresentado como “o melhor estilo Pulp Fiction”. Aparte os provérbios, este é um livro bem intencionado. Um shake mal batido que mistura a falta de linearidade de Pulp Fiction com o ambiente realista de Cidade de Deus. O Cinema não é, aliás, trazido ao acaso, já que o livro apresenta-se assim, mesmo, cinematográfico. Quer em termos descritivos, quer na narrativa. É pena que o escritor não se mostre nenhum Quentin Tarantino.

Bandidos e Mocinhas começa a partir da morte de Lana Leoni, uma actriz, em plena representação da sua mais recente peça de teatro. Daqui se parte para a controvérsia da peça, para os vários relacionamentos cruzados numa trama que até poderia ter um bom desenvolvimento, não fosse uma terrível falta de ideias. Assim se vão conhecendo as várias personagens. Lana Leoni, a actriz provocadora e estereotipadamente ganaciosa, capaz de tudo pelo seu sucesso. George, o seu marido extravagante, voyeurista e enigmático. Dida, o fora-da-lei culto e desenvolto, mas com graves problemas sexuais. Marlene, a detective atraente e competente, encarregada do caso. Pedro, o ex-amante de Lana, devoto de uma vida recatada e isolada.

O que mais impressiona pela negativa é a distância entre o que é e o que podia ter sido. Bandidos e Mocinhas fica-se por um livro redundante, repleto de clichés, sem ideias criativas, nem desenvoltura narrativa. Uma linguagem desbragada e por vezes demasiado coloquial, que porventura assentaria bem num suporte dado por uma história consistente. No fundo, como faz Tarantino no filme que a capa insiste em citar. Aqui, tudo soa a fácil e demasiado óbvio. A começar pelo título. Tudo culmina com a falta de um clímax, o que é agravado por estarmos a falar de um policial, género que por excelência cozinha os acontecimentos até um borbulhar final de revelações. Motta começa por alinhar no género. Falha, redondamente, quando a previsibilidade e a falta de uma noção maior assassinam, não a personagem, mas o livro.

O paradigma de todo o livro será um relacionamento entre duas personagens que acontecerá no final do livro. Clichés amorosos à beira-mar fazem suspeitar de ideias irónicas do autor. Ou da sua necessidade de disfarçar uma final mal conseguido, mal desenvolvido e com pontas soltas. Nada disso. Tudo parece apenas inaptidão. Consegue Bandidos e Mocinhas alguma vez animar? Sim. Tem alguns traços interessantes, especialmente quando apela aos galões tarantinianos que apregoa. Qualquer coisa mais que isso é um pedido exagerado. Com certeza, o autor não lamentará mais que o leitor.

Título: Bandidos e Mocinhas
Autor: Nelson Motta

quinta-feira, março 22, 2007

Os Anjos Exterminadores

Nenhum tema se vulgarizou tanto na sociedade ocidental filmada como o sexo. Contudo, os meandros por onde o grande ecrã apresenta este tema são, praticamente sem excepção, uma exposição estilizada e cada vez mais aborrecida de um acto sexual clichezado. Há, contudo, realizadores que sabem manejar o sexo, para além dos tabus, ou mesmo dentro destes tabus. Há os despudorados, como Larry Clark, e há os estetas, como Jean-Claude Brisseau. O que os une é a tentativa de usar o sexo como liberdade, cada um à sua maneira. Como compreensão, como escape, como pathos.

Quem brinca com o fogo, queima-se. Frase feita icariana de índole popular, espécie de advertência católica contra qualquer tipo de tentação, mas que se aplica, em jeito de moral da história, ao mais recente filme do realizador francês. Os Anjos Exterminadores relata a procura voyeurista de uma realizador perseguido pelos seus fantasmas. François, enquanto prepara a realização de outro filme, depara-se com a sua necessidade de compreensão da sexualidade feminina. Esta necessidade irá dar azo à criação de um novo filme, numa espiral de polémica perante uma sociedade exterior que nunca se sente. O ambiente do filme é fechado em si próprio, repousando tudo sobre os ombros de François.

A partir deste ponto, François entregar-se-á à procura das suas actrizes no seu método muito próprio. Observá-las e filmá-las na sua procura pelo prazer. É assim que vai conhecer e dar a conhecer entre si Charlotte, Julie e Stephanie, três jovens sem relação mas que rapidamente constroem um triunvirato que será tanto o sucesso como a ruína do realizador. Com elas, François cria uma relação parental edipiana de atracção e envolve-se cada vez mais, perdendo o controlo. Pelo meio de tudo isto, aparições de cariz demoníaco parecem reger externamente a história desde o principio, como se a sexualidade feminina fosse, de facto, um segredo dos deuses.

Neste filme com forte pendor autobiográfico, François assemelha-se à Justine de Sade a quem tudo acontece pela sua virtuosidade, com reflexo na sua sexualidade. Com o senão de que, aqui, é ele mesmo que despoleta todos os acontecimentos sobre si próprio, sem o saber. Ou sabendo-o. Os Anjos Exterminadores importa menos como caracterização lésbica de um prazer feminino ainda misterioso do que como pesquisa freudiana de uma realizador que é uma sociedade à procura de respostas. É menos De Olhos Bem Fechados do que é O Último Tango em Paris. Há uma concepção de sexo e prazer, uma procura do tabu, uma despreocupação face ao conservadorismo burguês que cria algo mais que o mero sexo, ainda que, em última instancia, tudo se resuma a isso mesmo.

Brisseau premeia, como sempre, uma estética visual, uma encenação de grande espectáculo em que, por vezes, a nossa visão se confunde com a de François. É ainda interessante rever o carácter do destino, enquanto fado, deste realizador apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo. Um destino que constrói por oposição à imagem de um anjo exterminador que o vai controlando enquanto ele se imiscuir nesse assunto negro, o sexo dos anjos, que é o sexo das mulheres. A bem dizer, Brisseau consegue menos do que aquilo a que se propõe, em grande parte por estas inusitadas aparições mal limadas. Fosse o filme de Brisseau o filme de François, ou fosse o filme de Brisseau apenas sobre o filme de François e o resultado seria bem diferente.
Título: Os Anjos Exterminadores
Realizador: Jean-Claude Brisseau
Elenco: Frédéric van den Driessche, Maroussia Dubreuil, Lise Bellynck, Marie Allan, Raphaële Godin, Margaret Zenou e Sophie Bonnet.
França, 2006.
Nota: 6/10

quarta-feira, março 21, 2007

Inside In/Inside Out

Inspiraram-se numa conhecida música de David Bowie para o seu nome e agora chega o seu primeiro trabalho. Chama-se Inside In/Inside Out e é um nome divertido para um álbum divertido. Quanto aos The Kooks, a banda inglesa chega com um brilho de um rock moderno e com um toque de punk, embora se note uma grande sede de inovação ao longo das catorze faixas deste álbum. Ficaram conhecidos depois do cover de Crazy (original dos Gnarls Barkley) e estes quatro músicos assumem-se como um novo rosto na música britânica, trazendo muito de fresco e revigorante ao panorama musical.

Herdaram o sentido clássico de David Bowie e a sucessão harmónica dos Beatles, pegaram no charme inovador dos The Smiths e na vibração rebelde dos pioneiros do punk. Congregaram muitas (boas) influências e mantiveram uma face barbeada, cheia de peculiaridade. Trouxeram consigo formatos conhecidos e rechearam-nos de um sentido de humor muito próprio. Lançaram-se na música e nos olhos dos críticos com uma ferocidade interessante. Parece suficiente para perguntar porquê.

Com Inside In/Inside Out, os The Kooks trazem uma ligeireza e uma sobriedade muito característica, sem porem de lado a inovação e um ar desempoeirado. Luke Pritchard assume-se confiante enquanto vocalista e guitarrista, Max Rafferty pega no baixo, Hugh Harris apresenta-se na guitarra, e Paul Garred explora a bateria, sem grandes hesitações na mistura de rock e algum punk.

Seaside é a primeira faixa do álbum, conseguindo ser quente e íntima, sem nunca chegar a ser mole e aborrecida. Em Sea The World, a bateria de Garred traz-nos uma tempestade muito bem conseguida. Já aqui se adivinha uma grande espiral de ideias e uma linha mestra que orientará o resto do disco. As faixas seguintes trazem uma reminiscência de Blur, muito visível em Sofa Song, em Eddie’s Gun (que funcionou como single) e em Ooh La. São músicas com um enorme potencial para soar bem nos ouvidos de quem as escuta, deliciando uma vasta área de ouvintes através de guitarras sacudidas e de um andamento veloz. You Don’t Love Me é uma faixa muito ao estilo dos Arctic Monkeys, embora a letra caia um pouco no lugar-comum e num estilo muito próprio ao longo do álbum.

Tal como em Seaside, temos Want You Back com um ar muito certinho e muito sóbrio. No entanto, perde-se a solenidade em Jackie Big Tits, uma faixa que traz à memória histórias do passado, raparigas precoces, e a música de Franz Ferdinand. Naïve é uma faixa muito fresca, muito inovadora, muito próxima do objectivo que os The Kooks tinham prometido alcançar, cheia de detalhes, de pormenores musicais, com um ritmo e uma percussão estimulantes.

Os The Kooks são excêntricos no maneirismo, nos arranjos e na interpretação. Ainda assim, poderiam ter um álbum mais característico, menos apegado às influências, o que não se torna mau de todo, uma vez que condensa bandas de qualidade numa tentativa de inovação. O que é certo é que em algumas faixas se sente a falta de qualquer mais própria, embora Inside In/Inside Out entre em parâmetros onde bandas britânicas melancólicas como os Coldplay não ousam entrar.

Para já, neste disco, ficámos todos com a impressão de que esta é uma banda promissora, com imenso talento e imensa criatividade. Esperamos agora o próximo álbum, quem sabe com menos leituras fáceis de grandes influências. Apesar de tudo, eis um tributo à música feita no Reino Unido, eis uma banda que se pode apelidar de fruto de algumas gerações de bons músicos, mantendo em vista um horizonte bastante apetecível. Sempre com sentido de humor.


Título/Ano: Inside In/Inside Out (2006)

Artista/Compositor: The Kooks

A Tragédia de Júlio César


“Quantas vezes no futuro/ Esta cena sublime não voltará a ser representada,/ Em Estados ainda por nascer e em línguas ainda ignoradas!/ Quantas vezes não sangrará César no palco,/ Esse que agora jaz no pedestal de Pompeu,/ E mais não vale que o pó!/ E quantas vezes isso acontecer,/ Outras tantas será o nosso grupo chamado/ O dos homens que deram à sua pátria a liberdade.” Júlio César, homem, mito e conceito, é na peça de Shakespeare a figura sobre qual se abate verdadeiramente todo o corpo teórico da tragédia, enquanto crise existencial e pretensão íntima de divinização. César entroniza-se e incorpora as virtudes e os defeitos da liderança e do poder, numa sociedade sedenta de veneração e orientação. César (Luis Miguel Cintra), o tirano, recusa por três vezes a coroa que Marco António (Nuno Lopes) lhe oferece e, de seguida, desmaia; César, o colosso, aproxima-se de Marco António e pede-lhe que lhe fale para o ouvido direito, pois que é surdo do esquerdo; César, o homem público, a instituição, o líder liberto de inclinações egotistas, regressa ao seu “eu” para justificar a recusa do perdão ao irmão de Cimbro. Mas é sobre o César de carne e osso que, em última instância, se consuma o arco de ascensão e queda que conduz inevitavelmente à morte. A morte do futuro rei é o evento que não só entrega o mundo à desordem como o divide ao meio, e A Tragédia de Júlio César revela-se fundamentalmente como a tragédia da vida política, em duas partes: a da intriga e a da guerra.

Há todo um apodrecimento da Cidade que leva ao desenvolvimento da intriga e ao golpe vil. Em todos os conspiradores há um misto de servidão, escrúpulo e ódio que os anima a levar o plano a bom porto, sentindo-se imbuídos de um sentimento de dever para com uma glória maior (Roma) e, neste aspecto, Shakespeare constrói uma tragédia que se aproxima de um drama humano e terreno onde a personagem mais aparentada a uma divindade é César, quer pela sua presença em forma de mito, de ideia de ordem, quer pelo poder com que dilacera Bruto (Dinarte Branco), o traidor, e Cássio (Ricardo Aibéo), o corruptor. A decadência da sociedade expande-se, no entanto, para além do círculo dos conspiradores. Marco António expõe-se como o astuto instigador da rebelião através da oratória, repetindo, por quatro vezes, “Mas Bruto é um homem honrado” às massas ingenuamente maleáveis e permissivas, incapazes de, como hoje, adquirir consciência política. Octávio é o novo líder, o cínico, que à boa maneira de César se sente investido de autoridade sem, no entanto, possuir a aura imperial deste. Nos despojos da morte de César, dispõe maquinalmente das suas forças para próximo do fim ser já chamado de César, aqui já não um nome, mas um título, como mais tarde os derivados czar e kaiser.

A degradação da estrutura social de Roma alimenta tanto os conspiradores, arrastando-os para o assassínio, como o público, enternecendo-o para com os mesmos. Bruto, o imortalizado traidor, é uma espécie de sonhador, de homem escrupuloso e crente numa Roma salva de tiranos, na Roma dos cidadãos e não de César. Cássio, por sua vez, é o rosto de uma vontade de muitos, o infeliz que carrega o fardo de haver persuadido com uma retórica cirúrgica o amigo Bruto. Os conspiradores são, e este significado reside profundamente nas palavras do texto de Shakespeare, a espada que Roma, no seu sentimento prevalecente, empunhou.

“Pusemos em cena um momento da História. Mas encenar Júlio César é mais do que isso, é uma múltipla tarefa; contar mais uma vez a História, para que não se esqueça, sim, falar ao nosso tempo da luta pela liberdade, pôr em cena homens mais que figuras simbólicas e fazer teatro, recriar a História transformada em poesia, comunicar” – escreve Luis Miguel Cintra acerca do espectáculo. Aparte toda a complexidade da peça, da fina malha de subtilezas com que Shakespeare dotou o texto, a principal fonte de força desta tragédia é o resultado da comunicação, a possibilidade de incluir o público numa crónica histórica e num drama vivo, impedindo-o de cair no marasmo e não pensar. O encenador respeita os anacronismos que Shakespeare, certamente com a intenção de levar o público a sentir-se numa Roma “real”, incluiu, dando-lhe seguimento para os dias de hoje. No quarto e quinto actos, os romanos despem as togas e vestem as fardas militares do século XX, e aquela guerra perde a distância e torna-se actual; é então que a falência dos homens, desumanizados, perdidos no absurdo da guerra, do suicídio e do erro, se torna nossa também.

São três horas e meia de retórica política, de dilema moral e de reflexão sobre o poder, numa encenação sobre o texto integral sem os cortes que frequentemente amputam as grandes obras. “Ó Júlio César, ainda tens poder!”, diz Bruto em desespero.

Em cena de 21 de Março a 22 de Abril de 2007
São Luiz Teatro Municipal, Lisboa

Tradução: José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto e Luis Miguel Cintra
Encenação: Luis Miguel Cintra
Cenário e Figurinos: Cristina Reis
Desenho de luz: Daniel Worm d’Assumpção
Música original: Vasco Mendonça
Interpretação: André Silva, Dinarte Branco, Dinis Gomes, Edgar Morais, Filipe Costa, Hugo Tourita, Ivo Alexandre, Joaquim Horta, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Luís Lucas, Martim Pedroso, Pedro Lamas, Nuno Lopes, Nuno Gil, Pedro Lacerda, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Tiago Matias, Teresa Sobral, Tónan Quito e Vítor de Andrade.

terça-feira, março 20, 2007

Stabat Mater


A Associação Portuguesa de Críticos de Teatro atribuiu o Prémio da Crítica, relativa ao ano de 2006, ex-aequo a Maria João Luís e João Lagarto pelas suas interpretações nas peças de teatro Stabat Mater e Começar a Acabar, respectivamente. A primeira está de novo em cena e a oportunidade de ver o espectáculo tornou-se uma prioridade. Não só pelo prémio conseguido mas, por toda a crítica da imprensa em geral e, também pelo testemunho de outras pessoas. A reposição está em cena no mesmo local da primeira encenação, no Convento das Mónicas, e depois de lá estar fica-se com a noção que este monólogo àquele espaço pertence, perdendo muita força se encenado num auditório qualquer.

Stabat Mater conta a história na primeira pessoa de Maria. O texto de António Tarantino não é um simples monólogo que nos entretém durante algum tempo numa sexta-feira à noite. É uma peça de teatro que, por acaso, só tem uma personagem em palco mas que não precisa de mais nenhuma presença física para nos captar a atenção. O monólogo, enquanto texto, tem uma série de características que o tornam muito bom: a personagem Maria está definida na perfeição e, no entanto, está longe de ser uma figura plana; a escrita formal é tão brejeira como a prostituta Maria, sem nunca ofender; os relatos da sua vida e de outros aliam a comédia à possível veracidade dos factos: e a evolução do texto, principalmente do lado dramático, sustenta todos os pormenores que nos podem encantar mas que caíriam no ridículo sem esta evolução. Um destaque tem de ser dado à comparação desta Maria que não sabe de um filho incompreendido pela sociedade com a personagem bíblica, a Virgem Maria.

Não interessa falar muito da personagem Maria dissociada da actriz Maria João Luís e, posteriormente, comentar a interpretação da mesma. Se é verdade que as personagens que assistimos em peças de teatro são aquelas, naquele momento que os actores estão a interpretá-las, não é menos verdade que as personagns existem, anteriormente, no papel e, poderemos sempre por em causa a interpretação do profissional. Esta “descolagem” requer um distanciamento que, provavelmente, nos torna mais exigentes mas, ao mesmo tempo, poderá afastar-nos do objecto artístico. Para mim, esta é a prova que distingue os actores excepcionais dos outros. Maria João Luís não nos dá hipótese de criarmos qualquer distanciamento. Impõem-nos uma Maria extremamente verosímil. Uma prostituta que diz merda, cabrão, enrabar e todas as asneiras possíveis como se o fizesse desde sempre. Uma prostituta que descreve as mais caricatas situações com uma frieza arrepiante. Uma prostituta que sofre o desaparecimento de um filho a quem deu tudo o que podia. Uma prostituta com preconceitos. Uma prostituta que vive. Ou melhor, uma ex-prostituta que viveu enquanto tinha um filho.

A encenação de Jorge Silva Melo é bastante discreta. Está presente mas é feita para enaltecer o trabalho da actriz. Um desenho de luzes, alguns silêncios, uma restrição de espaço a Maria são os elementos mais visíveis do exercício do encenador. Contudo, sente-se que o seu principal objectivo foi o trabalho de actor. Jorge Silva Melo tem a sua quota parte de sucesso na fantástica construção da personagem Maria.

A imperdível Stabat Mater vai estar em cena no Convento das Mónicas até ao dia 24 de Março. Apesar de algum desconforto que a improvisada sala possa gerar, repito, é neste espaço (uma Capela) que a peça ganha vida necessária para ser considerada um dos melhores espectáculos de teatro do ano de 2006.
Título: Stabat Mater
Texto: Antonio Tarantino
Tradução: Tereza Bento
Com: Maria João Luis
Cenografia e figurinos: Rita Lopes Alves
Luz: Pedro Domingos
Encenação: Jorge Silva Melo
Uma produção Artistas Unidos

domingo, março 18, 2007

The Catcher in the Rye

«It's funny. All you have to do is say something nobody understands and they'll do practically anything you want them to.»

A fama de The Catcher in the Rye é sobretudo devida à polémica da sua censura. Escrito por J. D. Salinger em 1951, o livro é, nos dias de hoje, o livro mais vezes banido da Literatura, mas também uma parte obrigatória do currículo académico em muitos países de língua inglesa. A maior parte do ódio sentido pelos críticos em relação a esta obra deve-se à frieza com que Salinger, sob a voz crítica e entediada de Holden Caulfield, narra uns quantos dias em Nova York.

Holden Caulfield é um jovem perfeitamente amargurado, deprimido e crítico. Narra-nos os dias que sucederam a sua expulsão da escola Pencey Prep, agredindo, com bastante inteligência e sarcasmo, tudo o que detesta à sua volta. Numa espiral de amargura e repulsa, Caulfield consegue tornar conversas banais em fenómenos nojentos, converte o quotidiano em toda uma panóplia de tristeza violenta, distorce a realidade em algo sujo e corrompido. Assim, o leitor é introduzido na vida desesperante deste rapaz de dezasseis anos.

Em 1951, abordar temas como relações sexuais pré-matrimoniais, alcoolismo ou mesmo um certo tipo de violência era uma factor importante para garantir que o livro fosse rechaçado para a prateleira das obras polémicas. Ainda assim, Salinger consegue trazer alguma polémica nos dias de hoje, mesmo estando já grandes tabus ultrapassados: as páginas deste livro ganham vida na aversão de Caulfield pelos “phonies”, um termo que o protagonista usa para descrever o cinismo e o orgulho de quase toda a gente à sua volta. Sempre com um misto de apatia e melancolia.

Esta sua aversão ao cinismo e às aparências é bastante visível no modo como fala de Hollywood (onde o seu irmão trabalha, escrevendo argumentos) e como concebe uma existência onde ele livraria o mundo de todos os “phonies”, de todas as pessoas que corrompem a inocência. Assim, imagina-se como no poema de Robert Burns, if a body catch a body coming through the rye.

«What I have to do, I have to catch everybody if they start to go over the cliff— I mean if they're running and they don't look where they're going I have to come out from somewhere and catch them. That's all I'd do all day. I'd just be the catcher in the rye and all. I know it's crazy, but that's the only thing I'd really like to be. I know it's crazy.»

Num estilo particularmente diferente, com grandes doses de oralidade e de informalidade, Salinger faz muito uso do itálico e de determinadas expressões e maneirismos para concretizar as personagens de um modo muito concreto, realçando a narração fria e crua de Caulfield à medida que oscila entre a alienação desesperada e a depressão.

The Catcher in the Rye é também uma palavra de ordem contra o pré-definido, contra o tédio da modernidade, contra a superficialidade da moral americana, contra o cinismo e a hipocrisia que ainda hoje se verificam. Não se trata, portanto, embora corra esse risco, de um cliché na literatura, nem de um guião para existências deprimidas. Holden Caulfield traduz uma crítica desesperada e um desejo de superioridade nas sociedades humanas, em particular na Americana. Isto faz com que este livro permaneça actual num país que protege os seus jovens e não os deixa beber antes dos vinte e um anos, mas que os envia para a guerra a partir dos dezoito.

«I thought what I'd do was, I'd pretend I was one of those deaf-mutes. That way I wouldn't have to have any goddam stupid useless conversations with anybody.»


Título: The Catcher in the Rye

Autor: J. D. Salinger

sábado, março 17, 2007

Myths Of The Near Future

Revivendo o sempre complicado sucesso junto do público, é tarefa ingrata, mas possível, tentar perceber um padrão na actualidade de determinado género musical. Juntemos-lhe a ainda mais complexa e nem sempre desprovida de influência, actividade crítica musical e as coisas pioram significativamente. O que têm em comum LCD Soundsystem, Cansey de Ser Sexy, Bloc Party ou Franz Ferdinand? Para além do pano de fundo dançante. E da presença, em menor ou maior proporção, de um electrizante guitarra. E da fuga, amiúde, para um qualquer subgénero musical. A qualidade. Conclusões a retirar: A receita está escrita. Não quer dizer que todos saibam cozinhar.

Depois, por entre os eternamente aclamados e os devastados sem comiseração, a critica musical decide dividir-se nalguns casos. Um dos mais recentes exemplos são os Klaxons. Referenciados desde o ano passado fruto dos singles que apresentavam, é em 2007 que trazem o envolto em polémica Myths Of The Near Future. Presos desnecessariamente a epitopos de new rave (vá alguém compreender a parafernália de novos géneros constantemente a serem apregoados), viram o álbum causar discórdia, alimentado ódios, com o jornal Guardian à cabeça, e clamorosos aplausos de salvação aos mitos de um futuro vindouro.

A verdade sobre o trabalho chega a ser tristemente burguesa, recaindo no meio termo. Os Klaxons não trazem um primeiro trabalho divinal, como fizeram os Arcade Fire, por exemplo, mas não borram a pintura. Bem pelo contrário. Se não sabe ao que vai, espere ouvir um belo álbum de iniciação desta banda que se enquadra bastante bem no bastante em voga Dance-Rock. Electrónica pungente apoiada por ambientes Rock a degladiar pós-Punk por afirmação. Até aqui nada de novo. É a vivacidade e a capacidade de diversificação dentro de um trabalho que surge, mesmo assim, coeso, que impressionam pela positiva. Apresentará mais momentos inferiores do que seria desejável, mas a toada constante que percorre uma audição a eito é claramente positiva.

Há um pouco de Franz Ferdinand em “Totem on the timeline”. O cinzento expresivo de The Good, The Bad and The Queen já se parece fazer sentir em “Golden Skanks”. Há pista de dança em tom Clap Your Hands Say Yeah! em “Forgotten Worlds”. Há inícios Prodigy. Há momentos altos como em “Atlantis to Interzone”. Tudo isto, num só, sãos os Klaxons, banda nem tanto ao mar nem tanto à terra. Não está aqui a salvação, se é que dela estamos à espera, da música contemporânea. Mas, bem mais longe, não está o vazio musical que muitos querem fazer crer. Deixá-los, por enquanto, ser mitos. Talvez possam vir a ser algo mais. Num futuro próximo.

Título: Myths Of The Near Future
Autor: Klaxons

Nota: 7/10

terça-feira, março 13, 2007

From This Moment On



Depois do seu ambicioso projecto de composição em The Girl in the Other Room, Diana Krall abraça de novo alguns clássicos do jazz americano. Com Tommy LiPuma e John Clayton, mantendo as interpretações e os arranjos dentro de moldes frescos e modernos, Krall apresenta aos amantes da sua voz suave algumas das suas músicas favoritas. Neste álbum, Diana Krall toca e canta músicas conhecidas, algumas das quais sempre estiveram nos seus dedos e na sua voz. Temos faixas como: Day In, Day Out, Come Dance With Me e It Could Happen To You, todas trabalhadas e interpretadas com uma mestria surpreendente, facto que torna este disco numa aventura histórica, pondo de parte a composição.

Para os amantes do estilo, aqui estão alguns bons momentos de interpretação, algumas versões novas, alguns arranjos musicais bem conseguidos. Para os leigos, poderá ser apenas um rol de agradáveis momentos musicais, independentemente de quem tenha delineado a partitura ou de quem a tenha trabalhado... Fechando um pouco os olhos ao desenrolar histórico, é um disco de Diana Krall sem originais, numa interpretação que, embora seja mais fechada, é sinónimo também de uma maior entrega às teclas e à voz.

Apesar de ser muito associada ao piano, instrumento onde toca com um excelente fraseado e desenvoltura, Krall apresenta-se com uma voz mais rica, mais melodiosamente natural, bastante inspirada ao completar a harmonia e o ritmo, também eles muito bem conseguidos. Em particular, na versão menos apressada de Isn’t This a Lovely Day (de Irving Berlin). Destaque também para a harmonização e para a interpretação em conjunto de todos os seus colegas neste álbum: a fascinante guitarra de Anthony Wilson em Exactly Like You, o magnífico solo de trompete de Terrell Stafford em Isn't This A Lovely Day, assim como a enorme empatia musical que se sente no desenrolar de partituras menos rígidas, menos presas às expectativas, diferentes dos originais de Krall.

O repertório é, no entanto, uma excelente colecção de escolhas de clássicos americanos (Gershwin, Berlin, Rodgers e Porter, entre outros), encontrando também espaço para a reformulação do conhecido Bossa Nova de Jobim e Vinícius, How Insensitive. Permanecendo no seu estilo original no que toca à interpretção (muito linear e muito segura), embora mostre uma clara melhoria em relação aos seus dois álbuns anteriores, Diana Krall sagra-se enquanto intérprete e enquanto voz em From This Moment On. Conta com Sal Cracchiolo, Rickey Woodard, Gerald Clayton, Tamir Hendelman, Gil Castellanos, Anthony Wilson, Jeff Clayton, John Clayton, Terrell Strafford, Jeff Hamilton e a Clayton/Hamilton Jazz Orchestra.


Título/Ano: From This Moment On (2006)

Artista/Compositor: Diana Krall et al. / Jimmy Van Heusen & Johnny Burke et al.

domingo, março 11, 2007

Hissing Fauna, Are You The Destroyer?

"Of Montreal isn't for everyone. Labyrinthine lyrics circle beguilingly around synthesized, twistingly psychedelic disco-rock. Their latest album, the dark and questing Hissing Fauna, Are You The Destroyer?, is like the sound of a nervous breakdown with a beat you can dance to." em BCMusic
Concedamos algo à partida a Kevin Barnes, dando a mão à palmatória. O homem tentou. O cérebro dos of Montreal, banda assídua nas lides de publicar cds, embarca neste oitavo trabalho da banda, uma vez mais, por novos caminhos. De forma mais ou menos acentuada, assim tem sido o percurso da banda. Experimentando, costurando, cozendo. Como convém a uma banda indie. Sempre com a rede Rock-Electrónica por baixo do trapézio.

Estes não são os mesmos of Montreal de sempre, fruto talvez das desventuras pessoais de Barnes (a mãos com uma mudança geográfica). Mas estão lá as referências de sempre e as semelhanças habituais. Prepare-se para entrar no universo muito próprio que é o Indie. Prepare-se para comparações com outras bandas contemporâneas como os Clap Your Hands Say Yeah!. Prepare-se para a amálgama experimental que os of Montreal juntaram em Hissing Fauna, Are Your The Destroyer?.
Um retrado deprimido e deprimente mas com, paradoxalmente, momentos de extâse, quase dançante. Muitos coros, muitos sons de fundo, muito sintetizador, sempre com um pano de fundo ambiental bastante negro. Morrissey aprova, mas de boas intenções está o inferno cheio. Dê um desconto quando ouvir o álbum pela primeira vez. Oiça de novo. Verá que o álbum melhor. Mas verá também que tanta ambição não teve eco, desta vez, no produto final. Um produto final que nunca chega a pegar de estaca em nenhum momento, que promete sempre mais.

Atente-se na paradigmática “The Past is a Grotesque Animal”. Um exercício arriscado, mas ambicioso, onde ambientes electrónicos de fundo oscilam entre uma promessa bem vinda e a sensação de fracasso, soando sempre um pouco a mais. “Bunny ain’t no kind of rider”, uma das mais bem conseguidas e melódicas faixas, é bom exemplo da qualidade que as experiências misturantes dos of Montreal pode proporcionar. A par de outras boas faixas, como “Cato as a Pun” (a fazer lembrar The Good, The Bad and The Queen.) ou “Gronlandic Edit” fazem valer a pena a audição.
Título: Hissing Fauna, Are You The Destroyer?
Autor: of Montreal

Nota: 6/10

segunda-feira, março 05, 2007

1970


“A geração com quem eu vivi a adolescência caracterizou-se essencialmente por uma falta de ideais. Foi uma geração que investiu muito mais numa certa gratuitidade do lúdico e numa absolutização absurda de quasetudo, porque cresceu encravada num hiato histórico que foi o fim da Revolução que não chegou a "revoluir" e o começo do desenvolvimento social caracterizado mais uma vez pelo mimetismo da economia de mercado que se estava aos poucos a implantar.” em Rascunho

A ligação entre Portugal e Brasil, musicalmente falando, nem sempre tem sido das melhores. É cada vez mais o que se importa e, aos poucos, o que se exporta. Mas importar nem sempre é importar bem e a amalgama brasileira que invade o espaço radiofónio nacional, entre samba, pagode e música de sertanense apaixonado, nem sempre abona a favor do Brasil. Mas, louve-se o senhor, há males que vêm por bem. Com eles chegam também Tropicália, MPB e uma carrada de bons nomes, entre mais velhos e recentes.

JP Simões é a prova viva de que esta reciprocidade musical pode dar bons frutos. Fazia falta, convenhamos. Não chegavam versões pouco convincentes de clássicos brasileiros por Tim e Rui Reininho. Era preciso construir um edifício sustentado de música original e de qualidade, cujos alicerces fossem, claramente e sem escamotear, do melhor que a música brasileira tem para oferecer. Ele aí está.

João Paulo, vulgo JP, Simões é o nome por detrás de 1970. Esta não é apenas a data do seu aniversário. Esta é uma data a que não serão alheios os seus conflitos geracionais, a música portuguesa da década de 70, a evolução histórica recente nacional e, principalmente, a cultura musical do Brasil. São vários os nomes que despontam mentalmente ao ouvir 1970. José Mário Branco, Caetano Veloso, Zeca Afonso ou Tom Jobim estarão certamente lá. Mas nenhum será tão instantâneo e constante como Chico Buarque.

É neste constante paralelismo referenciado com Buarque que melhor se percebe este já chamado lusosambismo. Mas aqui ouve-se mais ainda do que isto. Ouvem-se as experiências passadas de JP Simões, com especial destaque para Quinteto Tati. O mais, como sempre com JP Simões, é poesia. Poesia que é tanto expressa na forma de uma melodia simplesmente construída, como na sua forma mais prosaica, em belos e melancólicos versos. JP Simões consegue assim a proeza de burilar um álbum essencialmente brasileiro feito à medida de uma voz portuguesa.

Um apartamento na Baixa de Lisboa com vista para o Rio de Janeiro. Cheio de fumo, savoir faire, livros de Sartre e samba a tocar. É este o contexto musical de 1970. Quer na reflexivamente intimista “Inquietação”, quer na geracional “1970 (Retrato)”, quer na dolorosa “Se por acaso (me vires por aí)”. JP Simões há muito que se afirmara como um dos principais rostos da música portuguesa, sempre escondido por algum acompanhamento em forma de banda, mas sempre também expondo uma irreverência poética que se revelava socialmente saudável. Agora, a solo, esvaiem-se as dúvidas que já não havia. Este é um rosto de uma geração.

Título: 1970
Autor: JP Simões
Nota: 7/10

domingo, março 04, 2007

Jornada de África

Nos cais de Lisboa as mulheres gritam, arrepelam os cabelos, algumas enrolam os filhos nos seus xailes, se pudessem escondiam-nos ao colo, outra vez pequeninos e só delas. Os pais passam em silêncio os dedos pelas fardas, não conseguem quebrar o pudor masculino do gesto e da palavra, mesmo que lhes apeteça agarrar nos filhos e protegê-los com seus braços. Tempo de lenços a acenar, xailes negros, lágrimas, rugas, ó mar salgado, quanto do teu sal.”

Romance editado em 1989, Jornada de África seria o primeiro grande romance de um Manuel Alegre até então maioritariamente conhecido literariamente como poeta. Talvez por isso a marca da poesia fosse, como ainda é, um cunho essencial na prosa do autor. Como noutros romances (vide, Rafael), o livro desenrola-se em pequenos trechos, como se vários poemas em forma de prosa fossem avançando a acção. A própria escrita de Alegre é uma escrita carburada e harmónica, onde belas frases se conjugam num todo.

Jornada de África traz-nos a história de Sebastião, militar português destacado para Angola, mas opositor do regime. Sebastião trilhará o percurso da generalidade dos combatentes da década de 60, entre o caos do conflito e a angústia das descobertas da vivência de guerra, e acrescentará a isso os seus fortes ideais revolucionários. Alegre opta por nos trazer uma visão do inicio do conflito, onde a resistência se forma, por oposição a uma visão mais tardia e com consequência directas na revolução de 1974. É nos primeiros anos de 1960 que este retrato de caserna e de mato se estilhaça.

Sebastião será os olhos através dos quais veremos uma realidade corrompida como qualquer guerra. Sanguinolenta e desprovida de sentido. Mas é também por ser a sua visão, que acedemos à procura amorosa que culmina no amor com uma nativa; que partilhamos amizades e inimizades; que sugamos todas, e serão várias, as referências literárias que, entre uma granada e um concílio, despontam. Camus, Rilke, Pessoa caminham lado a lado com a poesia africana.

Como um poeta ainda, Manuel Alegre estabelece no seu romance um paralelismo a puxar pela metáfora com a obra de 1607 de Jerónimo de Mendonça, também ela de nome Jornada de África. São constantes as referências à batalha de Alcácer-Quibir. Desde o destino premonitório do protagonista à conjuntura que se desenha similar entres os dois países, o de agora e o de então. É o retrato de um país perdido na sua cega cobiça que aqui se descreve, muito à custa do sangue dos seus filhos. Ponto de partida, o livro, para o futuro da prosa de Manuel Alegre. Ponto de partida, a história, para uma revolução que se anuciava.

Título: Jornada de África
Autor: Manuel Alegre

sábado, março 03, 2007

Notes on a Scandal


"We are bound by the secrets we share."


Notes on a Scandal - Diário de um Escândalo

Baseado no romance homónimo de Zoë Heller, Notes on a Scandal trata do diário de Barbara Covett (Judi Dench), uma professora numa escola pública do norte de Londres. À beira da reforma, Barbara é uma mulher cínica e amarga, que fuma sem parar, que despreza os seus colegas e alunos, que anseia por sair daquele antro de testosterona e criminalidade. É nesta condições que Sheba Hart, uma recém-chegada professora de Artes (Cate Blanchett), conhece Barbara. Desde logo, a frescura e jovialidade da liberal professora provocam uma repulsa condescendente em Barbara. Porém, à medida que a domesticada professora da classe média se imiscui no meio dos professores, Barbara vê em Sheba uma oportunidade.

Então, durante uma festa de Natal, Barbara descobre que Sheba tem um caso com Steven Connolly (Andrew Simpson), um aluno irlandês. Aí, a velha professora propõe-se confidente de Sheba e força-a a confessar as suas aventuras sexuais com o rapaz de quinze anos. Ao longo da sua narração dos acontecimentos, a situação parece mais profunda do que realmente aparenta ser: Barbara vê neste delicioso affair uma oportunidade para fundir a sua vida de solidão com a boémia burguesa da família Hart, tornando a trama numa espiral de obsessão.

O livro Notes on a Scandal foi escrito como sendo um diário de Barbara, pelo que a sua adaptação para o cinema foi especialmente difícil. Assim, o filme não gira totalmente em volta dos pensamentos da neurótica professora, embora exista uma extensa e inteligente narração de diversos eventos, deixando sempre margem para o destaque das cenas de intimidade entre Sheba e Connolly. O guião de Patrick Marber está absolutamente bem conseguido, oscilando entre o íntimo e cru, e o ácido da voz de Judi Dench sobre os acontecimentos mais banais (tão fielmente descritos no seu diário).

Judi Dench consegue em Notes on a Scandal uma das suas melhores interpretações de sempre. Será difícil esquecer todo o ódio do seu olhar, toda a loucura delirante que transborda em cada gesto, toda a obsessão doentia que transmite nas acutilantes palavras. Dench traz-nos uma interpretação maravilhosa, o que, aliado ao seu cabelo pós-menopausa e a uma escolha adequadíssima de um guarda-roupa naftalínico, faz de Barbara uma personagem muito bem criada.

Ao seu lado está a maravilhosa e belíssima Cate Blanchett, com uma Sheba etérea e perfeitamente confusa, um alvo perfeito para os pensamentos eróticos de qualquer rapazinho. Apesar do seu seguro casamento com um homem mais velho (Billy Night), Sheba perde-se na sua insegurança face ao seu aspecto, acabando por se envolver com um rapaz de quinze anos. Aqui, a fabulosa interpretação de Blanchett expõe duas forças muito presentes em todo o filme: a inveja luxuriosa de Barbara e o desejo do pseudo-naïf Connolly. O contraste entre o ambiente conformado de uma casa igual a tantas outras com a realidade de um beco onde a bonita professora se envolve com o seu aluno sardento remete-nos para um plano muito mais denso do que o próprio desejo: será tudo um fantasiar de quem deseja sair do que lhe foi impingido, ou existiu verdadeiramente algum motivo superior para que tudo aquilo acontecesse? A resposta a esta pergunta é verdadeiramente conseguida pela câmara de Sir Richard Eyre sobre o corpo de Blanchett.

Quanto a Andrew Simpson, o jovem actor que interpreta Steven Connolly, é espantosa a qualidade do modo como está tão presente na película. Os seus momentos ao lado da diva Blanchett são verdadeiramente surpreendentes: Simpson é suficientemente maldoso, suficientemente cruel, suficientemente sedutor, incrivelmente brilhante. É uma pena que a sua personagem corra o risco de se diluir por entre alguns aspectos, também eles excelentes, deste filme.

A realização ficou a cargo do experiente Sir Richard Eyre, que consegue arrancar algumas das melhores interpretações por parte do elenco. Mesmo Bill Nighy e Michael Maloney brilham em personagens muito bem enquadradas na tela. Independentemente de personagens, a abordagem de Eyre à tensão emocional, ao clima sexual, à extravagância das situações, à maldade da obsessão, e mesmo a todo o ambiente patológico que se respira neste filme, é uma obra de mestre. Junte-se a genial partitura de Philip Glass, que, apesar de não andar muito longe do seu trabalho em “The Hours”, perfuma cada um dos momentos e cada uma das personagens com uma harmonia intencionalmente escorregadia e com uma profundidade de cortar a respiração.

Assim sendo, Notes on a Scandal - nomeado para quatro Óscares e um BAFTA - faz uma excelente aproximação a um grande livro (que explora um pouco mais o pequeno Connolly), apresenta uma realização pacífica e adequada, entrega algumas das melhores interpretações de sempre, reinventa uma abordagem feminina, torna o olhar do espectador diferente. Ultrapassa barreiras sociais, esquece o que é do burguês ou do proletário, desmistifica o sexo ilegal e imoral (sem nunca o condenar), mostra o que há de mais intenso no ser humano: o desejo e o segredo, o erro e a oportunidade. One Woman's Mistake Is Another's Opportunity.


Título/Ano: Notes on a Scandal (2006)

Escrito/ Realizado por: Patrick Marber/ Sir Richard Eyre

Elenco: Cate Blanchett, Judi Dench, Andrew Simpson, Bill Nighy, Michael Maloney, Tom Georgeson, etc.

quinta-feira, março 01, 2007

O Rapaz dos Desenhos


O Rapaz dos Desenhos é o nome da peça de teatro em cena no Teatro Aberto em Lisboa. A sala da Praça de Espanha é uma referência dos palcos portugueses, nomeadamente, na capacidade de aliar a excelência dos conteúdos com a (cada vez mais) importante comercialidade dos espectáculos. Para tal, a direcção de João Lourenço tem sido a peça chave para o sucesso descrito. O director e encenador descobriu em O Rapaz dos Desenhos mais uma oportunidade para a alimentar o seu projecto. A peça de Michael Healey é a grande bandeira do teatro canadiano, sendo desde a sua primeira encenação em 1999 a peça canadiana mais representada no país. Para a adaptação para português, João Lourenço contou com a ajuda de Vera San Payo de Lemos.

Ângelo (Rui Mendes) e Mário (Luís Alberto) são amigos de longa data e vivem juntos no meio rural, partilhando a mesma casa. Ângelo é-nos apresentado com um comportamento estranho, ocupando o seu tempo de forma muito peculiar. Ainda sozinho em cena depara-se com uma estranha presença no exterior da sua casa, Miguel (Pedro Granger), um jovem actor de Toronto que chega à aldeia com a sua companhia de teatro e pretende ficar duas a três semanas ali em casa para poder observar o trabalho agrícola com o intuito de posteriormente escrever uma peça de teatro com os seus colegas da companhia. Entra em cena Mário que aceita receber Miguel em sua casa exigindo-lhe que ele trabalhe durante a sua estadia. Neste momento, torna-se nítido que Ângelo tem francas dificuldades psíquicas e fica clara a sua dependência para viver. No entanto, estabelece-se uma empatia evidente entre Ângelo e Miguel. À medida que o jovem actor vai puxando por Ângelo, remexendo e explorando (propositadamente) a sua vida, a tensão com Mário aumenta. Esta atinge o seu auge quando os dois velhos amigos assistem a um ensaio da peça de Miguel, em que ele e um colega imitam o episódio em que Mário conta a história do rapaz dos desenhos a Ângelo. Neste instante, para além dos sentimentos de revolta de Mário, acontece o facto que desencadeia toda a trama. Ângelo, ao contrário dos seus últimos trinta anos de vida, lembra-se do nome de uma pessoa para além de Mário, Miguel.

Duas temáticas principais entrelaçam-se durante a acção de modo a criar uma história sempre apelativa: amizade e teatro. A primeira já foi abordada por variadíssimos autores e artistas e é algo tão intuitivo que raramente surpreende. O Rapaz dos Desenhos relata-nos um grande exemplo de amizade, demonstrada numa enorme capacidade de sacrifício, mas isto já não é novo. Apercebendo-se deste obstáculo, Michael Healey surpreende-nos com uma história no limiar da credibilidade com o absurdo. O teatro, começando por ser uma temática mais secundária, cresce com a acção e atinge, no tal momento do ensaio, uma dimensão inesperada. É através desta arte que Ângelo ultrapassa uma das suas grandes limitações. No entanto, um potencial lado mais negativo do teatro também é explorado. Será que é moralmente aceitável uma pessoa apropriar-se da vida de outros, sem autorização, para montar um espectáculo para milhares de pessoas?

A encenação de João não passa despercebida, como já vem sendo hábito. Nesta peça não vemos palcos rotativos, nem extraordinárias mudanças de cenário, no entanto, somos praticamente convidados para entrar na casa de Mário e Ângelo. Só mesmo as cadeiras onde nos sentamos é que criam o distanciamento necessário numa representação deste tipo. Mais real que aquela casa é impossível. E por outro lado, João Lourenço consegue com dois simples degraus vincar a diferença do interior da casa para o exterior.
Quanto à escolha dos actores para estas interpretações são compreensíveis as opções de João Lourenço. Rui Mendes percebe de uma forma quase gloriosa todas as limitações de Ângelo e destaca-se claramente dos outro dois actores. As últimas interpretações de Rui Mendes têm mostrado um actor cada vez mais maduro e com ambição de fazer sempre o melhor, sem se deixar encostar às dezenas de anos de representação que poderiam provocar alguma inércia. As interpretações de Luís Alberto e Pedro Granger estão longe de encher o olho como a que acabei de descrever. João Lourenço foi buscar aos dois actores o que eles melhor tinham para dar a estas personagens: no caso de Mário, o peso de carregar outra vida com ele e, no caso de Miguel, a jovialidade. Luís Alberto e Pedro Granger não desiludem o encenador nesta sua busca, mas nota-se que não existem duas verdadeiras personagens, ficaram-se pelo objectivo.

Fedra, Moby Dick e O Misantropo foram as nossas mais recentes abordagens ao teatro nacional. São grandes clássicos de autores consagrados que incidem sobre temas fundamentais do ser humano. O Rapaz dos Desenhos é uma peça, comparativamente, muito recente mas um exemplo a seguir por vários autores contemporâneos.
Título: O Rapaz dos Desenhos
Autor: Michael Healey
Versão: João Lourenço e Vera San Payo de Lemos
Dramaturgia: Vera San Payo de Lemos
Encenação: João Lourenço
Elenco: Luís Alberto, Pedro Granger e Rui Mendes

O Misantropo

Misantropia – Ódio ao ser humano ou à humanidade em geral. Antónimo de altruísmo e filantropia.

Há, a priori, uma separação a ser feita. O texto e esta versão que nos é apresentada pelo Teatro da Comuna. O texto, de Molière e com tradução de Luís Miguel Cintra, é das melhores obras que poderemos ver representadas num qualquer palco, desde que bem orientado. Uma tradução irreprensível de Luís Miguel Cintra traz-nos um texto fiel à sua origem, tanto quanto possível, mais do que no conteúdo, também na forma.

O Misantropo serve-se da história de Alceste, um homem revoltado com a sociedade hipócrita e tortuosamente simples em que se insere. Alceste está apaixonado por Celimène, que é tanto a causa do seu desconforto social como o paradoxo irónico dele mesmo, já que esta não é senão um dos principais bastiões desta retardatária e maledicente sociedade. É na criação desta oposição entre Alceste e a sociedade mesquinha, e na caracterização mordaz mas precisa da mesma, que a peça de Molière se imortaliza.

Perante isto, punham-se vários cenários possíveis. A escolha de Álvaro Correia é das mais acertadas. O texto nem sempre é fluído pelas truculências que anos de evolução linguística e teatral impuseram mas a escolha do registo natural e levemente quotidiano sobressaí pela positiva. Aliás, este será o registo que pontuará toda a peça, uma mistura entre a eternidade da peça e modernidade da mesma. Uma mistura de identidades que bem assentam quer na peça escrita quer na montada. Do vestuário, à música, passando pelas marcações e intensidade das personagens.

Mais, a escolha do cenário revela-se ainda refrescantemente simbólica. Meros puffs contrastam com o texto de grande salões senhoriais, levando à reflexão óbvia sobre a actualidade do texto na sociedade que presenciamos. Sessões sociais de corte e costura humano são o pano de fundo. Pelo meio deste intrincado tricotar social, assistimos à história de Alceste, da sua sinceridade e da sua disputa amorosa com um autor, Oronte, o escritor falhado. Maneira subtil esta do autor desta critica de chegar a esta interpretação, com um metafórico, mordaz e caricaturado Orionte, uma das melhores interpretações.

Quer o texto de Molière, quer a versão que nos é apresentada, são provas inequívocas de capacidade teatral de suscitar à reflexão. Perder este texto seria despediçar uma oportunidade. Um final, súbito, deixa levantar o véu de perguntas maiores. Poderemos nós mudar a sociedade?

O Misantropo está em cena no Teatro da Comuna até 25 de Março. De 4ª a Sábado às 21h30m e Domingo às 16h.

Título: O Misantropo
Autor / Tradutor: Molière / Luís Miguel Cintra
Encenação: Álvaro Correia
Elenco: Àlvaro Correia, João Tempera, Miguel Sermão, Lucinda Loureiro, Rogério Vieira, Sara Cipriano, Sandra Faleiro e Victor Soares.