terça-feira, fevereiro 27, 2007

Driving Lessons


Driving Lessons
- Lições de Condução

Apesar da mediatização imensa sofrida pelos pequenos actores da saga Harry Potter no Reino Unido, em Portugal, Rupert Grint (mais conhecido pela personagem Ron Weasley) passou quase despercebido. Acabado de completar dezoito anos, o actor inglês contracena com Julie Walters e Laura Linney no filme escrito e realizado por Jeremy Brock.

Depois de falhar no seu exame de condução, o tímido e sossegado adolescente Ben Marshall (Rupert Grint) responde a uma entrevista de emprego e conhece Evie Walton (Julie Walters), uma famosa actriz do Teatro Britânico, já aposentada, que precisa desesperadamente de ajuda nas suas lides domésticas. Ben afasta-se do seu pai, um vigário conservador, e da sua mãe (Laura Linney), uma mulher dominadora e hipócrita, para se entregar às excentricidades de Evie. Quando a ex-actriz decide obrigá-lo a acampar e a conduzir até à Escócia, Ben torna-se um verdadeiro poço de surpresas e Evie arranca verdadeiras verdades à sua juventude e inexperiência.

Julie Walters, também ela recentemente saída de uma personagem potteriana, junta-se a Rupert Grint em cenas irresistíveis, quebrando a lei que obriga um adulto responsável dentro de um carro guiado por um candidato a exame. As peripécias do filme são contadas de uma forma muito inocente, sob a interpretação fantástica de Walters e o talento incontornável de Grint. Depois de sufocar numa personagem tão idealizada em Harry Potter, é um alívio vê-lo neste filme a praguejar ou a corar de timidez. Para Grint, este primeiro passo num cinema mais adulto traz-lhe muita confiança: aqui, o actor está presente na tela, inspirando verdadeiras emoções a quem o vê.

Laura Linney interpreta a mãe de Ben, Laura, que, tal como Julie Walters, interpreta uma personagem nada simpática, pelo que mantém a frieza do início ao fim do filme. Está aqui o exemplo mais drástico da fachada hipócrita do seu casamento e da inocência que tanto a sua religião quer impingir. Por outro lado, ainda que oscilando entre a embriaguez e o hedonismo, Evie ensina a Ben a caminhar por si só fora da Bíblia e da mesma alegada rectidão moral que desvia Laura para fora do seu casamento.

O mais interessante em todo este filme é a forma como foi escrito e filmado: não há nada visualmente explícito, não há uma palavra desnecessária. A inocência é aparente e hipócrita, mas quem se apercebe disso é o espectador. Existem muitas coisas que contornam a certidão religiosa, embora isso nunca seja declarado abertamente: há trocas de olhares e sorrisos como se fosse normal isso acontecer, como se não fosse preciso explicar ao público o que se está a passar em paralelo ao quotidiano e à rotina. Esta perícia de Brock - verdadeiramente britânica - consegue alertar o espectador para a leveza das convenções e para o peso do seu respectivo contorno.

E existem ainda alguns pormenores que merecem atenção, tal como a brilhante e adequada banda sonora, o inteligente genérico, a exemplar fotografia e a excelente caracterização psicológica de todas as personagens. Para além de todo o aspecto técnico e da panóplia de argumentos críticos que se possam encontrar, Driving Lessons não é um filme sobre aulas de condução, é um filme bonito e enternecedor sobre como aprender a viver (com tudo o que isso implica).


Título/Ano: Driving Lessons (2006)

Escrito/Realizado por: Jeremy Brock

Elenco: Rupert Grint, Julie Walters, Laura Linney, Nicholas Farrell, Oliver Milburn, Jim Norton, etc.

sábado, fevereiro 24, 2007

O Último Rei da Escócia

O cinema americano, o de Hollywood entenda-se, tem destas coisas. Ciclicamente, que é como quem praticamente diz de ano a ano, pega num tema geral e consagra-o, consagrando todas as perspectivas à sua volta. Com Diamante de Sangue e O Último Rei da Escócia, África parece ser o pano de fundo deste ano. E, pese as diferenças, há pontos de contacto fortes entre os dois filmes. A figura de uma África dilacerada pela pobreza, quer económica quer humana, pela corrupção e por um jogo de influências que a ninguém parece interessar.

Diz Jorge Mourinha, a propósito de O Último Rei da Escócia, que “os óscares adoram números de actor”. Se assim for, deixe-se já aqui bem claro: o Óscar, como já aconteceu com o Globo de Ouro e o Prémio para melhor actor de várias associações de críticos, vai parar às mãos de Forest Whitaker. A interpretação do ditador do Uganda Idi Amin Dada é estarrecedora. Desde a pronúncia, passando pelo porte, pelo andar, pela expressão facial ou gestual, há ali verdadeiro trabalho de actor, de construção de personagem. Longe, muito longe de todos os estereótipos que abundam amiúde no cinema americano.

Sabe ainda bem ver um actor como Forest Whitaker reconhecido. Mas, se o facto agrada, não tanto quando se vê que acontece à custa do filme. O Último Rei da Escócia é mais do que Forest Whitaker. Não muito mais, mas há margem de manobra para além do trabalho de actor. Há um filme que ultrapassa o documentário à custa da personagem do médico Nicholas Garrigan. Uma visão que começa calorosa mas acaba fria sobre um Uganda que é apenas mais um país africano, no sentido da desgraça, da pobreza e do conflito. Politicamente, o melhor virá mesmo nas palavras da personagem de uma muito sumida Gillian Anderson, quando este refere a ciclicidade de ditadores, de regimes e de opressões.

Retrato do Uganda dos anos 70, quando governado com mãos de ferro por Idi Amin Dada, o filme é-nos apresentado pelos olhos do naif médico escocês Garrigan, recém chegado ao Uganda e recém fugido de casa. É a sua relação com o ditador, entre a descoberta e a desilusão, que pauta o filme. Daí a boa opção da realização. O que poderia ser um filme de tom morno, não o é quando visto à luz desta relação. O tom do filme é num crescendo contínuo de dramatismo cru, nem sempre bem conseguido, mas que acompanha bem a percepção de Garrigan. É quando a sua ingenuidade desaparece, que a ingenuidade do filme cai, revelando uma realidade bem mais fria e brutal.

A verdade é que fica na boca o mesmo travozinho amargo que sentimos com Diamante de Sangue, pela diferença entre o que foi e o que podia ter sido. Com a vantagem de que O Último Rei da Escócia não esconde ao que vem e apenas nos vandaliza sensorialmente, mas de forma consciente, perto do final do filme. A verdade, de novo, é que chegamos ao fim dos dois filmes com a mesma certeza na boca: This Is Africa.

Título: O Último Rei da Escócia
Realização: Kevin MacDonald
Elenco: Forest Whitaker, James McAvoy, Gillian Anderson, Kerry Washington, Simon McBurney, David Oyelowo e Abby Mukiibi Nkaaga.
Reino Unido, 2006.

Nota: 7/10

terça-feira, fevereiro 20, 2007

The Good, The Bad and The Queen

Um pouco em jeito de banda desenhada, onde em tempos de crise e vilões uma compilação de super-heróis se agrega, Damon Albarn toca a trombeta e faz reunir uma colectânea de renome intitulando-se de The Good, The Bad and The Queen, editando neste principio de 2007 um álbum homónimo. À chamada responderam o ex-Clash Paul Simonon, o guitarrista dos Verve Simon Tong e o baterista Tony Allen. Não obstante a já sonante reunião, a produção ficaria a cargo do ultra-aclamado Danger Mouse. Tudo isto, então, com o capitão da cruzada, Damon Albarn, à cabeça.

A carreira de Albarn tem sido tudo menos escorreita. Agarra a fama através dos belíssimos Blur, compondo acordes melódicos e melancólicos mas que sobreviviam a este estatuto por vezes redutor por escalarem com qualidade a intricada Pop Britânica. Depois vieram as experiência no Mali e, mais mediaticamente, os Gorillaz. E, quando parecia que os seus tempos mais indie tinham dado lugar à exploração electrónica e tecnológica do mundo animado, eis que atira, antes do cd, o single “Herculean” do seu novo trabalho.

O que se ouve em “Herculean” é uma síntese perfeita do que será o álbum, num trabalho espantoso de coerência numa unidade afirmativa e positiva. O que se ouve em The Good, The Bad and The Queen é o maior tributo à música dos Blur desde o fim destes. Um retorno às origens, a mesma essência Pop Britânica, os mesmos padrões estéticos. Esqueçam a força dos Gorillaz, esqueçam a experimentalidade da música do Mali. Peguem no The Best Of dos Blur e procurem a sua zona mais obscura.

Mas Albarn está diferente. Não é a mesma Pop desencantada mas pura. A sua voz está na mesma, mas o que a acompanha não. Há uma sujidade, um perder da inocência, uma noção de que a vida não é mesmo nada boa – como se percebe pelas constantes referências à guerra. Músicas como “History Song”, “80’s Life” ou “Herculean” são do melhor Blur estragado, no bom sentido, pelo clima de uma cidade como Londres. Este não é o melhor cd com que Albarn nos presenteou. Mas este Albarn maduro a pedir metáforas ao vinho do porto assenta-lhe mesmo bem.
Título: The Good, The Bad and The Queen
Autor: The Good, The Bad and The Queen
Nota: 7/10

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Diamante de Sangue

“This Is Africa.”

Diamante de Sangue consegue a incrível proeza de compilar as características que fazem dele um grande filme e, ao mesmo tempo, o reduzem de um brilhante filme. Diamante de Sangue fica a meio caminho entre o filme-manifesto e o filme de acção. A parte boa é que nem é apenas filme de acção, arrastando-se em intermináveis e desprovidas de sentido cenas de massacre sanguinolento, nem se esgota no filme-manifesto onde as fronteiras entre o bem e o mal se polarizam. Diamante de Sangue consegue recolher dos dois a melhor parte, mantendo o filme aceso e disperto com a vivacidade da guerrilha na Serra Leoa e, paralelamente, abrindo brechas na componente humana mais profunda da África dos seus personagens.

Contudo, Zwick perde em Diamante de Sangue a oportunidade da excelência por nunca permitir que o filme se afirme, exactamente, nem como filme de acção nem como manifesto. Talvez Diamante de Sangue pedisse uma abordagem mais semelhante a Cidade de Deus, desprovida de filtros morais, crua e nua. Porque é no fundo disso que se trata. Fruto do meio, o conflito civil na Serra Leoa na década de 90, o que vemos são crianças a matar crianças, aldeias dizimadas e uma luta constante pela liberdade individual expressa num diamante. Há um duvida constante se é a natureza humana que é corrompida mas é no fundo correcta ou se é a mesma que corrompe a sociedade. Zwick perde-se quando deixa que a sua boa consciência civilizacional se sobreponha à crueldade africana. Ganham-se alguns muito bons momentos de densidade psicológica elevada temperados com uma já mais típica emotividade bélica.

Mas, para além do bom filme recheado de boas intenções, para além das nomeações para os Oscars, para além do retrato de uma África mais profunda e verdadeira, para além da boa fotografia de Eduardo Serra, a grande conquista deste Diamante de Sangue são as duas grandes interpretações de Leonardo Di Caprio e de Djimon Hounsou. Hounsou, verdade seja dita, não está muito diferente do que lhe vimos em Gladiador, mas a verdade também é que esta versão de herói de bom coração e melhores intenções lhe assenta como a ninguém. Em relação a Gladiador, aparece mais maduro, com maior versatilidade e maior possibilidade de se expandir na procura de uma personagem de grande intensidade e força.

Quanto a Di Caprio, revela-se cada vez mais, e passando a analogia óbvia do trabalho com Scorsese, parecido com De Niro. Um actor versátil, com inteligente gestão de carreira, que consegue conjugar o lado mais comercial com o lado mais independente, sem esquecer o trabalho com grandes realizadores ou os filmes de causa. Começa em Titanic, rever A praia, O Aviador, Gangs de Nova Iorque e The Departed, e acabar com Diamante de Sangue confere uma boa ideia da ascensão qualitativa de um dos melhores jovens actores do momento. Diamante de Sangue poderia ter sido um muito melhor filme. Mas que ninguém duvide que estamos perante um dos mais sinceros retratos da África profunda e conflituosa. This is Africa.

Título: Diamante de Sangue
Realizador: Edward Zwick
Elenco: Leonardo Di Caprio, Djimon Hounsou, Jennifer Connelly, Arnold Vosloo, Kagiso Kuypers e Antony Coleman.
E.U.A., 2006
Nota: 7/10

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Bobby

Escrito e realizado por Emilio Estevez, o filho mais velho de Martin Sheen, Bobby combina, com alguma alegria, a campanha do Senador Robert Kennedy nas eleições primárias e a vida agitada de vinte e duas outras personagens. Tudo isto se passa no Hotel Ambassador, a sua sede de campanha, no dia em que ele foi assassinado. Este emaranhado de personagens ajuda a criar o ambiente que se vivia nos anos 60, descreve as tensões raciais e sociais que se sentiam na altura, lida com a ameaça iminente do Vietname e com a ascensão de uma cultura pop centrada nas drogas. Embora nenhuma personagem tenha uma história arrebatadora – o próprio Kennedy funciona como uma sombra – há que destacar que todas elas explicam ao espectador a necessidade que o mundo tinha de um homem como Bobby Kennedy.

Dentro do hotel, tomamos contacto com uma atmosfera onde se respiram ideais elitistas e falsos moralismos. Conhecemos a cantora alcoólica Virgina Fallon (Demi Moore) e o seu submisso marido Tim (Emilio Estevez), olhamos para a vida de um amargurado homem (Martin Sheen) e da sua mulher supérflua Samantha (Helen Hunt) na demanda de um par de sapatos pretos. Vivemos as primeiras experiências de LSD de dois jovens apoiantes de Kennedy sob a perspectiva pseudo-hippie de um traficante de droga com ares de zen (Ashton Kutcher).

No lobby do hotel, o já aposentado porteiro John Casey (Anthony Hopkins) joga xadrez e diz umas quantas frases com sentido, uma jornalista checoslovaca (Svetlana Metkina) quer à força uma entrevista com o Senador Kennedy, embora esta lhe seja recusada pelo esterótipo do americano inculto (Joshua Jackson) – que não sonha sequer onde fica a Checoslováquia e que confunde Socialismo com Comunismo. E há, claro, a esteticista deste role de personalidades (Sharon Stone) que tenta salvar o seu casamento e encoraja uma sardenta noiva americaníssima (Lindsay Lohan) a casar com um dos seus colegas de escola (Elijah Wood) impedindo-o de morrer no Vietname.

Nas cozinhas, o gerente do hotel Paul Ebbers (William H. Macy) luta contra as atitudes racistas, fechando-se depois numa relação adúltera com uma telefonista (Heather Graham). Enquanto isso, os empregados da cozinha vivem uma tensão racial imensa, salva apenas pelas pérolas de sabedora do chef Edward (Lawrence Fishburne) ainda com muito ar de Matrix.

Se parece impossível explorar vinte e duas personagens em duas horas, então Bobby é um filme interessante. No final, independentemente da relevância das histórias e peripécias, e ainda que algumas coisas não pareçam encaixar muito bem, temos um mosaico muito bem construído, com alguns momentos a tender para o comovente. Assim sendo, é fácil achar Bobby um filme bom. Porém, depois de alguns actores desfilarem diante dos nossos olhos, o juízo acaba por ser outro: esqueça-se a coerência e a consistência das histórias, pegue-se na mensagem. O problema é o medo que se tem de que a mensagem, tal como a boa montagem de imagens reais de RFK na película, se dilua num filme a meio gás.

A acção está muito ritmada, goza de uma frescura interessante, a fotografia é boa. O espectador traduz tudo isso para: este filme faz ressoar a situação política americana dos dias de hoje… até se pode ler um desejo de tirar os republicanos e o seu ideal conservador de trazer por casa para fora de Washington. É por isso que ficam tão bem os comentários anti-racistas, os momentos climáticos com "The Sound of Silence" de Simon & Grafunkel, a sequência final com o fantástico discurso de Robert Kennedy, a emoção que nos prende nos assentos a ver as fotografias históricas do clã Kennedy.

Esquecemos tudo o que se sabe sobre RFK quando nos sentamos para ver este filme e este não é um filme sobre um homem, sobre Bobby. Este é um filme sobre quem precisou de Bobby, de quem precisava de projectar em alguém todos os desejos de mudar o mundo, de tornar os E.U.A. num local socialmente habitável e moralmente perfeito. Isto dá ao filme uns agradáveis contornos actuais, ou seja, cada espectador vê em Bobby qualquer coisa que quer ver. E, aparentemente, isso funciona, o que, apesar de não ser necessariamente mau, não é suficiente para cobrir muitas das falhas deste filme.


Título/Ano: Bobby (2006)

Realizado/Escrito por: Emilio Estevez

Elenco: Anthony Hopkins, Demi Moore, Sharon Stone, Elijah Wood, Harry Belafonte, Nick Cannon, Emilio Estevez, Laurence Fishburne, Heather Graham, Helen Hunt, Ashton Kutcher, Shia LaBeouf, William H. Macy, etc.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Bloc Party - A Weekend In The City


Parece que o segundo álbum se tornou uma espécie de prova dos nove que toda e qualquer banda deve superar. Chegou-se agora a um ponto em que o segundo álbum é visto como, regra geral, um sacrifício. Uma caminhada de pés descalços sobre as brasas. Embora seja verdade que, por norma, o segundo álbum envolve todo um processo psicológico que inclui tomar conhecimento das expectativas (dos fãs, da crítica e dos próprios músicos em relação à sua música) e reagir a elas, não foge muito da intensidade da pressão que rodeia a estreia ou, em rigor, outro momento qualquer. Criou-se esta ideia de que o segundo álbum é não apenas o que se segue ao primeiro, mas sim o “difícil segundo álbum”, uma espécie de parto doloroso. Construída a ideia, torna-se fácil encontrar uma mão cheia de exemplos que a corrobora. A tese pretende estabelecer um facto: quando o sucesso atingido no primeiro álbum é grande, a sequela destina-se, com grande probabilidade, ao fracasso. Esta tese, para além de ser contrariada por vários casos, faz com que muitos tendam a esperar esta mesma hecatombe antes de escutar o álbum.


Este ano os Bloc Party afiguram-se, para alguns, como os possíveis novos membros dessa suposta galeria de bandas que derraparam à segunda tentativa. O êxito estrondoso de Silent Alarm, através de três ou quatro êxitos que de novo reintroduziram o rock nas pistas de dança, fez crescer água na boca a muitos fãs. A infecção do pós-punk, realizada nas primeiras faixas de Silent Alarm, convenceu uma certa parte dos admiradores que não notou (ou não quis notar) que havia ali algo mais que a satisfação dos jovens ocidentais mais hedonistas. Que, para além das guitarras angulares, dos riffs irresistíveis, havia uma agenda ali. Uma agenda que é personificada por Kele Okereke, vocalista e figura proeminente da banda. Em todas as entrevistas da banda, o rapaz do século XXI (para o Guardian) acaba por mostrar, mesmo que de uma maneira um pouco confusa, que há uma pretensão de se atingir algo maior que a euforia adolescente. Há melancolia, depressão e até significados políticos (oiça-se “Price Of Gas”, de Silent Alarm). E é esse lado que se desenvolve em A Weekend In The City.

Neste álbum, os Bloc Party aproximam-se dos TV On The Radio tanto quanto se afastam dos Gang Of Four. Os sintetizadores ganham força e, embora nunca surjam destapados, revelam o impacto que o R&B tem na banda, nomeadamente as produções de Timbaland. Produzido por Jacknife Lee (que, a propósito, gravou umas compilações musicais para a banda escutar, com nomes tão díspares como Amerie e Isolée), A Weekend In The City mostra-nos uns Bloc Party no caminho de se tornarem na banda de suporte de Kele Okereke e da sua voz em mutação. Kele quer, ambiciosamente, retratar o burburinho da metrópole londrina na sua expressão mais moderna e fresca – o relato de uma geração que não se deixa unir por um sentimento colectivo, que convive com uma data de realidades semi-ocultas até há umas décadas atrás, desde o efeito sedutor das drogas até à descoberta de que a sexualidade é mais ambígua do que parece, passando pela frustração de se acharem como peões numa guerra internacional vergonhosamente encenada. Esta geração ocidental do myspace e do Youtube é, contudo, mais aérea e tola do que ele julga. Fora do mundo anglófono, será que os jovens admiradores da banda vão mesmo prestar atenção ao que ele diz? Agora que os Bloc Party se querem tornar um banda de rock a sério, como eram as do passado, servindo-nos um álbum que é simultaneamente uma tela e um protesto, mesmo que esteticamente com pés de barro, haverá uma geração que os queira ouvir?

É discutível. O problema é que eles passaram do anonimato ao estrelato devido ao apelo dançante de “Like Eating Glass” e “Banquet” e não a considerações sociológicas ou afins. Agora há poderosos refrões, com conteúdo e energia, como em “Song For Clay (Disappear Here)”, “Hunting For Witches” e “The Prayer”, mas raramente há uma constância que permita o delírio e a agitação ao longo de cada faixa. Agora há significados, mais do que em Silent Alarm. Há um activismo latente na forma de rock, que lhes pode valer o epíteto de “chatos”. Mas, mais que mandatários da sua geração, são o espelho da dispersão da juventude numa série de intentos, da expressão política à preguiça, do medo do futuro à sublimação do presente. O que, de certo modo, acaba por se ajustar à realidade do século que há pouco principiou.



Nota: 7/10

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

A minha mulher


“Quem já viveu no campo durante o Inverno e conhece a monotonia dos longos serões, tristes e calmos, em que nem mesmo se ouvem ladrar os cães ao longe, no negrume da noite, e até os relógios parece que estão cansados de bater o seu tiquetaque; e aqueles que, nessas noites, foram despertados pela voz da consciência, de súbito alarmada, e tentaram ora dormir, ora analisá-la, compreenderão como me distraía e deliciava a voz de minha mulher, num quartinho confortável, ainda quando me dizia que era um homem perverso…”

Anton Tchékhov será provavelmente mais conhecido como dramaturgo. Para além da importância extrema que teve junto do movimento teatral criado na Rússia, cuja expressão maior é o conhecido Teatro Artístico de Moscovo, são peças como A Gaivota, O Tio Vânia ou As Três Irmãs que melhor representam o autor junto do público português. Não só porque são, amiúde, representadas, mas também porque o leitor português é, na maioria dos casos, pouco dado ao conto.

País assumidamente de poetas, raros são os autores exclusiva ou maioritariamente de contos que singram em Portugal. E mesmo nos melhores casos, como acontece com Eça, este é relevado em prol do romance. Acontece que Tchéckhov, para além de incisivo dramaturgo é exímio no manejo do conto, ou antes, da narrativa breve. É o caso de A minha mulher, livro cuja versão de Luiz Pacheco chegou, pela Editora quasi, o ano passado à estampa.

O que perpassa pelas variadas peças de Tchékhov é um marasmo constante, um sentimento generalizado de inércia social, uma sobrevivência como oposição à vida que, tradicionalmente, é vista em teatro. Este deslindar da sociedade que tão bem Tchéckhov consegue é uma vez mais o mote da sua obra. E, não podendo recorrer tão assiduamente à fala das suas personagens, o autor refugia-se na cabeça do seu narrador participativo, Pavel Anndreievitch, a figura central desta história.

Tchéckhov divide o romance em dois planos. Não em dois planos de acção, que esta decorrer num tempo único, mas em dois planos de entendimento. O plano da vida pessoal de Pavel e da sua mulher Nathalie e o plano do pano de fundo da sociedade russa. Para correcto entendimento, diga-se que ambos se cruzam e entrecruzam e o culminar de ambos é uma solução comum, ainda que não aparentemente: a humildade na resolução dos problemas.

No jogo da vida pessoal deparamo-nos com o isolamento cada vez mais acentuado entre o casal, em grande parte causado pelo orgulho e presunção de superioridade de Pavel. Este distanciamento, a que a vida recatada de uma pequena localidade não é alheia, é também uma metáfora da atitude do mesmo perante a fome e a miséria que o rodeiam. A sua resposta sempre sobranceira é a causa dos seus problemas matrimoniais e da sua falta de acção a nível social.

A minha mulher oferece, assim, um retrato incisivo mas subtil da Rússia contemporânea de Tchéckhov ao mesmo tempo que nos entretém com a confusão psicológica de Pavel face aos complexos problemas matrimoniais que atravessa.

Título: A minha mulher
Autor: Anton Tchéckhov

domingo, fevereiro 11, 2007

Rocky Balboa

A verdade é que se estava mesmo a ver. Pegando na história de sempre, cheio de nostalgia e revivalismos, Stallone volta a trazer para a ribalta o seu Rocky Balboa. Seu na medida em que Stallone tem tanto de Balboa como Balboa de Stallone. Do carácter que transparecem à musculatura do mundo onde se inserem, torna-se complicado discernir quem é a metáfora de quem. Rocky Balboa, o fim da saga, é um filme para fãs, no capítulo da revisitação, e para ele próprio, Stallone, que, mais do que se aperceber que é Balboa, o assume.

Rocky Balboa revisita a história do lutador de boxe homónimo criado em 1976 no oscarizado Rocky, um dos pilares maiores do cinema sobre o mundo do boxe. A fórmula do filme actual não foge muito de Cinderella Man: Ex-boxeur reformado por todos menos pela sua vontade pretende um comeback contra o rival mais novo, ágil e rico. O paralelismo entres os dois filmes é notável, com a excepção de que Crowe luta pela sua família e Stallone por orgulho e raiva.

Ainda neste capitulo, a comparação leva-nos para um dos pontos mais fracos de Rocky Balboa: o adversário. Longe do charme de Apollo Creed ou da ferocidade de Clubber Lang, é um muito apagado Mason Dixon, interpretado por Antonio Tarver, que se apresenta como o boxeur em jeito de rapper que a principio exala arrogância mas entretanto se converte ao charme resistente de Stallone. Nem o conflito com Balboa é suficiente para empolgar, nem a personagem e os dilemas de Dixon são explorados.

Depois, para além da previsibilidade e da mediocridade do guião, surge a homenagem a si próprio, à saga, e ao mito. A mítica subida das escadas, a luta no matadouro, em suma todo o período pré-combate são momento alto para quem viu nascer com Rocky um modo de cinema de luta. Mais que isso, fica a boa interpretação de Burt Young e a boa intenção de caracterização da decadência do herói. Mas que mesmo assim se levanta.

Neste autêntico one-man-show, em que Sylvester Stallone escreve, dirige e interpreta, fica a certeza do fim da saga de Rocky, num caminho continuamente descendente. Por entre metáforas de vida mais ou menos subtis, o filme encontra pelo menos um bom incentivo para ver Rocky Balboa no cinema. É a ultima vez.

Título: Rocky Balboa
Realizador: Sylvester Stallone.
Elenco: Sylvester Stallone, Burt Young, Milo Ventimiglia, Geraldine Hughes e Antonio Tarver.
E.U.A., 2006

Nota: 4/10

sábado, fevereiro 10, 2007

Babel

Babel é um dos filmes mais falados nos últimos meses, um sucesso de bilheteira, um favorito na corrida aos Óscares. Transporta consigo uma aura quase messiânica de uma promessa de um filme a sério, de um produto artístico. Realizado por Alejandro González Iñárritu, Babel é efectivamente filme maravilhoso e um dos filmes que se destaca de todo o cinema que se faz nos dias de hoje. Prima assim pela diferença, pela qualidade e nunca pelo estrondoso número de nomeações que traz atrelado à sua fama.

Por muito que já se tenha sido visto no cinema (em Magnolia ou mesmo em Crash), a acção repartida por espaços distintos, com histórias e personagens relacionadas é uma fórmula re-inventada por Iñárritu: a prodigiosa câmara do realizador mexicano leva-nos a Marrocos, à fronteira entre o México e os Estados Unidos, e ao Japão, em três histórias paralelas. Em Marrocos, o americano Richard (Brad Pitt) tenta salvar a sua mulher Susan (Cate Blanchett) depois de um ferimento quase mortal. Na fronteira, a desesperada Amelia (Adriana Barraza) regressa com duas crianças americanas ao seu solo natal. No Japão, Chieko (Rinko Kikuchi) vive atormentada pelo suicídio da mãe e pela ausência do pai.

O mito bíblico de Babel diz respeito à construção da torre homónima, uma tentativa inglória por parte dos Homens com o intuito de alcançar o céu. Deus acaba de vez com a ambição e a arrogância humanas, provocando uma diferenciação linguística: criam-se idiomas diferentes, línguas diferentes, provocando o caos. No filme, em três situações muito distintas, no seio de três povos diferentes, no meio de culturas diferentes, com línguas diferentes, seres humanos tentam sobreviver. Travam a mais dura das batalhas, atravessando o limiar da língua, do dinheiro, da religião. Iñárritu desprotege os nossos sentidos quando introduz dialectos, linguagem gestual ou alterações na audição. Pinta um quadro objectivo de situações concretas, sem recorrer a insinuações ou factos históricos.

Com uma realização tão perfeita, contamos também com interpretações fabulosas: Brad Pitt alcança um dos seus grandes momentos no cinema neste filme, Cate Blanchett resplandece, como vai sendo hábito, Gael García Bernal surpreende mais uma vez com o seu Santiago (sobrinho de Amelia). Excelentes interpretações alinham-se a mudanças súbitas quer a nível geográfico quer a nível cronológico. Momentos verdadeiramente poéticos desafiam a belíssima fotografia, num conjunto perfeitamente enquadrado com a banda sonora de Gustavo Santaolalla (onde se ouve também uma música de Ryuichi Sakamoto).

Babel traz muito de fresco à sala de cinema, envolvendo o espectador nas histórias profundas e intensas, expressas em línguas provavelmente desconhecidas. Junta as peças que inadvertidamente são apresentadas, dividindo papéis entre actores consagrados e actores menos conhecidos (e não menos extraordinários) de um modo equilibrado, conferindo ao filme um tom diferente das produções hollywoodescas. Baseia-se sobretudo numa idea muito bem trabalhada, que vai muito além de filmes semelhantes na sua forma de narração interrompida e baralhada (como o Traffic – Ninguém Sai Ileso de Steven Soderbergh).

Ainda que ofereça um tom documental em certos momentos de algumas histórias, Babel é um dos grandes filmes de 2006 e uma excelente criação artística de Alejandro González Iñárritu. Mesmo encontrando algumas imperfeições no modo como o guião está escrito, o filme é um grande momento de cinema, é uma experiência que abraça profundamente as culturas do mundo em que vivemos. Consegue observar, narrar, poetizar como só Iñárritu consegue.


Título/Ano: Babel (2006)

Realizado/Escrito por: Alejandro González Iñárritu / Alejandro González Iñárritu & Guillermo Arriaga

Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael García Bernal, Kôji Yakusho, Adriana Barraza, Rinko Kikuchi, etc.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Prateleira #10 - 1996

Ryuichi Sakamoto tem aproximadamente oitenta álbuns disponíveis no mercado, sendo a grande maioria bandas sonoras. A destreza deste compositor japonês é imensa… movimenta-se nas bandas sonoras com uma agilidade estética e uma pertinência absolutamente maravilhosas. O seu antepenúltimo disco diz respeito à banda sonora do filme Babel de Alejandro González Iñárritu.

No seu álbum 1996, Sakamoto reúne David Nadien, Everton Nelson e Jacques Morelenbaum num trio de piano, violino e violoncelo. Sakamoto senta-se ao piano, Nadien é responsável pelo violino em Rain e The Sheltering Sky, Nelson faz uso do violino nas restantes faixas, e o violoncelo fica a cargo de Morelenbaum. Depois de um percurso repleto de bandas sonoras de grande qualidade e de grande adaptação na tela, seria de esperar qualquer coisa de muito bom se o compositor algum dia compilasse os seus melhores momentos num disco só. Sakamoto fá-lo, longe da música electrónica e do pop (onde se movimentou com grande facilidade e qualidade, também), num disco onde adapta as suas mais belas partituras tocadas por um trio.

O trio de cordas, muito usado por grandes compositores como Schubert, Prokofiev, Bartók, entre outros, consegue atingir níveis de grade fluidez musical, o que, aliado a uma simplicidade instrumental, permite momentos de grande beleza. Os três instrumentos em destaque permitem uma conjugação muito própria – que Sakamoto desafia, muito bem, diversas vezes – levando à exploração de combinações de ritmos, vozes melódicas e harmonizações muito interessantes. No entanto, ainda que com alguns bons sobressaltos, Ryuichi Sakamoto constrói uma linha melódica que é expressa por um dos três instrumentos, desenvolvendo-a, depois, a partir do conjugar dos restantes. Um exemplo claro deste tipo de fórmula, que, como já referi, não é perfeitamente linear, é bastante visível aquando do desenrolar de uma melodia no piano, atacada posteriormente pela entrada das cordas.

A primeira faixa deste disco é A Day A Gorilla Gives A Banana, uma faixa que se inicia com uma melodia no piano, acompanhada de seguida pelas cordas, desenvolvendo-se assim uma conjugação harmónica muito agradável, acompanhada por um ritmo diferente e bastante saliente.

Segue-se Rain, uma faixa onde a música começa abruptamente, com o violino a demarcar a melodia, acompanhado pelos acordes em staccato no piano. A música continua, explorando o tema, desenvolvendo a melodia, acabando até para se passar a ter a linha melódica no piano e um acompanhamento por parte do violino, subvertendo assim algo de muito convencional neste tipo de conjugação instrumental. Destaque para uma secção intermédia muitíssimo bem conseguida e para a cadência que leva de novo ao tema original, já com a voz grave do violoncelo a realçar o que se diz no piano.

Bibo No Aozora traz-nos um ritmo mais lento, mais comedido, sem hesitações, o que, apesar de não ser necessariamente mau, fica aquém do toque não convencional que se espera. Ainda assim, a melodia é de extrema perfeição e as suas variações são perfeitamente deliciosas.

The Last Emperor constrói-se sempre com base no bonito fraseado das cordas, trazendo algumas reminiscências da música oriental. Prima, assim, por uma diferença ao nível do que ouve, não tanto ao nível do conteúdo. Alguns trechos do piano na música trazem, também, um pouco de algumas partituras mais excêntricas de Debussy.

1919 é, de longe, a faixa mais perturbadora deste disco, no entanto, é também uma das mais interessantes. Para além dos três instrumentos que estão na ordem do disco, acrescenta-se uma voz sobre os acordes rasgados no piano e a insanidade musical do violoncelo. Relembra os quartetos de cordas de Nyman pela adição de uma voz demente sobre a música, e algumas obras de Glass pela natureza intempestiva da partitura.

Seguidamente, escuta-se Merry Christmas, Mr. Lawrence, uma das faixas mais bonitas deste disco. O piano começa, ténue e melancólico, até à entrada de um tremolo das cordas que se silencia no segundo em que o piano retoma a melodia, primeiro mais grave para depois retomar as notas mais agudas. O violino fica, posteriormente, a cargo da melodia, sempre suave e na mesma disposição dos intervalos no piano. Há, então, um retomar do tema no piano, para depois se converter, com uma passagem absolutamente brilhante, numa sequência impressionantemente perfeita de acordes no piano e de uma marcação de um ritmo brilhante no violoncelo. Aqui, o tema melódico regressa, belíssimo, no piano até que muda para o violino no seu tom original, sempre acompanhado pelo ritmo no piano e no violoncelo. Desenvolve-se o tema crescendo a intensidade… o final surge com um novo tremolo e uma repetição rápida de notas no piano que cedo se convertem ao silêncio.

M.A.Y. In The Backyard oferece-se enquanto um fantasma das Gnossiennes de Satie, embora cedo tenha algumas alucinações pelo meio, bem mais ao estilo de Bártok. Ainda assim, consegue resgatar passagens muito bem explícitas, excelentes encontros de estilos e de maneiras de fazer música. Um excelente medley de inspirações plenas de espontaneidade.

O piano calmo e doce é retomado em The Sheltering Sky, uma faixa lenta e dolorosa, com uma melodia muito bem conseguida num violino agudo, ao passo que o piano acompanha noutra voz. A melancolia defende-se até se arrastar para um momento intermédio, mais negro e profundo, que cedo se expande para movimentos e fraseados subtis sobre o piano e o violino.

A Tribute To N.J.P. é uma faixa misteriosa e desprovida de convenções. Cada instrumento parece independente de si, embora acabe por completar os outros. Prova de que o conjunto é mais do que a soma das partes que o constituem. High Heels (Main Theme) retoma uma melodia lenta, num ritmo muito dançante, muito elegante e melancólico. O piano marca claramente toda a melodia, embora o violino se mova com especial vivacidade, sem excessos, sem sombrear em demasia o piano e o maravilhoso pizzicato no violoncelo.

Sakamoto relembra de novo Satie, desta vez em Aoneko No Torso, faixa onde o piano recorda as três Gymnopédies do compositor francês. Na verdade, a inspiração pode muito bem ser a impressionista, porém, Sakamoto consegue ser original na composição de texturas bem diferentes das de Satie. Assim, temos uma música dócil, lenta e bem distribuída, sem nada a mais.

The Wuthering Heights é uma das mais belas músicas de Ryuichi Sakamoto, balanceada no confronto quase audível entre a calma do violino e a sonoridade do piano, que crescem numa ondulação até novos compassos cheios de uma apaixonante energia. A faixa desenvolve-se, repleta de contrastes mesmo dentro de cada instrumento, até se chegar a um final arrepiante.

A penúltima música do álbum, Parolibre, começa por ser uma pequena peça para piano, bem ao estilo das Kinderszenen de Schumman. Então, o piano mexe-se em harpejos para a dar voz ao violino que retoma a melodia. Esta é a faixa mais clássica de Sakamoto, mas bastante bem definida nas “regras” que, muitas vezes, o compositor contorna. Por último, ouve-se a música dos créditos do filme Little Buddha, Acceptance (End Credit) - Little Buddha, uma faixa bastante lenta, que vive sobretudo da harmonia no piano e da conjugação dos instrumentos.

Assim sendo, 1996 é um disco de grandes momentos da carreira de Sakamoto, compilando adaptações e novas versões de temas seus. Ocupa um lugar de destaque por se afastar do estabelecido, por se moldar por regras próprias, por criar uma estética nova sem estar longe da sua cultura e do panorama musical ocidental. Um disco necessário para quem quer uma nova perspectiva, para quem procura um novo olhar sobre as bandas sonoras, para quem quer conhecer a partitura e a interpretação de Ryuichi Sakamoto.


Título: 1996

Artista/Compositor: Ryuichi Sakamoto, David Nadien, Everton Nelson & Jacques Morelenbaum / Ryuichi Sakamoto

Ano: 1996

Maurice

People were all around them, but with eyes that had gone intensely blue he whispered, “I love you”


Ainda que publicado postumamente, Maurice tornou-se uma obra fundamental de E. M. Forster (em conjunto com A Room With a View e A Passage to India) e, apesar de ter sido escrito sessenta anos antes da morte do seu autor, só conseguiu efectivamente conquistar a literatura passados alguns anos dessa data. O escritor britânico impediu sempre a publicação da obra, uma vez que o Reino Unido condenava quer legal quer moralmente a homossexualidade. Ainda assim, depois de publicado, Maurice tornou-se não só um livro revolucionário, onde uma história de descoberta sexual e erótica toma lugar, mas também um livro em que os bons costumes da sociedade britânica são abalados por mudanças nos modos de pensar.

O talento de E. M. Forster consagrou-o um dos melhores escritores do século XX, facto não abalado pela sua homossexualidade (também ela “assumida” postumamente). Na verdade, Forster deixou em Maurice a derradeira prova da beleza da sua escrita, da profundidade de um amor considerado perfeitamente imoral e ilegal na época em que vivia, da fantástica descrição de um percurso intenso de auto-descoberta. Muito para além de factos históricos e de suposições revolucionárias, o mérito literário subsiste e aventura-se muito mais além do que um mero desafio à Lei Britânica: Maurice marca uma nova dimensão na Literatura Moderna e na obra de E. M. Forster.

Maurice Hall vive confortavelmente uma vida típica da classe média, com alguma estagnação intelectual. Antes da sua entrada no liceu, Maurice ouve as palavras de um professor. Este momento, no meio de uma caminhada, marca o início do livro e marca também a vida de Maurice: o professor explica-lhe a visão moral do amor livre, apenas concretizável na diferença entre os géneros. Esta dimensão quase inibitória vai ser a sombra do jovem ao longo do seu crescimento, à medida que compreende que não quer para si um estilo de vida pré-definido, mas sim qualquer coisa de maior e de melhor, qualquer coisa de diferente que ainda não compreende por completo. À medida que progride nos seus estudos académicos, Maurice vai se conformando ao estabelecido, sem nunca compreender o fenómeno que, embora não afaste da sua consciência, não mantenha propriamente junto dos seus pensamentos: a sua atracção homossexual.

Então, Maurice começa a frequentar a Universidade de Cambridge, onde conhece Clive Durham, um intelectual abastado que leva Maurice a pensar em tudo o que, até aí, lhe havia assaltado a mente. Clive e Maurice iniciam, assim, um percurso onde existe um despertar sexual. A relação mantém-se à margem da sociedade, à margem dos amigos, atirada para tardes passadas no quarto um do outro ou no campo. Aqui, Forster mostra-nos uma visão muito bonita deste amor: sem desligá-lo da componente física, descreve de um modo terno e doce como o amor entre dois homens tem contornos semelhantes ao amor heterossexual. Através de Clive, e estudando os Gregos, Maurice compreende finalmente o que se passa consigo, ainda que de um modo algo enevoado.

Maurice é então confrontado com a visão de Clive. O seu amante pretende casar e seguir a sua vida de acordo com a normalidade imposta socialmente. Chocado, Maurice rejeita por completo uma vida ao lado de uma mulher, sem qualquer tipo de prazer sexual. Depois destas desavenças, os dois amantes são forçados a ser separados. Maurice Hall regressa a casa, onde é confrontado com a realidade social, tão ambicionada pelo seu amigo Clive: o casamento, a família, o amor abençoado entre um homem e uma mulher. Assustado, Maurice recorre à opinião de um psiquiatra, alegando que é um dos do género de Oscar WildeForster recorre a uma ironia muito subtil nesta cena, mesmo quando o psiquiatra explica a Maurice que não existe nada a fazer, que a ciência não tem resposta, que não compreende, que a sociedade também não compreende e condena. Sobretudo isso… a sociedade condena.

Procurando um escape, Maurice tenta encontrar o seu companheiro dos tempos de faculdade… descobre que está casado e que, aparentemente, a sua vida voltara ao normal. Aceita, pois, um convite para passar por casa de Clive durante alguns dias. Atormentado pela culpa, abandonado pela sociedade, Maurice trava conhecimento com Alec, um jovem que trabalha na propriedade de Clive. Deste encontro nasce um novo relacionamento, mais feroz e mais apaixonado do que a relação de Maurice e Clive, muito mais idílica. Esta relação nasce sobretudo da diferença entre as classes dos dois: Maurice é um cavalheiro, que estudou em Cambridge e tem um emprego estável, Alec Scudder é um simples moço de recados, um criado, um ser menor.

As noites nos braços um do outro tornam-se cada vez mais frequentes. Forster delineia este amor de uma forma gradualmente mais intensa. Maurice confronta Clive com a relação que tiveram, comparando-a à que tem agora com Alec. Estupefacto, Clive não se mostra estupidamente compreensivo, como seria de esperar, facto que atira Maurice de novo para os braços de Alec. Esta relação mantém-se até ao dia em que Alec decide viajar, sem retorno, para a Argentina, abrindo um caminho para um final especialmente tocante, especialmente bonito.

E. M. Forster consegue seguir Maurice num livro considerado por muitos como autobiográfico. Apesar de a homossexualidade ter sido despenalizada legalmente, continua a ser penalizada moralmente, até nos dias de hoje, pelo que realço a forma como a aproximação de Forster a alguns temas está dotada de uma perspectiva diferente: o seu modo de olhar com carinho onde outros tantos olharam com ódio marcou a Literatura, abrindo portas para um tipo de Literatura honesta e sem pudores. Por mais que apaixone, por mais que desafie, por mais que explicite na perfeição um sentimento, atinge-se em Maurice um novo patamar na Literatura, mesmo recorrendo a símbolos para ilustrar acções, mesmo utilizando muito movimento para delimitar o sossego. As palavras não poderiam ser outras, o contexto não poderia ser outro, Maurice Hall não poderia ter feito nada de maneira diferente.

Um autor perfeito, uma história perfeita, um livro perfeito. Sem moralismos ou juízos de valor.


Título: Maurice

Autor: E. M. Forster

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

BES Photo 2006

Em exposição na Galeria 3 do C.C.B., desde 19 de Janeiro último e até 18 de Março, encontra-se a colecção de fotografias que este ano concorre ao prémio BES Photo 2006. É de uma parceria entre o banco que dá nome ao prémio e a instituição que acolhe a exposição que nasce esta iniciativa que vai já na terceira edição e cujo vencedor será anunciado a 27 de Fevereiro. O que podemos ver nesta exposição é uma mostra dos quatro concorrentes, numa selecção díspar de fotografias cuja temática não abunda nem é frequentemente visitada em Portugal.

Longe do fotojornalismo, face mais visível da fotografia a nível mediático, e da fotografia mais clássica, a que o grande público mais está habituado, esta exposição é um olhar muito interessante sobre a afirmação e a originalidade da fotografia enquanto objecto puramente artístico e estético ainda que, no caso em questão, bastante centrado na pessoa.

Todos naturais de Lisboa, os autores em questão são Vasco Araújo, Susanne Themlitz, Daniel Blaufuks e Augusto Alves da Silva. Com percursos diferentes, mas de gerações razoavelmente próximas, são estes os nomes que verão os seus trabalhos ser apreciados por um júri composto por Pepe Font de Mora, Kate Bush, Manuel Castro Caldas, Olga Sviblova e Teresa Siza.

Susanne Themlitz, com os seus Territórios e Estagnações Ambulatórias, traz-nos um universo para além do onírico, sentimentos humanos de solidão fundamentados em bases de ficção científica. Há uma construção da personagem que cria, e ultrapassa, o conceito impresso em cada fotografia. Vasco Araújo, com os seus Trabalhos para nada remete também um pouco para a solidão, ainda que assente a sua estética sobre o contraste entre o homem e o quotidiano que o rodeia, quer na loucura, quer no deserto da espera. É, aliás, de Vasco Araújo, da sequência O homem que confundiu a sua Mulher com um Chapéu, a fotografia que encabeça este texto.

Posteriormente, enquanto Augusto Alves da Silva oferece uma visão quase voyeur da busca da beleza por parte do homem, Daniel Blaufuks percorre caminhos cromáticos em torno do homem, da estética quer da cor quer do conceito, como o exemplificam uma porta aberta em nome da espera. É esta a compilação em mais uma das boas exposições que o C.C.B. nos oferece. A visitar, no sitio do costume, até 18 de Março.

Título: BES Photo 2006
Autores: Augusto Alves da Silva, Daniel Blaufuks, Susanne Themlitz e Vasco Araújo.
Galeia 3 Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Moby Dick


Umas das peças de teatro que gerou mais expectativa no início do presente ano foi Moby Dick. Em cena no Teatro Municipal São Luiz, vários são os motivos que suscitaram interesse prévio no público português. A adaptação da famosa obra de Herman Melville para os palcos é provavelmente o que mais chama a atenção das pessoas. Outro foco de curiosidade prende-se com os habituais actores de comédia, Maria Rueff e Miguel Guilherme, interpretarem papéis dramáticos. Por último, outro factor que apela o público ao teatro é a sala em que o espectáculo está em cena. O Teatro S. Luiz é um dos espaços da capital mais atractivo culturalmente e com um programa para o ano 2007 promissor.

Confesso que tenho um grande handicap perante esta peça de teatro: não li o livro Moby Dick. No entanto, o interesse pela encenação da minha parte não foi menor. Não posso, contudo, avaliar o sucesso da adaptação da obra para o registo dramático. Só posso apreciar o espectáculo como peça de teatro. E aqui, este não é perfeito. É engraçado, vistoso, e principalmente dirigido para o público geral e não o que está habituado a ir ao teatro. Parecendo que não estou de acordo, afirmo que até vejo uma certa coerência nesta opção, até porque à quarta-feira, às 11h e às 14h30, as sessões são para as escolas. Contudo, este tipo de espectáculos peca pela intensidade que se pede exacerbada nos dramas. Esta crítica é baseada no pouco ênfase dada à fúria do Capitão Ahab. Não seria suposto esta não se limitar à sua vingança com a baleia e transbordar para os companheiros de viagem?

Os responsáveis por esta adaptação, Maria João Cruz e o encenador António Pires, começaram a trabalhar juntos em 2002, com a adaptação do texto para Um D. Quixote - Um Musical, a partir do clássico de Cervantes. Pelo meio já adaptaram obras de autores como Luís de Camões e William Shakespeare. Este tipo de acções são de louvar porque leva aos palcos portugueses textos de enorme qualidade, interpretados de maneira a alargarem os nossos horizontes na percepção das mesmas obras e, chamam os portuguesas às salas de teatro que, por estes últimos tempos, ao contrário de outros anos, estão cada vez mais preenchidas. O encenador, começou em 1990, já encenou inúmeras peças de teatro e, tem se especializado num tipo de encenação apelidado de coreográfico, que consiste na fusão de texto e imagem tal qual uma coreografia. Em Moby Dick, António Pires aproveita-se da imensidão do palco para expor quatro elementos cénicos de peso. Um pano de fundo onde são projectadas paisagens bastante reais; um mastro enorme de pouca utilidade; uma construção de madeira, esta sim de elevado proveito, servindo no primeiro acto de quarto de uma das personagens, e nos restantes de barco. Estranho? Em palco resulta; e, a grande baleia, a “personagem principal” como referiu o encenador. Eu discordo. A baleia é sem dúvida muito vistosa e capaz de abrir muitas bocas de espanto mas só durante 5 efémeros segundos. Conclusão, dois dos elementos cénicos são enormes em tamanho mas pequenos em funcionalidade. Quanto à direcção de actores, Pires afirmou que tem os actores que escolheu inicialmente o que nem sempre é possível. A escolha é acertada. Quem vai à espera de ver grandes interpretações dos actores mediáticos ficará surpreendido com as restantes interpretações de exorbitante qualidade.

Maria Rueff, muita gente não sabe, é formada no Conservatório. Onde estudou e interpretou vários autores clássicos que assentaram a sua escrita no drama. No entanto, desde que saíra da escola de teatro só conheceu um registo, a comédia. Este é o seu primeiro papel dramático desde a sua formação. Fico, ansiosamente, à espera do próximo. Primeiro, este papel é pouco profundo e complexo para uma actriz de formação. Espero que a desafiem para uma interpretação mais dramática. Mas apesar da aparente simplicidade da personagem, a actriz realizou um excelente trabalho ao nível vocal e, sobretudo, no não recorrer aos tiques e exageros que as suas habituais personagens exigem. Miguel Guilherme é uma das minhas referências, com um curriculum vastíssimo em cinema, teatro e televisão. Também ele encontrou a notoriedade na comédia. E nesta peça de teatro a prova é bem mais exigente que a de Maria Rueff. A nota no final é positiva mas não é um 20. É notório que o drama não é a praia de Miguel Guilherme. Sempre que a personagem se exprime ironicamente ele estica a expressão ao limite até provocar gargalhadas. É também claro que, o actor precisa da evolução da acção para a sua personagem evoluir. Se é um facto que no final Miguel Guilherme quase atinge a perfeição, em muitos momentos anteriores o mesmo não foi conseguido. Sobre o restante elenco que já o classifiquei como de elevada qualidade, destaco dois nomes, Graciano Dias (Ismael) e Miguel Borges (Queequeg). É verdade que têm um maior realce do que os restantes pela cena que contracenam mas as suas presenças em palco são delineadas por uma coerência constantemente apropriada e sustentada pelos seus visíveis recursos.

Moby Dick é um clássico da literatura americana que temos o privilégio de ver encenado em Lisboa e, podendo não concordar com certas opções e não sendo um espectáculo que me encha as medidas, reconheço a importância que poderá ter no panorama nacional pelos argumentos que já descrevi anteriormente.
Título: Moby Dick
Autor: Herman Melville
Adaptação: Maria João Cruz
Encenação: António Pires
Elenco: Maria Rueff, Miguel Guilherme, Graciano Dias, João Barbosa, Miguel Borges, Milton Lopes, Ricardo Aibéo e Rui Morisson

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Little Children

Little Children - Pecados Íntimos

Adaptado a partir do livro homónimo de Tom Perrotta, Todd Field realiza Little Children. Em Portugal o filme foi apresentado como Pecados Íntimos, título bem apropriado para substituir o original nome inglês. Na verdade, Todd Field adaptou o romance de Perrotta para um guião que nos fala de crianças, de pecados e de intimidade, ainda que se mova no legado deixado por Sam Mendes no seu American Beauty. Contudo, e sem pretender fazer comparações, podemos dizer que aquilo que Mendes não disse relativamente a certos temas está obviamente explícito na película de Field.

A história tem lugar num pacato subúrbio de um qualquer estado verdejante dos Estados Unidos, daqueles com largas ruas ladeadas de plátanos e cercas pintadas de madeira. Aqui, a câmara move-se em contrastes, deixando planos rápidos para mergulhar em sequências calmas e melancólicas. Somos apresentados, por meio de um irónico narrador, à vida de Sarah (Kate Winslet) e da sua filha Lucy, aos dramas de Brad (Patrick Wilson) e do seu filho Aaron. Olhamos pelas janelas, silenciosamente, e deparamo-nos com problemas conjugais, com pequenos conflitos, com banalidades do quotidiano. Julgamos um pedófilo, atacamos o adultério, cochichamos no Clube de Leitura bem ao jeito da Oprah Winfrey. Em suma, temos dentro da tela a vida suburbana de umas quantas personagens. Para qualquer um de nós, perigo é uma palavra desnecessária nestes termos.

Ao longo da trama, a teia aperta-se e o enredo torna-se mais intenso: há uma clara tensão sexual entre Sarah e Brad, com direito a subterfúgios eróticos muito bem delineados, mas tudo isto passa quase despercebido. A relação adensa-se, o tempo passa e o sentimento é o mesmo, dito assim neste tom meio abstracto. Na verdade, o filme não nos fala de certezas. Tão-pouco procura explicar a maldade ou justificar a perversão. Muito menos coloca no acto sexual a explicação para todos os acontecimentos. Simplesmente narra.

O espectador mal se apercebe de que o guião se contorce, de que as personagens não são apenas pessoas do dia-a-dia, no entanto, quando se faz o interessante paralelismo entre a Madame Bovary de Flaubert e a vida de Sarah damos conta de tudo o que aconteceu. A idealização da patologia num corpo só e o investimento sexual não são apenas bonecos para aromatizar a história, servindo sim um objectivo bastante claro e despegado de interpretações românticas. O pedófilo sente como outro homem qualquer, sofre sobretudo; os amantes adúlteros sentem o peso da culpa. Muito para além do mal, muito para além do acto de pecar. E Todd Field consegue encontrar uma forma perfeita de o dizer sem ter de justificá-lo, como se o percurso trilhado pelas personagens não pudesse ser outro.

A película assume-se brilhante desde o seu início, embora guarde para o final o momento mais intenso da história e, consequentemente, o momento mais bem conseguido a todos os níveis. Conjugando uma boa banda sonora, excelentes interpretações e uma câmara bem enquadrada, atingimos o pretendido. Funcionado tudo como um acto sexual, Field sagra-se perfeito ao filmar o momento post-coitum. As personagens repousam, descansam depois de toda a intensidade, dando conta de que tudo o que procuraram esteve sempre ao seu alcance, ao seu lado. E, mais do que isso, converte-se o inimaginável perigo num castigo dostoevskiano: há um exaltar das figuras que nos acompanham sobre a sombra do crime cometido, há uma nova perspectiva que transforma o pecado em inocência.

Como último destaque, refira-se uma Kate Winslet cada vez mais madura, cada vez mais capaz de uma maravilhosa interpretação, já reconhecida pelas nomeações para o Óscar e BAFTA na categoria de Melhor Actriz Principal. Para além deste enorme contributo, o filme já está nomeado para Óscar de Melhor Argumento Adaptado. Prémios e pecados à parte, vale o que é humano, o que é inocente, o que é íntimo.


Título/Ano: Little Children (2006)

Realizado/Escrito por: Todd Field

Elenco: Kate Winslet, Patrick Wilson, Jennifer Connelly, Gregg Edelman, Jackie Earle Haley, etc.

A Clockwork Orange


Ainda que tenha chegado ao público depois do filme de Stanley Kubrick, o livro A Clockwork Orange de Anthony Burgess já tinha sido publicado antes disso, embora não tivesse sido lido na medida em que o filme foi visto. Depois da polémica instaurada com a saga alucinante de Alex e do seu gang, chegou aos amantes deste filme o livro que lhe serviu de mote. Considerado por muitos a obra-prima de Anthony Burgess, A Clockwork Orange conserva, nos dias de hoje, um mérito quase sombrio, colado à grandiosidade de toda a obra de Kubrick.

O facto de que o filme de Kubrick é absolutamente genial não suscita grandes dúvidas, do mesmo modo que instaura grandes polémicas sobre o seu conteúdo. Motivos mais do que suficientes para se passar os olhos sobre as páginas deste livro. Escrito na primeira pessoa, Alex narra o que todos já vimos na tela: o seu universo londrino futurista, com inúmeras referências à sexualidade e à Arte. Rodopiamos com ele na esfera podre de sexo, violência e ausência de moral, enquanto seguimos de perto a sua história perturbadora: o seu pequeno percurso, com os seus pequenos detalhes inundados com a música de Beethoven. Somos levados ao local mais malévolo, mas também ao local mais humano, derrubando as fronteiras da Liberdade propostas para a civilização ocidental.

Sendo um livro, um dos fenómenos mais interessantes é a linguagem usada por todas as personagens... Anthony Burgess é o mestre por detrás do calão que se escuta no filme de Kubrick e que se lê neste livro. Misturou essencialmente um russo adulterado com algumas dezenas de palavras inventadas, tornando o livro praticamente incompreensível. Requer, portanto, uma boa dose de motivação para descodificar vocábulos como devotchka (rapariga), droog (amigo), podooshka (almofada), ou mesmo outros que são oriundos do calão cockney britânico. Chamou a esta linguagem Nadsat (palavra russa para adolescente).

O autor recusou-se a integrar um glossário no final do livro e, como resposta às críticas, explicou apenas o significado do seu título (apêndice que o filme deixa em aberto). Como explicação, faz referência ao condicionamento clássico de Pavlov, muito explorado no tratamento de Alex através do método Ludovico. Assim, criou-se a linguagem própria, explorou-se os limites entre o Bem e o Mal, alcançou-se uma nova descrição da patologia vs normalidade. Enterrámos os olhos em dilemas éticos, auscultámos a satisfação das pulsões, condensou-se toda a cultura psicanalítica numa obra só. Todos nos interrogamos, então, que nome está ao lado de A Clockwork Orange? Que nome soa quando alguém se lhe refere?

Provavelmente, o filme e o livro são indissociáveis. Um visão atenta do filme não dispensa uma leitura. E quem pega nas páginas de Burgess certamente verá com outros olhos a película colossal de Stanley Kubrick. Permitindo-me a ironia, e estando ambos os autores mortos, a questão presente não é o mérito, é a indispensabilidade cultural... E aqui, não se vence nem se perde, é-se fundamental.


Título: A Clockwork Orange

Autor: Anthony Burgess

domingo, fevereiro 04, 2007

Not too late

A coisa até parecia prometer. Depois do sucesso de Come away with me e Feels like home, ambos álbuns agradaváveis, a recente estrela Norah Jones pedia uns meses de folga da multidão e das tours, fechando-se no seu estúdio caseiro com o seu parceiro musical Lee Alexander. Adiantado, sabia-se ainda que seria um álbum mais intimista, no sentido em que seria a estreia de Jones como compositora. Se juntarmos a isto os vários Grammys, so far so good.

Norah Jones sempre foi uma estrela dividida entre o Jazz e a Pop. No seu mais recente trabalho, Not too late, faltam-lhe ambos. A voz jazz está lá mas não tem onde se agarrar, faltando-lhe momentos mais emotivos com que já nos surpreendera nos dois trabalhos anteriores. Para Pop falta-lhe Pop. O que se pedia a Norah Jones neste ponto da sua carreira era uma de duas coisas: a evolução para algo mais que uma estrela talentosa mas algo perdida; ou mais um álbum onde um bom momento Jazz ou Pop nos prendesse, como acontecia com “Sunrise”, “Don’t Know Why” ou “Come away with me”.

Olhando com atenção para Not too late, Norah Jones falha ambos. A sua transição para compositora, entre os momentos intimistas e a manifestação politica não chega a convencer enquanto que nenhuma música realmente empolga ou emociona. Fica um álbum exageradamente morno. Não pensemos que Not too late é um mau trabalho, porque o não é, mas sabe manifestamente a pouco. Espera-se mais de Norah Jones do que um mero cd em formato banda sonora de longa viagem em autoestrada.

Ainda assim, algumas músicas deixam alguma esperança em relação a esta nova versão de Norah Jones. “Wish I Could” é single radiofónico descarado e óbvio, mas ainda assim mostra um pouco da força dos álbuns anteriores. “Sinkin’ Soon” é homenagem (demasiado) notória a Tom Waits, “My dear country” é posicionamento politico em tom de bar de hotel e “Be my somebody” foge à monotonia generalizada. Tudo o resto são baladas com tiques Jazz demasiado lânguidas e mortiças. Mantenha-se a esperança na filha de Ravi Shankar.

Título: Not too late
Autor: Norah Jones

Nota: 5/10

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Volver


Grandes realizadores marcam as suas obras com um carimbo cinéfilo, marca indistinta do seu olhar sobre a tela. Impossível ver um filme de Hitchcock e não reparar no seu toque, na sua visão do conjunto e, acima de tudo, na sua visão do particular, do pormenor. O mesmo se passa com Almodóvar, realizador espanhol e um dos ícones maiores do cinema europeu contemporâneo. A sua obra reflecte uma visão personalizada e descomprometida, um conjunto de filmes onde predomina a liberdade de pensamento. O último pilar desta construção é Volver.

Recentemente nomeado para Óscar de Melhor Actriz, Volver funciona quase como filme-paradigma da visão cinematográfica de Almodóvar. Onde todos vêem os fantasmas de aldeia de uma história antiga, os olhos de Almodóvar intersectam um compêndio de amor em forma de enredo cheio de inversões. Onde a maioria vê o medo da morte, Almodóvar mostra o fascínio da vida.

Volver é um novelo que se desenrola em torno de Raimunda (Penélope Cruz), rapariga latina afastada por opção da aldeia que a viu nascer. Volver conta a sua história através da desfuncionalidade da família que provem e a que, como o título sugere, volta. É à volta da sua irmã Soledad (Lola Dueñas), da sua mãe Irene (Cármen Maura) e da problemática Agustina (Blanca Portillo) que o seu passado se cruza com o presente, e ainda com o futuro no rosto da filha. Volver é um filme sobre relações, sobre o Amor. Não o amor no sentido mais carnal e corrente do termo, mas um amor familiar, claramente mais forte que o outro, como o filme também demonstra. Um amor feminino.

Feminino é o ambiente deste filme onde todas as personagens são femininas e onde os homens que circunstancialmente surgem mais não são que pontuais referências. A trama roda somente em torno das mulheres deste filme. A mãe que está morta e surge, fantasma do presente, apesar da sua realidade. Soledad que a protege e Raimunda, o protótipo de mulher latina, quente, irreflectida, espontânea e lutadora. É a espantosa força resistente das mulheres que Almodóvar retrata, não só relegando os homens para terceiro plano, como deixando deles uma imagem pouco gratificante.

A nomeação de Cruz surge assim completamente justificada. Mas, enquanto, por exemplo, Streep é um portento capaz de segurar um filme sozinha, a prestação de Cruz premeia não só uma actriz, mas a capacidade de um conjunto de actrizes funcionarem como uma só. Penélope Cruz é exemplarmente suportada por uma selecção, nada uniforme à partida, mas cujo resultado é magnífico, potenciando a actuação da estrela de cartaz.

Mas Volver consegue sobreviver para alem da categorização de filme de autor, filme sobre relações ou filme feminino, o que diz muito sobre a vastidão do mesmo. Volver é, quase à semelhança de O Vale era Verde, um filme retrato. O retrato de uma época, de uma vivência, de um modo de estar. Fotografia das aldeias interiores, que também reflecte a situação portuguesa, Volver oferece um cenário (humano) rico e característico.

Uma palavra ainda para os pormenores, os tais que pertencem à imortalização dos realizadores. Alguns deles homenagens claras às referências do próprio Almodóvar, momentos como o sangue que é limpo com a esfregona ou os vários planos sobre Raimunda, nomeadamente com a faca, enriquecem um filme que já nem precisava. Volver é um marco afirmativo, e qualitativo, na carreira de Almodóvar. Parece também um ponto de síntese dos últimos tempos, auspiciando algo de novo. Pedro Almodóvar não deixará de surpreender.
Título: Volver
Realizador: Pedro Almodóvar
Elenco: Penélope Cruz, Carmen Maura, Blanca Portillo, Lola Dueñas, Yohana Coba e Chus Lampreave.
Espanha, 2006.
Nota: 8/10